ARTIGO ARTICLE

 

A quem interessa a relação médico paciente ?

 

Who cares how doctors and patients relate ?

 

 

João Claudio Lara Fernandes

Posto de Saúde da Associação dos Moradores e Amigos do Bairro Barcellos. Travessa Flores, 4, Favela da Rocinha, 22451-410, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

A relação médico-paciente é parte integrante do cotidiano de milhares de profissionais. Para evitar uma abordagem idealista ou meramente afetiva desta questão, é necessário investigar como ela está relacionada ao conhecimento médico e à relação mais geral entre medicina e sociedade. Na verdade, longe de ser aleatória, esta relação, da forma como foi estabelecida, pode ser vista como um instrumento de difusão e manutenção do poder do Estado e da instituição médica sobre a sociedade.
Para modificar esta prática, o autor propõe duas abordagens, relativas a campos distintos da prática médica: os campos hospitalar e extra-hospitalar. Na área extra-hospitalar, a humanização da prática médica dependeria, basicamente, de uma formação profissional abrangente, de modo a adaptar o médico às demandas inerentes a esta área, onde o raciocínio fisio-patológico mostra-se freqüentemente limitado. No campo hospitalar, a humanização do ato médico dependeria mais diretamente da atuação integrada de uma equipe multi-profissional.

Palavras-chave: Relação Médico-Paciente; Atenção Primária à Saúde; Equipe Multiprofissional de Saúde


ABSTRACT

The relationship between doctors and their patients is part of everyday life for thousands of professionals. In order to avoid an idealistic or merely emotional approach to this question, it is necessary to investigate how it is related to medical science and to the overall relationship between medicine and society. Indeed, far from being aleatory, the doctor-patient relationship as it has been practiced can be understood as a tool for maintaining the power of both the medical establishment and the state over society.
To change this practice, the author proposes two different approaches to specific fields of medical practice: the hospital and non-hospital fields. In the field outside hospitals, the humanization of medical practice depends basically on broadened training for professionals in order to prepare them to deal with this work's inherent demands, where a physiopathological approach is often insufficient. Inside hospitals, a more humanistic relationship depends more directly on the action of a multiprofessional health team.

Keywords: Doctor Patient Relationship; Primary Health Care; Multiprofessional Health Team


 

 

INTRODUÇÃO

O assunto da relação médico-paciente (RMP) tem sido tratado extensamente por numerosos autores. Entretanto, na maioria das vezes, suas análises são lidas e debatidas por profissionais distantes da prática clínica, o que não deixa de conferir a estas discussões uma aparência de inutilidade. A Medicina, como comenta Clavreul (1983), segue indiferente ao que dela se diz.

Para a maioria dos clínicos, a questão da relação com seus clientes remete basicamente a algumas aulas da graduação, ou aparece na forma de um discurso mais ou menos lírico, utilizado em conversas entre colegas, freqüentemente sem maiores correlações com a realidade vivida nos consultórios e enfermarias. Mostra-se, desta forma, despossuída de qualquer conteúdo positivo ou intrínseco às aptidões objetivamente exigidas para o cuidado dos doentes; portanto, um conceito idealizado. Por outro lado, boa parte das críticas dirigidas à forma como se estabelece usualmente esta relação carece igualmente da proposição de alternativas factíveis dentro da realidade cotidiana dos profissionais de saúde e, portanto, compartilham da mesma ilusão idealista.

Um exemplo bastante prático disto é a abordagem do aspecto afetivo da RMP. Ora, a afetividade existe inevitavelmente, na medida em que ela se refere a um contato entre pessoas, embora concordemos com Sartre (Birman, 1980) quando considera a relação com o médico como um fato original, diferenciado das características das outras relações, o que certamente não invalida a afirmação anterior. Desta forma, por mais que se procure manter um distanciamento, sentimentos estarão sempre presentes, nas mais variadas formas, como afeição, empatia, antipatia, aversão, medo, compaixão, erotismo, etc. Pode ocorrer uma negação desta realidade por parte de alguns profissionais, enquanto outros, ao contrário, tendem a reduzir a RMP exclusivamente ao seu conteúdo afetivo, definindo-a a partir de categorias como amizade, carinho, etc. Não pretendemos menosprezar este aspecto da RMP. Entretanto, parece-nos mais adequado aceitar simplesmente o caráter imprevisível dos afetos presentes na consulta, na medida em que envolvem um campo alheio à racionalidade humana. É um pré-conceito considerar que o médico deva ser amigo ou gostar de seus pacientes. Este pré-conceito é incapaz de dar conta da prática clínica concreta, e reduzir a RMP a uma questão afetiva significa esvaziá-la de qualquer conteúdo instrumentalizável, destinando-a ao universo do aleatório. Aleatório aqui não significa, de modo algum, neutro, porque, na verdade, este esvaziamento ajuda a encobrir outros mecanismos bem mais sutis onde a RMP, da forma como é estabelecida, segue produzindo seus efeitos no indivíduo e na sociedade.

De todo modo, talvez pelo fato de atuarmos na clínica médica, temos a esperança de, mesmo de forma bastante restrita, contrariar a tradição de distância entre este debate e a prática médica, e levantar questões que atendam aos interesses dos colegas e colaborem com sua atividade profissional. É, portanto, uma intenção pragmática que justifica este texto, mesmo considerando que os aspectos levantados mereceriam um tratamento por um viés mais teórico.

Para atingir este nosso objetivo, consideramos necessário investigar quais as possibilidades de inserção da RMP dentro do próprio campo clínico. Em outras palavras, devemos perguntar: para que serve a RMP? Como ela pode contribuir para a prática clínica? Ou seja: Qual é a importância do sujeito na prática do médico?

 

O LUGAR DO SUJEITO NA CIÊNCIA DO MÉDICO

Em O Nascimento da Clínica, Foucault (1987) descreve como, com a descoberta da anatomia patológica, o interesse médico foi se voltando cada vez mais para as estruturas internas do organismo, na busca de lesões que explicassem as doenças, e como, com isto, a importância do sujeito foi se tornando cada vez mais secundária. Construiu-se uma nosologia baseada na generalização dos achados anatômicos, sem lugar para o que não possa ser referido ao corpo doente ou, mais especificamente, a órgãos doentes. O lugar do indivíduo passou a ser o de portador de lesões, estas sim vistas com interesse e positividade pelo médico. Outra importante contribuição para o entendimento da relação entre a ciência médica e a questão da subjetividade na atividade clínica é o trabalho de Canguilhem (1990) em O Normal e o Patológico. Neste texto, ele discute a associação entre experiências de fisiologia nos laboratórios e a elaboração de conceitos sobre a saúde e a doença e, conseqüentemente, sobre o diagnóstico e terapêutica, conceitos estes baseados em uma normalidade experimental, isto é, definidos com base em médias obtidas em situações cientificamente controladas, mas freqüentemente distantes da realidade concreta das pessoas.

Conseqüentemente, a definição do que é doença e, em contraposição, do que é saúde passa a depender do achado de substratos anatômicos e fisiopatológicos que identifiquem uma ou, na ausência desta, a outra, e, por conseguinte, estas passam a ser definidas não pelo doente, mas pelo médico. Destitui-se, assim, a experiência da doença do seu caráter subjetivo, negando ao paciente o direito de sentir aquilo que ele relata caso não exista uma base cientificamente definida para esta sensação , e recorrendo-se, como descreve Boltanski (1989), até à transferência do doente para o psiquiatra, se ele obstina-se em sentir o que sente. Canguilhem (1990) procura resgatar à saúde o seu caráter subjetivo e normativo, conceituando-a num campo que, de certa forma, viria a ser assumido posteriormente pela Organização Mundial da Saúde, em Alma-Ata. De fato, se, a partir de Alma-Ata, a saúde é definida como bem-estar, isto significa que a saúde é definida a partir de quem sente. Canguilhem, na verdade, ultrapassa este conceito, definindo a saúde a partir de sua potencialidade normativa, isto é, de superação, de criação de novas normas vitais.

De qualquer modo, mantidos os mesmos instrumentais de formação e atuação médicas, a saber, a anatomia patológica e a fisiopatologia, o encontro do médico com o doente ocorre unicamente na medida em que este é portador de uma lesão inscrita no interior do seu corpo, identificada não a partir de sua percepção, mas em função de uma norma exterior a ele. A única informação capaz de ser compreendida, valorizada e transformada em diagnóstico e terapêutica é a que se refere a este domínio. Portanto, a relação ocorre entre o médico e a doença do sujeito, independentemente do sujeito da doença.

Clavreul (1983) vai mais adiante e sugere que, na verdade, também o médico é submetido a uma redução, colocando-se essencialmente enquanto o porta-voz da instituição médica, cujos conceitos e legitimidade é obrigado e convencido a defender. Esta instituição tem suas leis e seu estatuto predefinidos, bem como seus mecanismos de controle e fiscalização, e é esta ordem que deve ser apresentada e reafirmada ao paciente. Deste ponto de vista, a RMP torna-se, na realidade, a relação entre a instituição médica e a doença, não existindo espaço para a presença subjetiva, isto é, para o sujeito do médico e o sujeito do paciente. A expressão consagrada por Balint (1984) ao descrever o que ocorre na assistência médica como um "conluio do anonimato", onde a responsabilidade pelas condutas adotadas é diluída por encaminhamentos e opiniões de especialistas fato este amplamente observado nos serviços de saúde , poderia ser considerada, na verdade, um reflexo desta realidade. Outro exemplo interessante é a questão dos prontuários médicos, cuja função teórica seria a de registrar os dados de interesse do paciente. Na prática, entretanto, estes servem muito mais como um documento onde o médico presta contas à instituição, relatando-lhe as lesões encontradas no exame e as corretas condutas adotadas (mesmo que, eventualmente, a coisa não tenha sido bem assim), e, deste modo, se defendendo legal e eticamente de qualquer eventual acusação. Análise semelhante poderia ser feita acerca dos receituários médicos: não importa se o paciente pode ou não comprar o medicamento, mas apenas que a prescrição esteja tecnicamente correta e salvaguarde, deste modo, a boa reputação do profissional no seu meio.

 

RMP E ESTADO

Olhando por outro ângulo, esta relação, longe de ser fortuita, atende a interesses bem definidos. Gramsci (1968) analisa como as classes sociais produzem seus intelectuais orgânicos aqui incluindo-se os médicos , referindo-os como "comissários do grupo dominante para o exercício de funções subalternas da hegemonia social". A prática médica coloca se, portanto, como um instrumento de consenso/coerção, assegurando a manutenção de uma determinada hegemonia de classe. Como refere Luz (1986), "reduzir a saúde à ausência relativa de doença, a programas médicos curativos ou preventivos, tem sido, no modo de produção capitalista, a forma política de eludir o problema das condições de existência nele vigentes".

Deste modo, a medicina desempenha o papel de legitimar o esforço e a preocupação do Estado com o bem-estar comum. A ela cabe o trabalho de conformação das classes não-hegemônicas à ordem social em vigor. Quando o médico atende um paciente com cefaléia, o examina e se limita a pedir exames e prescrever um analgésico, ele está dizendo a este paciente, dentro dos melhores preceitos clínicos, que aquele sintoma guarda uma coerência e uma causalidade circunscritas ao seu corpo, e, portanto, passíveis de serem tratadas e curadas através daqueles procedimentos. Não aparece no como positiva, na consulta médica, a relação deste sintoma com as condições de vida desta pessoa, ou se ela está desempregada, ou se está infeliz, ou se trabalha muito. Não há espaço, desta forma, para a emergência de conteúdos políticos contra-hegemônicos na consulta médica, isto é, dos aspectos subjetivos que compõem a cidadania, e, em nome da neutralidade científica, o médico atua politicamente, conformando o paciente à ordem social em vigor.

A RMP pode ser entendida, neste sentido, como uma relação de dominação da ordem médica sobre a sociedade, e de dominação do estado sobre as classes não-hegemônicas. Um dos instrumentos que exemplificam esta dupla dominação é a linguagem utilizada pelos médicos. Boltanski (1989) descreve a existência de uma barreira lingüística que separa o médico do doente pertecente às classes populares, barreira que se deve tanto à utilização de um vocabulário médico especializado quanto às diferenças que separam a língua das classes cultas daquela das classes populares. Este autor refere, ainda, que se, por um lado, desautoriza-se a utilização da linguagem médica pelo leigo, por outro, são desenvolvidos e incentivados trabalhos educativos que visam ampliar o domínio médico e "educar" o paciente a aceitar e se submeter à autoridade deste. Um outro instrumento essencial a este projeto é a medicalização, que, além de atender aos interesses do complexo médico-industrial, consubstancia a supremacia do conhecimento médico e a dependência do paciente. Para ampliar este projeto de hegemonia, a ordem médica busca, continuamente, substratos científicos para sujeitar os mais diversos campos da vida a seus preceitos, transformando as pessoas em doentes em potencial, ou suspeitos, à revelia do que elas sentem de si mesmas.

Existe, deste modo, uma série de situações subjacentes à RMP que determinam a sua existência com as características que conhecemos. Isto significa que pouco adianta recorrer a um discurso doutrinário que incentive a humanização do atendimento médico caso não sejam visualizadas e modificadas as causalidades envolvidas no estabelecimento desta relação. Devemos, neste ponto, esclarecer previamente que não desconsideramos a necessidade de mudanças macro-estruturais nas políticas de assistência e na própria sociedade, as quais certamente interferem no ambiente da RMP. Entretanto, nosso objetivo neste trabalho é salientar um aspecto específico que consideramos central nesta questão e, dialeticamente, indissociável em relação àquelas mudanças. Assim, queremos avaliar quais as condições de possibilidade para uma mudança nesta relação, no sentido de incorporação de aspectos positivos para o próprio ato clínico.

 

O LUGAR DO SUJEITO NA RMP

Para tentar responder a esta questão, parece-nos necessário avaliar distintamente dois campos específicos da prática médica: o hospitalar e o extra-hospitalar. Esta distinção e suas diferentes repercussões sobre a RMP foram levantadas por Balint (Birman, 1980), que definia estes campos como medicina hospitalar, ou científica, e medicina extra-hospitalar, a qual denominou, de forma interrogada, de prática médica. Ora, a partir dos estudos de Canguilhem (1990), se o ato clínico terapêutico está dirigido ao restabelecimento de uma norma vital, percebida como um valor pelo indivíduo doente, isto é, se a doença é do doente, não seria o fato de uma clínica ser hospitalar que lhe forneceria o estatuto de ciência. Isto é, o ato clínico, por princípio, não é científico, na medida em que está comprometido com o restabelecimento de uma norma vital subjetiva, embora obviamente este ato seja baseado, em grande parte, em conhecimentos oriundos das ciências biológicas. A ironia e, ao mesmo tempo, a pertinência desta observação estão no fato da concepção desta medicina das inter-relações proposta por Balint ter sido expandida institucionalmente, ao menos na nossa observação pessoal, mais nos hospitais do que nas unidades extra-hospitalares, tendendo, em alguns casos, a se constituir, na prática, enquanto serviços de psicologia, atuando de modo multiprofissional com as demais especialidades hospitalares, o que parece corroborar a análise que faremos posteriormente acerca das características da RMP naquele espaço de prática clínica. É inegável, por outro lado, a influência positiva que estas concepções proporcionaram, mesmo que de forma parcial e adaptada, ao trabalho médico em geral, abrindo terreno para novas investigações e análises.

Feitas estas ressalvas, podemos iniciar nossa avaliação acerca das características da RMP nestes dois campos.

A prática clínica extra-hospitalar, a qual preferimos chamar, especificamente, de Atenção Primária à Saúde para demarcar claramente um campo e, ao mesmo tempo, uma relação dentro de um sistema, tem como elemento constitutivo básico a direta interligação das queixas trazidas pelo paciente com suas condições de existência, seu sentir-se mal com a vida. Em função desta característica, o raciocínio anatomo-fisiopatológico resulta ineficaz para satisfazer, qualitativamente, boa parte da demanda. Em outras palavras, o raciocínio anatomo-clínico é freqüentemente insuficiente para dar conta do sofrimento apresentado ao médico, cujas causalidades predominantes, na maioria das vezes, encontram-se em outros campos da vida, isto é, nos campos social, emocional, ambiental, etc. O termo predominante traduz um conceito empírico que julgamos clinicamente necessário dentro do campo epistemológico que estamos propondo. Isto é, pretendemos, com isto, não segmentar pacientes em fisiopatológicos, psicológicos, epidemiológico-programáticos, sociais, etc., nem definir uma causalidade "essencial" psicológica das relações, em cada queixa ambulatorial, como defende Balint (1984), mas exatamente evidenciar a característica de interligação e pluralidade entre os vários campos da existência humana e, portanto, do adoecimento, evidenciada de modo claro e eventualmente explícito na prática extra-hospitalar. Disto conclui-se a necessidade de abordagens diagnósticas e terapêuticas mais abrangentes que a fisiopatologia para fazer face a estas solicitações.

Não é à toa que a prática clínica extra-hospitalar goza de tão má reputação entre os médicos, na medida em que, na verdade, estes se vêem desguarnecidos de instrumentos teóricos capazes de ajudá-los a dar conta de boa parte da demanda que têm a atender. O resultado desta situação normalmente é traduzido em receitas inócuas verdadeiros efeitos-placebo , cronificação de doentes, pedidos de exame desnecessários; em uma palavra, medicalização. Portanto, para realizar um atendimento médico tecnicamente consistente no campo extra-hospitalar, torna-se necessário ampliar o campo de percepção clínica, de modo a buscar em outras áreas do conhecimento humano e científico as análises e respostas mais adequadas às queixas e sintomas, sob o risco de se desenvolver uma atuação profissional superficial, ineficiente e de baixa resolutividade, dominada pela monotonia e repetitividade oriundas da pobreza fisiopatológica dos casos e da estreiteza do olhar médico. Isto levanta, obviamente, a questão da necessidade de uma formação médica específica para este campo de atuação profissional.

Ocorre que, para utilizar as palavras de Almeida (1988), este campo clínico ampliado cria, como conseqüência, a ampliação também da presença subjetiva do paciente na consulta, enquanto portador de um conhecimento essencial para a aplicação destes instrumentais. Desta forma, para ser eficaz, do ponto de vista clínico, a prática médica extra-hospitalar necessita, obrigatoriamente, da interação entre dois conhecimentos positivos: o conhecimento teórico do médico sobre os processos de adoecimento e o conhecimento do paciente sobre sua vida, sem os quais não há possibilidade de desenvolvimento de um diagnóstico e de uma ação terapêutica consistentes. Em outras palavras, é a presença subjetiva, neste campo de atuação, que fornece as condições de possibilidade de desenvolvimento de uma ação médica tecnicamente eficaz, e é a partir desta condição que uma RMP mais humanizada poderá ocorrer.

Por outro lado, esta interação de conhecimentos pode gerar, em conseqüência, um processo de contra-hegemonia, na medida em que define as condições de vida enquanto um campo positivo para a anamnese e, ao mesmo tempo, que confere um limite à atuação do médico. Isto é, o clínico é instado, através da aquisição de um instrumental mais amplo e mais crítico, a adquirir consciência de seus limites, responsabilidades, bem como da realidade das pessoas que atende; e o paciente, de seus processos mórbidos, de seus determinantes e de sua responsabilidade na modificação destes. Do ponto de vista do médico, este limite é fornecido tanto pela sua incompetência objetiva para solucionar questões que pôde, eventualmente, ajudar a visualizar, como, por exemplo, a necessidade de mudança de um emprego insalubre, melhoria nos rendimentos, as condições de habitação, etc., como pela constatação de um limite dado, entre outros motivos, pelo seu (des)conhecimento objetivo para o aprofundamento de aspectos específicos implicados na consulta, levando-o a recorrer a profissionais especializados em outras áreas, como psicólogos, internistas, assistentes sociais, etc. Com isto, queremos realçar, parafraseando Birman (1980), a incompetência da medicina para a totalidade da existência humana.

Como exemplo, este tipo de abordagem permite tornar consciente o fato de, na atividade extra-hospitalar, o médico raramente ser diretamente responsável pelo tratamento do paciente, cabendo a este último a decisão real e final sobre o procedimento terapêutico. Isto acarreta, certamente, um lugar de poder diferenciado do usuário em relação ao paciente hospitalar, bem como um aspecto favorecedor de sua conscientização e autonomia. Ou, como refere Rifkin (1986) em um contexto mais geral, comunitário, aponta que "os profissionais médicos não podem ditar nem controlar o envolvimento das pessoas, mas apenas servir como recursos para suas escolhas". Incluimos propositalmente esta última citação para apontar um campo bastante interessante para futuras investigações, que é a relação da participação (ou envolvimento, como prefere Rifkin) comunitária nos trabalhos de saúde com a forma como ocorre a participação do paciente na consulta clínica.

A atividade médica hospitalar, ao contrário da anterior, caracteriza-se por uma importância relativamente maior da anatomo-fisiopatologia, na medida em que o paciente internado apresenta, em princípio, um quadro de maior complexidade neste campo. Ele necessita de especialistas que possuam a habilidade necessária para olhar suas lesões em profundidade e medicalizá-las adequadamente. Como descreve Foucault (1987), o hospital moderno se estruturou em função da racionalidade anatomo-clínica, e é este o conhecimento básico demandado a seus profissionais. O exemplo máximo desta realidade é o centro cirúrgico, ou o Centro de Tratamento Intensivo (CTI), onde a subjetividade do doente jaz sob anestesia, ou perdida entre tubos. Neste caso, falar em relação médico-paciente significa pouco mais que um exercício metafísico, já que a história de vida e a subjetividade do paciente pouco acrescentam ao médico que o trata. A este pede-se que seja hábil e competente, dentro de sua área de conhecimento, relativizando-se a importância de suas habilidades no trato humano. Com isto, queremos dizer que, embora seja preferível, obviamente, que o cirurgião, internista ou especialista seja empático e atencioso, esta característica não está relacionada diretamente à demanda clínica efetivamente em questão. Por outro lado, exigir que estes profissionais tenham um instrumental amplo, estudem ciências humanas, etc., não passa muito de um apelo idealista pouco referido aos interesses, necessidades e possibilidades concretas destes profisionais. Neste sentido, nos opomos às afirmações de Campos (1991), que defende que "o saber cirúrgico deve pressupor o clínico, e este, noções sobre saúde mental, determinação do processo-saúde-doença", incluindo aí também a necessidade do saber epidemiológico. Este tipo de apelo traduz uma concepção onipotente e idealista da medicina, bem como uma falta de percepção das limitações impostas pelas especialidades médicas, tanto a nível da quantidade dos conhecimentos específicos que exigem quanto a nível do tipo de "olhar" que demandam do profissional, muitas vezes necessariamente excludente em relação a outros enfoques.

A partir destas considerações, acreditamos que a condição para a existência do sujeito no campo hospitalar será dada, fundamentalmente, pela atuação da equipe multiprofissional, que, através de suas variadas abordagens, poderá ampliar o espaço subjetivo do indivíduo portador da lesão, contribuindo para a sua humanização. Quando possível, a visita do médico generalista (extra-hospitalar) ao paciente internado e sua atuação junto à equipe hospitalar também poderão contribuir para a discussão e compreensão dos aspectos histórico-existenciais deste paciente. Caberá, neste sentido, ao médico do hospital reconhecer a estreiteza (necessária) de sua abordagem e aceitar seu papel (ou ser pressionado a isto) como membro de uma equipe que questionará, eventualmente, seu autoritarismo ou sua conduta, e (de)limitará seu campo de atuação sobre o paciente e sobre o próprio espaço hospitalar.

 

CONCLUSÃO

O objetivo destas reflexões foi o de contribuir para a discussão da RMP, relacionando-a às racionalidades presentes na prática clínica. Pretendemos, também, de forma indireta, apontar a importância desta discussão em relação às políticas de organização do Sistema de Saúde: pouco adianta o zeloso diretor de uma unidade extra hospitalar acorrentar a cadeira do paciente à mesa do médico. Mesmo que aquele se sente, a consulta durará 5 minutos, tempo mais que suficiente para o médico exercitar o conhecimento que tem para esta circunstância, para a qual ele não foi preparado.

Este é, obviamente, apenas um dos aspectos da questão da qualidade do atendimento, mas certamente é um deles. De qualquer modo, para que o debate da RMP ultrapasse os limites do idealismo, deve-se situar os campos de prática médica, as diferentes racionalidades envolvidas, e, a partir disto, definir condições que favoreçam o surgimento de uma relação entre sujeitos e, portanto, entre seres humanos.

 

AGRADECIMENTOS

O autor agradece aos Drs. André Rangel Rios e Maria Teresa Pereira pelas críticas e sugestões ao texto.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, E. L. V., 1988. Medicina Hospitalar Medicina Extra-hospitalar: Duas Medicinas? Tese de Mestrado, Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.        

BALINT, M., 1984. O Médico, seu Paciente e a Doença. Rio de Janeiro: Livraria Atheneu.        

BIRMAN, J., 1980. Enfermidade e Loucura. Rio de Janeiro: Campus.        

BOLTANSKI, L., 1989. As Classes Sociais e o Corpo. Rio de Janeiro: Graal.        

CAMPOS, G. W. S., 1991. A Saúde Pública e a Defesa da Vida. São Paulo: Hucitec.        

CANGUILHEM, G. 1990. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária.        

CLAVREUL, J., 1983. A Ordem Médica. São Paulo: Brasiliense.        

FOUCAULT, M., 1987. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.        

GRAMSCI, A., 1968. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.        

LUZ, M. T., 1986. As Instituições Médicas no Brasil. Rio de Janeiro: Graal.        

RIFKIN, S. B. & WALT, G., 1986. Why health improves: defining the issues concerning "comprehensive primary health care" and "selective primary health care". Social Science and Medicine, 23: 559-566.        

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br