DEBATE/DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Castiel

 

Debate on the paper by Castiel

 

 

Claudio J. Struchiner; Michael E. Reichenheim

Instituto de Medicina Social; Universidade Estadual do Rio de Janeiro

 

 

O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro1

Gostaríamos de congratular Luís David Castiel (LDC) pelo seu estimulante artigo e oferecer alguns comentários tanto de ordem geral como específica. Em suas próprias palavras, LDC se propõe a: (i) discutir a noção de Saúde Pública (SP) e expressões correlatas; (ii) descrever o panorama sanitário em nosso país, o papel atribuído ao sanitarista e a complexidade dos atuais problemas de Saúde; (iii) apresentar técnicas e conceitos desenvolvidos pela Genética Molecular (GM); (iv) discutir e comparar os conceitos de risco genético e propensão hereditária, enfatizando aspectos epistemológicos e repercussões éticas; (v) relacionar a noção de expert e o possível perfil do sanitarista para lidar com as questões postas pela Biologia Molecular (BM) / Genética Humana (GM) nos domínios da SP; (vi) discutir a participação do Estado no estabelecimento das prioridades sociais em Saúde.

O diagrama abaixo resume estas relações indicando os aspectos aqui comentados.

 

 

A Originalidade da Fusão SP + GM = SPM

Para LDC, Saúde Pública Molecular (SPM) pode ser entendida como a incorporação de conhecimentos e técnicas ensejados pela GM nas várias formas de práticas sociais existentes sob a denominação de SP. Esta incorporação se daria dentro de um contexto mais geral de complexificação / fragmentação (CF) de processos biológicos / sociais (BS). Isto nos remete à discussão do item A no diagrama 1. Seria esta a primeira vez em que novos conhecimentos e técnicas são (ou necessitam ser) incorporados a SP? Aparentemente não, já que podem ser hoje considerados como procedimentos corriqueiros em SP a utilização de inquéritos sorológicos, testes bioquímicos, dosagens de agentes tóxicos, exames eletrofisiológicos, procedimentos histopatológicos, exames neurocomportamentais etc. A GM pode ser vista como "apenas" mais um exemplo deste processo de incorporação pela SP dos avanços produzidos pelo desenvolvimento científico e tecnológico. Então, se não podemos atribuir a GM a originalidade de ser o primeiro procedimento "científico" a ser incorporado pela SP, poderíamos, alternativamente, imaginar que ou esta incorporação se dá em bases diferentes das anteriores, ou esta incorporação trará conseqüências de alguma maneira diferente das anteriores. LDC não discute a primeira alternativa mas sugere que esta incorporação irá acirrar o processo de CF, introduzir novos impasses éticos, conferir novos paradigmas de cientificidade à Epidemiologia, e fornecer elementos a uma crítica ao modelo de risco.

Estamos em desacordo com estas afirmações por razões diversas que incluem ou a especificação incorreta de conceitos (como no caso do risco), ou pela GM não trazer nenhuma quebra dos paradigmas já existentes. Dentro do espaço restrito deste comentário tentaremos desenvolver estas idéias.

A intensificação da CF pela incorporação de novas tecnologias e conhecimentos científicos parece inevitável, não sendo recente nem particular à Epidemiologia. Há institutos de pesquisa, como o de Santa Fé nos EUA, totalmente dedicados ao estudo dos sistemas ditos complexos que ocorrem em todas as áreas do conhecimento. Na Epidemiologia, em particular, este desafio vem sendo enfrentado pelo menos desde o início do século. Isto vem se dando através da utilização de técnicas analíticas que procuram operacionalizar os paradigmas dos modelos filosóficos de causa, sendo a Inferência Causal baseada na lógica de contra-fatos um dos mais recentes. São bastante comuns na literatura, exemplos de utilização de modelos determinísticos baseados em sistemas dinâmicos para as doenças infecciosas, e de modelos probabilísticos que incorporam a fragmentação (ou heterogeneidade), estes últimos descritos sob a denominção de modelos de efeitos aleatórios ou modelos de fragilidade. Além disto, são cada vez menores as limitações metodológicas para a formulação de modelos que descrevam relações não lineares, paramétricas ou não, e de modelos onde os parâmetros variem dinamicamente em função do tempo ou outras covariáveis. A fusão SP + GM veio, quando muito, dar um novo impulso ao desenvolvimento destes modelos sem a quebra dos paradigmas atuais.

A este respeito, caberia ampliar o domínio da SPM (item B no diagrama 1) para incluir, também, as novas vacinas e a manipulação genética de vetores, agora possíveis através das técnicas descritas, além das sondas diagnósticas citadas rapidamente no texto. As vacinas podem alterar a dinâmica de transmissão da doença quer bloqueando a aquisição da infecção por um suscetível, quer alterando a morbidade, quer bloqueando a capacidade de transmissão dos agentes infecciosos pelos indivíduos infectados. Estas últimas protegeriam, em última instância, os vetores, com implicações éticas a serem discutidas adiante. A avaliação dos potenciais efeitos diretos e indiretos destas vacinas e das várias possibilidades de estratégias vacinais representam desafios ainda não completamente resolvidos pelos métodos epidemiológicos analíticos correntes. Já as possibilidades de manipulação de vetores incluem, além da criação de espécies resistentes aos parasitas, a criação de vetores vacinadores, isto é, vetores que ao entrar em contato com humanos poderiam distribuir a vacina através de uma picada. Estes exemplos obrigam a concepção de novos desenhos de estudos epidemiológicos e técnicas analíticas, assim como a solução de impasses éticos, sem necessariamente incorrer em quebras dos atuais paradigmas epidemiológicos.

Cientificidade e Reducionismo

LDC não se posiciona claramente mas parece indicar que concorda com a visão de que a Epidemiologia e a GM guardem entre si uma relação hierárquica crescente quanto ao grau de cientificidade. Sendo isto verdade, a incorporação da GM pela Epidemiologia equipararia seus graus hierárquicos mas pagaria o alto preço de uma prática científica reducionista, como parece sugerir LDC (item C no diagrama 1). A este respeito, e interessante notar as implicações de tal terminologia. A uma pesquisa reducionista deveria se opor uma pesquisa "expansionista" e, talvez no mesmo veio, poderíamos imaginar que a uma atitude científica positivista se opusesse aquela "negativista". Não me parece apropriado pensar que o simples fato da GM ter suas atenções voltadas para eventos moleculares faça deste campo de pesquisa algo de dimensões ou propósitos reduzidos. As evidências parecem contradizer esta visão. Os achados no campo da genética tiveram um profundo impacto em nossa vida diária e nas atuais construções epistemológicas. Analogamente, um campo da ciência, a mecânica quântica, que segundo este modo de pensar seria ainda mais reducionista por tratar de relações internas aos átomos e não mais a nível molecular, teve um impacto ainda maior no pensamento epistemológico.

Risco e Propensão

LDC afirma que o paradigma epidemiológico dos fatores de risco dá indícios de fragilidade e perde o poder explicativo diante de desordens de origem poligênica, porque as relações de risco não são percebidas com os mesmos graus satisfatórios de precisão (item D no diagrama 1). Existem três conceitos a serem distinguidos nesta afirmação: o de risco, o de percepção e o de precisão. Risco é o mesmo que probabilidade, ou seja, é uma medida de certeza associada a realização de eventos. Por outro lado, a fonte de estocasticidade modula a percepção do risco. Como tal, torna-se necessário definir os conceito de probabilidade e de fonte de estocasticidade. Probabilidade admite pelo menos duas interpretações, a freqüentista e a bayesiana. Não cabe neste curto espaço estenderse sobre estas definições, mas vale a pena lembrar que na interpretação freqüentista o conceito de probabilidade está associado a idéia de freqüência relativa do evento de interesse, o que implica na repetição de um determinado experimento para sua atribuição. No bayesianismo, probabilidade traduz impressões subjetivas sobre o grau de certeza atribuível a realização de um determinado evento de interesse. Os métodos analíticos bayesianos permitem reexpressar uma distribuição a priori, subjetiva e arbitrária, através da aquisição de informações objetivas, os dados observados. Dentro deste contexto, o subjetivo, sem evitar o "movediço e impreciso território dos desejos e valores humanos...", pode ser incorporado com toda naturalidade ao conceito de risco sem as necessárias condições de "fechamento das variáveis", conforme sugerido por LDC e os autores por ele citado. A diferença entre risco genético e propensão hereditária simplesmente inexiste e os fatos genéticos citados no texto não se contrapõem ao paradigma epidemiológico vigente.

É certo que riscos podem ser baixos ou altos e quanto mais próximos da unidade, maior o grau de certeza da realização do evento de interesse dado o status de exposição. O fato de um determinado fator de interesse apresentar um risco pequeno não invalida o paradigma ou a sua percepção por um potencial usuário. O que parece estar em jogo é a fonte de estocasticidade. A interpretação mais comum para modelos estatísticos formulados com uma componente determinística e outra estocástica, como o modelo clássico de regressão, é assumir que a estocasticidade é proveniente da ignorância do investigador. Caso este possuísse um conhecimento completo sobre o objeto de investigação, poderia predizer o seu acontecimento com precisão absoluta, assim como a participação relativa de cada fator nesta determinação conhecida, uns altos outros baixos. Outros modelos de estocasticidade consideram que a aleatoriedade é inerente ao objeto de observação, como os fenômenos quânticos. Finalmente, temos o que se possa chamar de estocasticidade aparente, que são modelos determinísticos que apresentam um comportamento caótico que simula a aleatoriedade. Os diferentes modelos de estocasticidade irão moldar a percepção que o usuário destes modelos atribui aos fatores de risco.

Por fim, as mensurações dos riscos podem ser precisas ou não. Pode-se estimar riscos altos com baixa precisão e vice-versa. Portanto, doenças cujas configurações moleculares não sejam tão claramente identificáveis, ou naquelas em que os as interações sócio-ambientais tenham peso, podem ter as relações de risco determinadas com alta precisão, ao contrário do que é afirmado no texto, ainda que o risco atribuível a cada fator seja baixo.

Repercussões Éticas

Toda heterogeneidade observada em indivíduos pode vir acompanhada de valores morais. Os exemplos são extensos, mas cabe lembrar as tentativas "científicas" de identificação de "raças puras e superiores" através das mensurações cranianas ou o desenvolvimento da energia nuclear para fins pacíficos ou militares. A complexidade dos impasses éticos a serem introduzidos pelos procedimentos em GM não nos parecem nem originais, nem qualitativamente diferentes daqueles. Ao mesmo tempo, não nos parece que banir estes avanços, como faria a avestruz, seja a melhor solução para o problema. Os impasses terão que ser resolvidos pelos agentes sociais formuladores de padrões éticos e morais em cada sociedade, o que certamente não exime o profissional de SP de um posicionamento preciso.

Este tópico poderia ser ampliado em várias direções. A existência de vacinas que alteram o ciclo de transmissão de doenças em suas diferentes etapas poderiam gerar efeitos opondo a perspectiva individual a coletiva. Certas vacinas para AIDS que prolongassem o período de incubação sem alterar o grau de infeciosidade dos vacinados, seria um bom exemplo. Para os indivíduos infectados, estas vacinas poderiam representar a redenção tao longamente esperada. Já, para a população, estes indivíduos poderiam vir a contaminar aqueles não-infectados por um período ainda mais longo, aumentando o potencial de difusão da infecção. Outros exemplos são possíveis. Vacinas que protegem os indivíduos por um curto espaço de tempo podem ser contra-indicadas para populações onde a doença é endêmica e a sua severidade está relacionada com o grau de imunidade natural adquirida, como na malária. Neste caso, seria esperado um aumento do número de casos graves para baixas coberturas vacinais. Entretanto, esta mesma vacina seria de grande valia para fins militares onde seria esperado que as tropas permanecessem por um curto período nas zonas de ocupação. Por fim, vacinas que atuam de forma indireta, protegendo os vetores e não os indivíduos vacinados, podem ser consideradas de ética duvidosa, já que os vacinados não se beneficiariam diretamente da vacinação.

Conclusão

Em nossos comentários procuramos: (i) enfatizar que o modo pelo qual as práticas sociais poderão incorporar (ou não) conhecimentos e técnicas ensejados pela GM não difere qualitativamente de situações análogas vivenciadas anteriormente, quando da incorporação por estas mesmas "práticas sociais" de outros "produtos" das ciências naturais, não havendo quebra de qualquer paradigma; (ii) ampliar os horizontes da SPM não considerados no texto; (iii) identificar "vícios" de construção ou falsos problemas em que LDC se debate.

Uma vez mais gostaríamos de congratular LDC por seu estimulante trabalho. A fusão da SP+GM irá, sem dúvida, produzir um fértil campo para o desenvolvimento de conceitos sociais, epidemiológicos e éticos. Entretanto, somos abrigados a discordar que os elementos trazidos pela GM para o campo da SP sejam originais ou abalem os alicerces paradigmáticos da Epidemiologia. Sob pena de um jogo de palavras de gosto duvidoso, achamos que a discussão dos vários conceitos, em particular o de risco, e parcial levando a falsa impressão da existência de dragões da maldade que só poderiam ser abatidos pelo brandir das espadas (de São Jorge ?) dos santos guerreiros do expansionismo negativista.

 

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1 Parcialmente financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq).
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