RESENHA/RESENHA
Edgar Hamman
Escola Nacional de Saúde Pública; Fundação Oswaldo Cruz
A AIDS no Brasil (1982-1992). Richard Parker; Cristiana Bastos; Jane Galvão & José Stalin Pedrosa (Orgs.). Rio de Janeiro: Abia, IMS-UERJ, Relume-Dumará, 1994. (Série História Social da AIDS, vol. 2)
O livro "A AIDS no Brasil (1982-1992)" está organizado em quinze capítulos distribuídos em três partes; elas abordam aspectos do conhecimento epidemiológico sobre AIDS no Brasil, o impacto social da epidemia, e as respostas contra a AIDS e as Doenças transmitidas sexualmente por parte do Estado e a Sociedade Civil. Os autores são professores e pós-graduandos em ciências sociais, principalmente sociologia e antropologia, e de disciplinas ligadas às ciências biomédicas como a epidemiologia e a psicanálise.
Os organizadores partem dos dados epidemiológicos, com a constatação de uma moléstia nova, de etiologia definida, com abrangência não restrita aos grupos inicialmente incriminados como detentores exclusivos do risco, com seus mecanismos de transmissão e sua dinâmica de distribuição definida por complexas relações biossociais. Posteriormente, discorre-se através das estimativas do custo da epidemia, não restringindo a análise à dimensão econômica; os custos são expressos em termos do impacto sobre as representações sociais da morte, contaminação e sexualidade. Destaca-se um efeito colateral da epidemia em termos de "descobrir" um universo sexual oculto numa época em que têm grande importância os meios de comunicação de massa. A análise enfatiza a necessidade de enxergar este impacto no contexto da forma particular como se dá a construção da sexualidade na cultura brasileira. Finalmente, os organizadores percorrem as respostas à epidemia por parte das organizações estatais, das organizações da comunidade (ONGs), e dos serviços de saúde submetidos a sucateamento crônico. Enfatiza-se a necessidade de uma resposta intersetorial não restrita à chamada "área da saúde" nem ao campo de abrangência da ação do Estado, isto é, propõe-se o envolvimento ativo da comunidade, e a luta pela garantia de maior igualdade e cidadania.
A primeira parte traz à tona informações epidemiológicas disponíveis para ajudar na compreensão dos determinantes e da distribuição da epidemia no Brasil, a partir de dados secundários de notificação. Apresentam-se dois estudos de caso relativos às cidades de Santos e São Paulo, sendo ressaltada a dimensão socio-econômica do risco e do impacto.
A segunda parte fornece os resultados de estudos de pesquisa etnográfica realizada junto a segmentos específicos das populações mais atingidas pela AIDS, com o objetivo de conhecer o impacto social na epidemia. Em primeiro lugar, dois capítulos se referem a dados coletados entre homossexuais da cidade do Rio de Janeiro, abrangendo populações da classe média alta, como as pessoas que comparecem à consulta particular para psicanálise e pessoas da baixa classe média. As discussões enriquecem o entendimento dos papéis sexuais na cultura brasileira, a aceitação da identidade homossexual, a luta contra o preconceito e a avaliação do risco da prática sexual por parte dos atores envolvidos.
Um terceiro capítulo aborda a maneira como se dá a inserção da mulher brasileira no problema da AIDS. Discutem-se o significado cultural da infecção e das práticas de risco e prevenção, o status de marginalização da mulher que lhe confere uma condição de minoria, e o referencial masculino de "primeiro mundo" utilizado para elaborar os códigos de avaliação do risco e para gerar respostas à epidemia. A autora ressalta que a ocorrência da AIDS em mulheres não é tão inesperado nem tão tardio como aparentam as estatísticas.
Uma análise similar é feita no capítulo que se refere à AIDS e os adolescentes, cuja educação se baseia em pressupostos de autonomia e responsabilidade desconectados da realidade da cultura brasileira. Faz-se ênfase na necessidade de re-orientar a educação no sentido de "educar para a liberdade" e no aproveitamento das experiências dos movimentos populares para a saúde. Também se questionam criticamente outras instâncias simbólicas dominantes como a negação do direito ao prazer para a mulher, a representação de autoridade da herança patriarcal ibérica, a omissão nas pesquisas do contexto cultural brasileiro, e a aceitação de que "ser homem é ter menos controle" sobre impulsos e instintos.
Encerrando a parte do impacto social da AIDS, um capítulo se refere à etnografia do uso comunitário de drogas. Exploram-se os significados da "cultura da droga", indo além das interpretações mais comuns do fenômeno; o valor simbólico do sangue e do uso comunitário de agulhas se analisa com base na categoria "processos de liminaridade"; destaca-se a opção por fugir da ordem social ligada ao status e a criação de uma communitas com seus tipos específicos de relações. Também se aborda o perigo de reduzir os riscos envolvidos na prática do uso de drogas, à infecção com HIV-AIDS.
A terceira parte do livro traz um histórico dos discursos associados ao controle das doenças sexualmente transmissíveis no Brasil, como introdução ao estudo das políticas públicas contemporâneas sobre AIDS. Um outro capítulo analisa a gestão governamental relacionada com o sangue e hemoderivados no Brasil, na conjuntura criada pela crise atual, a revisão do modelo assistencial, o estado da atual jurisprudência sobre a atual constituição, o movimento da reforma sanitária e a presença da AIDS. Posteriormente, mediante um paralelo entre a situação de outras minorias oprimidas no passado, como é ilustrado pelo holocausto dos judeus, analisa-se a situação dos homossexuais, descobrindo-se como a AIDS revela as fraturas sociais, e a crise da saúde pública. Constata-se que se trata de um problema mais histórico, político e ideológico, do que estritamente médico. Conclui-se que as respostas devem ser articuladas ao nível da sua complexidade, e não sob a forma de medidas paliativas. Neste sentido, mais um capítulo aborda o ativismo como forma de resposta da comunidade organizada à epidemia.
O livro consegue seu objetivo de fornecer uma visão abrangente da AIDS no Brasil tanto do ponto de vista dos pesquisadores em diversas áreas do conhecimento, como da perspectiva das pessoas comprometidas com a luta contra a AIDS. Esta visão é menos técnica, teórica e reducionista, e mais pragmática e interdisciplinar. Ela valoriza o discurso e a prática dos sujeitos estudados.