RESENHA/RESENHA

 

 

Kathie Njaine

Escola de Comunicação Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 

Mídia e Violência Urbana. Muniz Sodré; Luiz Eduardo Soares & Ester Kosovski (Coordenadores Científicos). Rio de Janeiro: FAPERJ, 1994. 203 p.

A publicação deste livro pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj), a partir dos relatos do Seminário "Mídia e Violência Urbana", realizado no Rio de Janeiro, de 1º a 2 de julho de 1993, é uma importante contribuição ao tema que vem sendo debatido por pesquisadores, jornalistas, políticos, governantes e pela própria sociedade. No entanto, essa temática suscita ainda urgentes investigações para que se possa compreender melhor a relação mídia x violência nas grandes cidades.

O evento foi coordenado pela Faperj e contou com a participação de personalidades do Brasil e do exterior, entre cientistas, professores, profissionais da mídia, dirigentes de órgãos da segurança pública e representantes da cidadania.

Na Apresentação, Fernando Pelegrino confir-ma o caráter interdisciplinar dos relatos e destaca que o problema não se restringe somente ao debate dos experts, e necessita da participação de várias áreas da sociedade.

O livro está organizado em cinco capítulos. No primeiro capítulo são apresentadas 12 conferências, realizadas em três grandes mesas temáticas: A Construção da Realidade pela Mídia; Produção e Disseminação e Democratização de Informações sobre Criminalidade; Estado, Mídia e Cidadania.

É a partir destes temas que procuramos traçar o "nosso" relato, considerando a dificuldade de comentar os demais relatos, cujos conteúdos trazem sintetizadas profundas análises críticas sobre o problema da violência.

Na Conferência de Abertura, o então Governador Leonel Brizola discute o monopólio dos meios de comunicação, em particular, a questão das concessões de canais de televisão. Compara com outros países como os EUA, onde não é permitido o controle de mais de um veículo de comunicação, como um jornal e uma televisão pelo mesmo proprietário. Brizola refere-se à sua antiga peleja com a TV Globo e afirma que a violência e a criminalidade veiculadas pela televisão influem no sistema educacional.

Para o filósofo de direito da Alemanha, Alessandro Baratta, os delitos que mais lesam a sociedade são aqueles cometidos por indivíduos das classes sociais mais altas, os chamados "crimes do colarinho branco". Somam-se a esses crimes, os delitos ecológicos, crimes contra a saúde pública, publicidade enganosa, corrupção etc. Mas o que prevalece na opinião pública são os crimes das classes sociais mais pobres, protagonizados pelos "criminosos" e seus estereótipos. Baratta cita a questão da privacidade no ambiente doméstico, onde os casos de lesões corporais e violência sexual ganham mais visibilidade nos bairros pobres, pois a privacidade é menor. Nos bairros ricos esses casos são mais facilmente encobertos. A mídia atua aí na condução dos fatos, enfocando certos fenômenos criminais e criando em cima da realidade uma percepção imaginária. A mudança do paradigma do pensamento criminológico deu-se no momento em que se reconheceu que também a criminalidade é "socialmente construída" pelos meios de comunicação. O sentimento de medo é nesse sentido "desproporcionalmente maior que o medo de tornar-se concretamente objeto de uma ação criminal". Baratta propõe que os cidadãos participem de processos democráticos de produção de informações sobre a criminalidade e deixem de ser espectadores.

O jornalista Argemiro Ferreira comenta a violência na TV dos EUA, onde é correspondente da imprensa brasileira e portuguesa. Na sociedade norte-americana esse debate ganha cada vez mais espaços, tanto assim que as emissoras se comprometeram a alertar os pais sobre cada programa, se este for entendido como violento. Há uma espécie de faxina na programação, como conseqüência o lixo é exportado para o Brasil e outros países. Esse fato acaba por limitar ainda mais os espaços para as produções de nossos programas. Ferreira cita o especialista em mídia Ben Bagdikian, que dá a receita utilizada pelas televisões para manter o máximo de atenção dos consumidores: violência e sexo. O sexo é mostrado de um jeito ambíguo para não ferir os padrões de moralidade pública. Assim, a violência torna-se o ingrediente principal dos programas e dos noticiários. A guerra de audiência estimula mais ainda o crescimento dos programas na categoria violência. Para aquele especialista em mídia os custos psicológicos e sociais são grandes e verifica que as crianças que vêem mais televisão são mais cínicas que as que pouco vêem TV.

Representando a Polícia Militar do Rio de Janeiro, o Comandante Cerqueira propõe a abertura de um canal de diálogo entre Estado e cidadãos, para identificar qual a "imagem do crime" e as possibilidades de administrar a prevenção do mesmo. A tortura, tema abordado em outras Conferências, nunca deixou de ser praticada, segundo o Comandante, mas na percepção da classe média, ela foi mais cruel durante a ditadura militar. Essa indiferença atual se dá porque essa classe não se sente mais ameaçada, por não estar entre aqueles "autorizados" a morrerem e a serem torturados. Os "bandidos", os "criminosos" comuns podem e sofrem torturas. Além disso, há uma crença do espectador, do jornalista e do policial de que prendendo o "bandido" está se prevenindo a criminalidade. Uma idéia sugerida por ele é a divulgação de programas de prevenção primária ou mesmo secundária a serem adotados pela mídia, como o programa de educação nas escolas, para prevenção do uso de drogas.

Em uma outra conferência, o Comandante David Gascon, da Polícia de Los Angeles (EUA) apresenta uma visão sobre os acontecimentos daquela cidade, em abril de 1992. Naquele ano, policiais brancos espancaram o negro Rodney King e as cenas foram filmadas por um cineasta amador. Logo depois, o vídeo foi exibido nas TVs americanas e do resto do mundo. No relato do Comandante Gascon, a mídia explorou as imagens de forma implacável. Um ano depois, uma onda de novos distúrbios ocupava as ruas de los Angeles, após a absolvição dos policiais envolvidos no caso. Para o Comandante, a mídia colaborou com os distúrbios, insuflando contra a discriminação racial nos EUA. O que teria também contribuído para agravar os fatos foi que, na época, a cidade tinha um chefe de polícia que não era muito popular nos meios de comunicação e entre alguns governantes.

Gilberto Dimenstein, jornalista da Folha de São Paulo, questiona "até que ponto a imprensa propriamente, está comprometida com essa hipocrisia política, social, econômica e cultural". Procura revelar o que estaria por trás dessa "engenharia de informação", ao comparar duas notícias de um mesmo jornal, de julho de 1993. Uma matéria de quase página inteira sobre o caso PC (Paulo César Farias) e outra nota no final de página sobre o assassinato de crianças no Rio de Janeiro que teria crescido 50%. Dimenstein confronta os 321 assassinatos de crianças nos últimos meses com as 300 mortes de crianças na guerra de Israel contra os palestinos, nos últimos cinco anos e meio. O que se chama lá intifada ocorre aqui a cada cinco meses. O autor de A Guerra dos Meninos, As Meninas da Noite, A República dos Padrinhos, Conexão Cabo Frio recebeu prêmios no Brasil e no exterior por suas pesquisas sobre assassinatos de crianças, prostituição infantil e outras.

A "desrealização" do mundo provocada pela mídia foi o tema da conferência do filósofo francês Henri Pierre Jeudy. "O princípio da mídia é construir um efeito de fascinação e ao mesmo tempo reproduzir um efeito de contaminação das imagens em nível infinito", afirma Jeudy. Esse efeito vertiginoso das imagens impossibilita de se distinguir a imagem do real. A veiculação da violência pelos mass media se dá através desse processo mediático. "Na mídia a imagem não é representação: a imagem representa apenas a si mesma", sintetiza Jeudy. O sentimento de insegurança e medo parece crescer e tornar-se um círculo, exatamente quando todos reivindicam o tempo inteiro mais segurança em um processo que chama de "vitimização generalizada". Jeudy fala da "televigilância" que já existia no metrô de Paris, mas que passou como no bigbrother, da ficção para as ruas, onde a realidade é vigiada pelas telas de fiscalização. Confunde-se nesse processo o real e o imaginário, o que pode levar a "morrer de imagem". Jeudy não acredita em um moralismo da mídia que implique no retorno dos bons valores burgueses. Mas revela o seu paradoxo ao dizer que é a partir do imoralismo da mídia que pode surgir uma nova ética.

Na visão freudiana, sob o olhar do psicanalista Jurandir Freire Costa, uma das tarefas centrais da cultura é "organizar o aparelho cultural ou o aparelho civilizatório, de modo a regrar, a dominar a crueldade". Essa tarefa, em todas as sociedades e culturas com poder, Estado e hierarquia tem sido a de limitar e organizar a manifestação da crueldade, para que esta não coloque em risco o restante do corpo social. A forma até então conhecida, segundo Freire Costa, tem sido a de "desumanização" do diverso, ou daqueles considerados diferentes. Os que não correspondem às regras e aos modelos de conduta moral passam a ser vistos como não sujeitos ou semi-sujeitos. No entanto, o que está mudando é que esses excluídos passaram a reivindicar o ingresso no clube dos privilegiados, afirma Freire Costa. Para esse autor o desenvolvimento da cultura resume-se em três traços fundamentais: lei do mercado; o hábito do consumo e a avidez pelo sucesso publicitário. Esses três eixos têm promovido uma revolução com conseqüências nefastas para a organização da vida social. Por outro lado, a violên-cia mostrada pela mídia, seja através das novelas de TV ou da propaganda de cigarros passou a desumanizar as elites, fazendo desaparecer os parâmetros de julgamentos moral e ético. É nesse lado cruel da "modernidade" que Freire Costa identifica o cinismo e a barbárie.

Na conferência da Senadora venezuelana, Lolita Aniyar de Castro, duas questões são apontadas: qual é a opinião pública sobre a violência? E se existe uma opinião realmente "pública". Para a Senadora, quem faz essa distinção são as autoridades legitimadas, os políticos, os candidatos que informam sobre o que acontece. Os meios de comunicação orientam a atenção do público seletivamente, segundo as diferentes classes sociais. "O acontecimento cotidiano e o que sucede é um grande fato, dramatizado pelos meios de comunicação", comenta a Senadora. A notícia esvazia qualquer conteúdo social e fragmenta a realidade. O colapso dos hospitais públicos e demais serviços estatais são citados para ilustrar a dissolvição do conceito de Estado-nação, diminuindo a presença deste e abrindo para a entrada dos interesses do capital estrangeiro.

O texto do ex-Secretário da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Nilo Batista, analisa os princípios que regem a cobertura policial jornalística no Brasil hoje. De acordo com Nilo Batista não se pode pensar a questão da liberdade de imprensa hoje, sem articulá-la ao modelo idealista liberal de informação "neutra", a formação de uma opinião pública operada pela mídia e a subordinação dos veículos de comunicação às leis do mercado. Alguns desses princípios contribuem para a contextualização do texto jornalístico. A primeira notícia sobre um fato criminal passa a ser o fio condutor de outras. Assim, sucessivamente, se constrói uma série de fatos violentos, que vendem mais que a violência individualizada. Na "mais-valia da violência impune", observa Nilo Batista, a notícia vende mais do que a violência punida.

Na opinião de Paulo Sérgio Pinheiro, sociólogo, professor da Universidade de São Paulo e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência, não existe sociedade pacífica. "A sociedade brasileira sempre foi intensamente violenta, com ou sem mídia dando espaço para a violência", declara. Para ele não há qualquer evidência para sustentar a hipótese de que a violência na televisão tem contribuído para estimular a agressividade nas crianças. Ele também não identifica nenhuma ligação entre os programas que dão "bom exemplo" e a formação de "bons cidadãos". A violência intrafamiliar contribui muito mais para o aumento da agressividade nas crianças. O critério sugerido para controlar a violência é a lei, aplicada pelo poder público. Pinheiro desacredita não só da censura, como também dos discursos que reclamam a falta de moral e a decadência dos costumes. Em contrapartida à individualização propagada pela mídia eletrônica, Pinheiro prevê a possibilidade de construção de "uma nova solidariedade".

Rosa Cardoso, advogada, criminóloga, então Subsecretária de Justiça do Estado do Rio de Janeiro faz uma distinção da mídia eletrônica e da mídia impressa. Na sua opinião a mídia muda os seus pontos de vista, dependendo do momento político que acena. Neste caso, tanto ela pode apoiar um regime autoritário, cita a Rede Globo, como depois defender a bandeira das Diretas. O que acontece na mídia impressa é o que Rosa Cardoso chama de "traição recorrente" na relação entre o jornalista e o entrevistado e entre o jornalista e o seu personagem. Trata-se da forma como o jornalista reconstitui o relato do entrevistado, dando a sua versão e deturpando muitas das vezes as declarações do entrevistado. Para Cardoso, a atuação de uma "mídia alternativa" pode se contrapor ao monopólio das informações da grande imprensa, como, por exemplo, a produção de um programa sobre o Comando Vermelho, mostrando as crianças das favelas que participam como "aviões" e os filhos de classe média nos "pubs", onde consomem drogas.

No Capítulo Dois são apresentados três relatos especiais. No relato do professor Darcy Ribeiro, ele aponta uma visão de um "genocídio calado", onde a população brasileira vem decrescendo. "Gastamos seis milhões de índios, ... 12 milhões de negros... milhões de europeus. O Brasil sempre viveu como uma máquina tremenda de moer, faminta de mão-de-obra". O que acontece neste momento é um excedente de mão-de-obra, e todo esse desemprego drástico desencadeia a violência que está matando a população.

No relato do Cel. Jorge da Silva, na época subsecretário de Estado da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que trabalhou na Segurança da ECO 92, diz que os meios de comunicação têm um papel na sociedade, na produção de segurança e na prevenção da criminalidade. Compara os destaques que a mídia dá aos seqüestros com as quase inexistentes notícias sobre ações de extermínio contra a população pobre.

Para o jornalista Percival de Souza, um dos mais antigos repórteres de polícia do País, é preciso especificar qual é o veículo, quando se tratar de acusar de erro. Sua experiência, também como representante da sociedade civil em órgãos que trabalham em interface com o Poder Judiciário, com o Conselho de Entorpecentes e outros. Desse modo, entende que é preciso somar esforços em função do interesse maior da população. Na ação policial, diz que é necessário acabar com as divergências entre corporações, para que os mecanismos institucionais funcionem.

No Capítulo Três são apresentados os textos dos coordenadores científicos do Seminário.

Muniz Sodré, ensaísta e coordenador da pós-graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fala da visibilidade não só da violência das ruas, mas também da insegurança econômica e psíquica — "que é a insegurança típica do modo de organização social violentamente excludente da maioria". Segundo Sodré, é preciso reorientar os modos de organização do espaço social e avaliar corretamente a questão da violência para se medir a insegurança produzida pela mídia. Mais ainda nesses tempos de desmobilização da educação e da saúde, a mídia parece acentuar x imperar sozinha e acentua a violência.

Luiz Eduardo Soares, coordenador do Programa de Estudos sobre a violência do Iser, professor do Iuperj e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro tenta refletir sobre a violência em duas dimensões: a "objetiva", e a "subjetiva": a criminalidade, a violência e os seus desdobramentos no imaginário coletivo. Portanto, a temática violência merece enfoques diversos, e que como a economia, a inflação, esse fenômeno deve ser analisado de maneira racional, observando sua estrutura e o seu desenvolvimento histórico.

No depoimento de Ester Kosovski, criminóloga e professora da Escola de Comunicação da UFRJ, ela fala da Constituição dos Estados Unidos, que tem 206 anos, e é respeitada, mesmo sofrendo algumas revisões. A nossa Constituição, lembra Kosovski, fica longe de ser um modelo, principalmente nos incisos que dizem respeito à privacidade e à dignidade pessoal, constantemente invadidas pela imprensa. É importante impedir os excessos de liberdade de imprensa e reafirmar que "normalidade não é palavrão", mas pode ser reformada.

O Capítulo Quatro, chamado Retratos sobre a Cidade surpreende pela força e pelo desejo expressos em poucas palavras pelos conferencistas, quando solicitados a fazer os portraits de suas cidades. Alguns relatos livres emocionam e deixam registrados uma esperança na possibilidade de convivência nas grandes cidades.

O Capítulo Cinco, Clipes, Flashes & Breques finaliza com toda a poesia que os grandes centros urbanos ainda inspiram.

Cabe, talvez, ainda algumas reflexões sobre os mecanismos de sedução que a mídia exerce sobre os próprios jornalistas, particularmente os da mídia eletrônica. Este fato, associado ao comprometimento desses profissionais com o poder político dos veículos de comunicação, os interesses dos patrões e com a própria imagem, esvazia um espaço de crítica do papel do jornalismo.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br