Debate on the Paper by Melo-Filho
José Ricardo de C. M. Ayres
Faculdade de Medicina
Universidade de São Paulo
A técnica haverá de sucumbir por não ter a força de desejar, diz Ortega y Gasset. A contundência do filósofo ressalta a relevância do artigo de Djalma Agripino de Melo Filho, sem dúvida uma das mais oportunas a instigantes reflexões recentemente produzidas no campo da Saúde Coletiva no Brasil. Visando à libertação das coerções da natureza e dos preconceitos, nós, os modernos, acabamos por fazer equivaler a razão prática, essa esfera de representações e anseios repletos de significação e laboriosamente construídos na fina tessitura das experiências intersubjetivas, ao estrito domínio das habilidades cognitivas e transformadoras da ciência e da técnica. É dos prejuízos éticos dessa colonização tecnicista da razão prática que trata o autor.
Através da força simbólica dos mitos de Ulisses e Fausto, Melo Filho desenvolve uma iluminadora hermenêutica do discurso sanitário, expondo suas fragilidades por referência a importantes valores de seus agentes privilegiados. As duas personagens, na condição de sinédoques, mostram-nos que, na busca da luz e da libertação, o Homem nega sua natureza e perde-se de si mesmo. Analogamente, buscando garantir aos indivíduos a saúde como bem, nega-se a necessidade de individualização inerente à saúde como valor. A negação desta negação fica interditada, por sua vez, pela perigosa irracionalidade do conteúdo prático (simbólico e desejante) que lhe é inexorável.
Para a elucidação desta perspectiva crítica, o autor recorre ao materialismo histórico, ou, mais particularmente, à filosofia da práxis, a esse é mais um entre os inúmeros méritos deste trabalho. Buscar no marxismo caminhos para a compreensão dos movimentos recentes do pensamento sanitário brasileiro, justo nesse momento de importante inflexão por que passam ambos, constitui uma tarefa corajosa e difícil, mas fecunda, como podemos constatar na leitura de Melo Filho.
Entre as diversas questões suscitadas pela perspectiva crítica a que nos convida o autor, há uma que me parece especialmente desafiadora, e que não se restringe ao campo sanitário, estendendo-se ao debate filosófico contemporâneo como um todo (Habermas, 1990). Trata-se de pensarmos até que ponto a filosofia da práxis permite superar as aporias da razão moderna, tão agudamente apontadas no texto. Não padece a dialética do trabalho da mesma necessidade do fundamento universal do conhecimento, a qual continuaria nos precipitando em direção ao pacto fatal com Mefistófeles? Melo Filho tem razão quando identifica na chamada Escola de Budapeste uma vertente teórica que escapou às armadilhas de um marxismo com pretensões cientificistas. Mas até que ponto a teoria das necessidades consegue, efetivamente, incluir o propriamente humano na apreensão da dialética entre trabalho e socialidade?
Não há dúvida de que a teoria das necessidades, enquanto totalidade interpretativa, rompe com a aspiração objetivista do conhecimento do fato humano. A teoria aqui é sempre entre sujeitos e situações materialmente configurados, intermediada e estabelecida por valores humanos, os quais só adquirem positividade a partir desses sujeitos a situações. Não é, portanto, o distanciamento, a neutralidade, o alcance do ponto arquimediano que elucida o fato humano, mas a reflexividade. Contudo, se não aderimos à filosofia idealista de uma teleologia histórica, orientada pela e para a realização de um espírito humano universal, de onde poderemos obter a garantia de que alcançamos, nessa reflexividade, conhecimento positivamente relacionado aos nossos valores emancipatórios? Da consciência que obtemos através e contra os processos de reificação que alienam o Homem de si mesmo, do progressivo auto-reconhecimento deste Homem no mundo que produz por suas ações, propõe Lukács. Ora, permanece o problema de buscar a melhor consciência, aquela menos alienada, a visão mais universal do fato humano. Está-se, assim, diante do paradoxo de uma razão que busca o universal negando a universalidade. A assunção do caráter essencialmente negativo de uma dialética materialista é urna das possíveis soluções frente a essa aporética da reflexividade (Adorno, 1990). Contudo, o preço a pagar é o de reconduzir a um patamar incomodamente especulativo uma filosofia enraizada no ideal de conciliar reflexão e ação. Já o marxismo de Budapeste buscou manter essa conciliação à custa da problemática identificação entre produção e razão. Em termos bastante sintéticos, o que, segundo essa Escola, constitui e emancipa o indivíduo humano é o que se logra enxergar e construir no modo de produzir/reproduzir a existência material. O conceito raiz de necessidade radical expressa essa unidade teórica entre uma perspectiva racional emancipadora e formas determinadas de produção e consumo. Mas, não estaremos recolocando, assim, a prerrogativa da verdade e, em conseqüência, da decisão emancipadora em algum lugar alheio à razão prática?
Certas tensões teóricas surgidas no texto de Melo Filho parecem sintomáticas dessa aporética, como uma certa tendência à dicotomização entre necessidades existenciais e radicais, como se fossem entidades distintas, por vezes; o heterodoxo recurso à legitimação popperiana da hipótese desenvolvida, não pela heterodoxia, naturalmente, mas pela noção de não-refutabilidade, só possível logicamente se admitida uma autoridade autônoma à positividade factual; ou a contradição entre a recusa do valor emancipador dos interesses particularistas da saúde e a concepção não-teleológica de história.
Sem defender qualquer forma de relativismo ontológico, ou negar a necessidade de hierarquizar as dimensões da existência apreensíveis no conhecimento dos fatos humanos, parece-me que o desafio da razão emancipadora vai além da superação do idealismo filosófico ou do objetivismo. Parece necessário assumir mais radicalmente a historicidade de toda representação (Gadamer, 1991), ancorando na dimensão ética a universalidade do humano-genérico. Não há produto da razão, sequer o mais inocente conceito, que possa ser gerado fora do compartilhamento material e simbólico da vida. Querer partir dessa experiência intersubjetiva, que é sempre também ética e estética, a colocar-se em algum ligar epistêmico definitiva e universalmente esclarecedor, faz lembrar a epopéia de um outro personagem mítico, ainda mais ancestral que Ulisses e Fausto, e que talvez tenha também algo a dizer-nos a respeito. Trata-se de Gilgamesh, sábio e poderoso rei da Babilônia. Encorajado por ter feito de Uruk a mais poderosa cidade de seu tempo, Gilgamesh resolve partir em busca da imortalidade, equiparar-se aos deuses. Na etapa final de sua sofrida epopéia, entretanto, o herói escuta de Utnapishtim, o Longínquo, guardião da imortalidade, a mensagem que expõe todo o paradoxo de seu intento: Não existe permanência. Acaso construímos uma casa para que fique de pé para sempre, ou selamos um contrato que valha por toda a eternidade? Acaso os irmãos que dividem uma herança esperam mantê-la eternamente, ou o período de cheia do rio dura para sempre? Somente a ninfa da libélula despese da larva e vê o sol em toda a sua glória. Desde os dias antigos, não existe permanência. Como são parecidos os adormecidos e os mortos, eles são como um retrato da morte. O que existe entre o servo e o senhor depois de ambos terem cumprido seus destinos? (Anônimo, 1992: 147).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, T. W.,1990. Dialética Negativa. Madrid: Taurus.
ANÔNIMO, 1992. A Epopéia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes.
GADAMER, HG,1991. Verdad y Método. Salamanca: Sígueme.
HABERMAS, J., 1990. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: Dom Quixote.