Debate sobre o Artigo de Melo-Filho
Debate on the Paper by Melo-Filho

 

Nísia Trindade Lima
Marcos Chor Maio
Casa de Oswaldo Cruz
Fundação Oswaldo Cruz

Saúde, Indivíduo e Modernidade

O artigo de Djalma Agripino de Melo Filho tem o grande mérito de suscitar o debate sobre um tema da maior relevância: a relação entre as concepções de saúde e a problemática do indivíduo na modemidade. Num universo em que o discurso acadêmico encontra-se, com freqüência, divorciado das controvérsias e dilemas presentes na prática dos atores sociais, tentativas de estabelecer uma interpretação do ideário do movimento sanitarista, à luz dos grandes temas do pensamento ocidental contemporâneo, deveria merecer a boa acolhida de todos os que acreditam no papel das ciências sociais na reflexão teórica e na elaboração de propostas para a área de saúde. O artigo caminha, no entanto, em direção contrária àquela anunciada pelo autor, cabendo aqui reproduzir a advertência de Mefistófeles: “Meu amigo, toda teoria é seca, e a preciosa árvore da vida é florida” (Goethe, 1984).

lntegrando o coro daqueles que vêm criticando as abordagens do marxismo estruturalista nas análises dos trabalhos sobre saúde, o autor propõe uma releitura das concepções de indivíduo e necessidades humanas na teoria marxista, enfatizando a importância da contribuição de Agnes Heller. Sua proposta consiste em demonstrar, à luz de tais premissas, a visão restrita de saúde e de indivíduo consignada no relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Salta aos olhos a discrepância entre a atenção dedicada à explicitação dos “pressupostos teóricos” e a que se dirige para a análise da concepção de indivíduo prevalecente na 8ª Conferência, resumindo-se as referências empíricas a pequenos trechos do Relatório Final. Este descompasso entre a formulação da teoria e a análise propriamente dita contrasta com as anunciadas intenções de diálogo, afirmadas ao longo do texto, que corroborariam a adesão ao assim chamado “marxismo-helleriano”. Na verdade, o artigo padece do mesmo problema apontado na crítica que o autor faz ao marxismo de inspiração althusseriana: substitui-se a utilização de um conceito despido de historicidade – determinações estruturais (mesmo que “em última instância”) – por conceitos aplicados igualmente de forma reificada, sem atenção para o contexto de sua produção e as possibilidades de uma aplicação enriquecedora. É curioso que as referências à abordagem de Agnes Heller não valorizem a dimensão propriamente histórica da obra da autora e excluam suas considerações a respeito dos três eixos que informariam a vida social na modernidade: a capitalização, a industrialização e a democratização, assim como eludam a importância atribuída pela autora aos valores democráticos, que implicariam novas formas de participação na vida pública.

O tema da vida pública não é abordado no artigo, mas tem uma importância acentuada nesta discussão. Um olhar mais atento sobre dois conceitos-chave presentes no texto pode ajudar a esclarecer melhor este ponto. O primeiro conceito é o de indivíduo – concebido como homem genérico. O caminho mais adequado para entender a posição do autor parece-nos ser o de partir de uma de suas referências centrais e indicadoras de uma ruptura das “necessidades existenciais” para as “necessidades humanas” – trata-se de Fausto e seu desejo de elevar-se da vida cotidiana.

As relações entre indivíduo e cotidianidade evocadas na obra de Goethe, expressam a angústia do indivíduo no cenário da modernidade. Alienação do homem de seu trabalho, de que nos fala tanto o “jovem” como o Marx da “maturidade científica”; contraste entre cultura subjetiva e cultura objetiva, com o quase sufocamento da individualidade, na crítica de George Simmel; desencantamento do mundo, nas palavras de Max Weber, enfim, são formas e diagnósticos diferenciados, mas que apresentam um ponto comum: o da objetivação da vida e do trabalho humano, com a perda da especificidade.

Diante deste cenário, várias alternativas são apontadas, todas problemáticas e não isentas de ambigüidades. Mas convém que nos detenhamos na expressão: elevar-se da vida cotidiana. Neste ponto, parece-nos importante lembrar as proximidades entre Goethe e Simmel. Ao discutir o contraste entre cultura subjetiva e cultura objetiva, segundo pressupostos claramente precursores daqueles presentes na Escola de Frankfurt, Simmel nos fala do caráter alienante da cultura objetiva que acompanharia o papel da economia monetária na sociedade moderna. Um diagnóstico evidentemente muito próximo ao do marxismo, mas acompanhado pela projeção de alternativas significativamente distintas. Tentando escapar de uma leitura unidimensional de quaisquer dos autores mencionados, cabe acentuar uma das possibilidades mais fortemente presentes na obra de Simmel. Nela, o elevar-se da vida cotidiana implica na preservação da integridade do indivíduo particular, capaz de, não apenas resistir, como também participar da banalidade do cotidiano, dele se distanciando e se elevando através de uma atitude muito próxima a de uma certa estetização e aristocratização da vida. A interação com o outro, a construção de uma cultura em bases comuns, e a participação na vida pública perdem, assim, a ênfase que revelam, entre outras, as análises de intelectuais como Karl Marx a Max Weber. O que sustentamos é que a principal questão do indivíduo na modemidade não é a de seu caráter enquanto “homemgenérico” ou “indivíduo particular”, mas as possibilidades de construção da individualidade num processo interativo com a vida social e as demais individualidades em constituição, possibilidade aliás também indicada por Simmel em sua análise sobre as alternativas de construção do indivíduo. Tratase de um processo relacional.

O conceito de necessidades humanas, tomado de Heller, da forma como é utilizado, padece do mesmo grau de abstração. As contribuições mais significativas da autora consistem precisamente em, de um lado, recuperar certas “pistas” presentes na obra de Marx, enfatizando a dimensão simbólica das necessidades ou carências humanas e, de outro, ampliar o conceito através do recurso à temática weberiana do conflito de valores. No primeiro caso, a autora acentua a ênfase de Marx na tradição e no hábito social que orientariam a percepção das necessidades. Quanto à abordagem weberiana, Agnes Heller incorpora o diagnóstico do pluralismo dos valores sociais que caracterizariam o mundo moderno como base para sua análise do caráter conflitivo da percepção das necessidades humanas e da subjetividade. De qualquer forma, entendemos que os principais trabalhos da autora não autorizam uma visão tão normativa, a-histórica e, no limite, dogmática do conceito de necessidade humana.

A concepção, mais ampla ou mais restrita, do que sejam necessidades humanas, ou, em termos mais específicos, necessidades relacionadas à saúde, não pode ser examinada, sem referência à dinâmica de valores conflitivos que perpassam a vida social. Neste caso, o exemplo da 8ª Conferência de Saúde dificilmente pode ser analisado, destituído de seu significado contextual, e das disputas teóricas e práticas ali presentes. A afirmação do Relatório Final da 8ª Conferência de que a saúde é “antes de tudo o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida”, alvo principal da crítica do autor, apenas indica a influência de uma retórica marxista, nada esclarecendo sobre as posições envolvidas no debate. Ademais, o texto da 8ª Conferência é fruto de negociação entre movimentos sociais e agências estatais. Portanto, a expectativa de uma formulação “pura” de saúde e de indivíduo é no mínimo uma arrogância intelectual. A discussão perderia seu caráter diletante, se nos ajudasse a pensar na permanente tensão entre o individual e o coletivo a suas implicações na definição de prioridades que orientam as políticas setoriais.

Se, desde o início, afirmamos a pertinência de trazer ao debate as concepções de indivíduo prevalecentes na área de saúde, consideramos que o artigo não o promove enquanto um diálogo. Parece-nos uma tentativa de moldar a reflexão intelectual e, possivelmente, a prática social, a partir de um parâmetro dedutivo-normativo, tão carente de vida como a imagem de teoria que se apresenta na fala de Mefistófeles.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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