Debate sobre o Artigo de Melo-Filho
Debate on the Paper by Melo-Filho

 

Fermin Roland Schramm
Departamento de Ciências Sociais
Escola Nacional de Saúde Pública

A Dialética Ulisses-Fausto e o Desafio da Necessidade Radical

“O Senhor Deus disse: ‘Aqui está o homem, que pelo conhecimento do bem e do mal se tornou como um de nós. Agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da árvore da vida, comendo do qual viva eternamente. O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden [e] colocou, a oriente do jardim do Éden, querubins armados de espada famejante para guardar o caminho da árvore da vida’” (Gênesis, 3, 22-24)

Admitimos, com o autor, a pertinência da “dialética Ulisses-Fausto” para indicar “o desafio contemporâneo da Saúde Pública”, consistindo, por um lado, no fato de uma “radicalização” das necessidades humanas constitutivas do bemestar e, por outro, na prática capaz de operar uma dupla sutura epistemológica: a) a do cibernético Ulisses que simboliza a reforma da norma “natural” do humano pela técnica e que permite, portanto, resistir à regressão indicada pelo canto das sereias; b) a do político Fausto que apreende de Mefistófeles o jogo dos possíveis que define a arte da vida, inscrita necessariamente num contexto social a histórico, na ordem simbólica.

Desta forma podemos encarar a Aufhebung – o “passar por cima” das leis naturais do “animal” humano pela entrada na ordem sapiens que caracteriza a humanitude do humano –, relacionando-a com o tema das necessidades.

Mas a palavra Aufhebung implica dois tipos de operações, em princípio logicamente sucessivas: “levantar” e “ultrapassar”, sendo que a segunda é conclusiva, pois implica a saída de uma norma paradigmática pela construção de outra. Assim sendo, o primeiro sentido de Aufhebung indica “levantamento” e “sustentação”, logo as operações de distinguir, classificar e hierarquizar necessidades, como condição, logicamente necessária, para poder, em seguida, “radicalizá-las”; mas indica também uma operação de “conservação”, de “retenção”, a fim de não perder os nexos conceituais e histórico-sociais.

Ao dizer respeito tanto ao “inovar” como ao “conservar”, a Aufhebung indica, portanto, uma duplicidade estrutural – apontada indiretamente pelo autor quando lembra os dois sentidos que se inscrevem na palavra salute – “conservar a vida”; “passar por cima, saltando” ou “ultrapassar”. No entanto, existem ainda outros sentidos da palavra que se perdem nas suas origens indo-européias: o de “salvação” (mantido pela linguagem da teologia) e o de “saudação” (conservada em línguas como o italiano). Assim, a sabedoria da língua indica algo que perpassa o imaginário das épocas a respeito daquilo que tem a ver com a experiência da precariedade e da finitude da condição humana pós-edênica.

O caminho, aparentemente mais simples, de operar este “levantamento” foi através da distinção entre necessidades para a mera sobrevivência, tidas como “primárias” ou “naturais”, e aquelas “secundárias” que qualificaram o bem/ bom viver e a norma especificamente humana (a “humanitude” do humano); em suma, entre a sobrevida e a qualidade de vida, distinção que o autor quer “ultrapassar”, dialogando com a teoria das necessidades da Escola de Budapest.

A teoria das necessidades da Escola de Budapest se propunha em “passar por cima” da leitura redutora, anti-humanista e anti-historicista, feita pelo estruturalismo althusseriano, distinguindo entre necessidades “existenciais” (referidas à mera autoconservação do homem particular) e necessidades “propriamente humanas” – referidas ao “indivíduo”, cuja qualidade de vida encontrar-se-ia necessariamente vinculada à qualidade de vida dos demais indivíduos, “determinadas” social e historicamente e não-redutíveis a “necessidades humanas alienadas” sintetizáveis pelo “possuir”. O autor pergunta-se, então, de que maneira esta concepção de necessidades “propriamente humanas” possa ser aproveitada para se pensar “radicalmente” a dialética entre o “primário” e o “secundário” no que diz respeito à situação sanitária concreta no Brasil; e detecta dois tipos de falhas no Relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde: a) a subsunção da efetiva dialética entre os dois tipos de necessidades a meras necessidades quantitativas e existenciais, portanto “primárias”; b) a referência de suas propostas de reforma ao homem-particular, ao invés do indivíduo, e isso contradizendo paradoxalmente as declarações pragramáticas do documento sobre o “desenvol-vimento pleno do ser humano em sua individualidade” (que retoma o preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde de 1946: o completo bem-estar físico, psíquico e social).

Assim, o duplo sentido da palavra Aufhebung nos remete para um fundo cego da palavra ne-cessidade; em particular, se pensarmos em ter-mos da “necessidade radical”.

Este fundo sem fundo encontra-se escondido na sentença tida como o texto mais antigo do pensamento ocidental: o fragmento de Anaximandro que nos fala de uma lei de necessidade. Para a epistemologia de Anaximandro, o “princípio” (arché) de todas as coisas é o “indeterminado” ou “ilimitado” (apeiron) que deve ser separado dos quatro elementos primordiais (fogo, ar, água e terra), pois estes, hostis entre si, acabariam por destruir o próprio apeiron enquanto princípio gerador de tudo aquilo que existe. Mas, no que nos concerne aqui, o fragmento de Anaximandro diz algo de extrema importância sobre o conceito de necessidade, pois, para o sábio Anaximandro, na passagem para a existência, as coisas são submetidas à destruição “conforme necessidade” (katá tó Kreón), infligindo umas às outras “a penalidade da sua injustiça conforme a ordem do tempo” (Diets-Kranz, 1966). A condição do que existe, inclusive a condição humana, é de estar submetido à lei da necessidade e à lei do tempo, algo inevitável, destinal. Como sintetizará, muito depois, Ortega y Gasset, a vida para o humano é uma “realidade radical” inelutável. Ora – como afirma Severino (1980) – durante toda a história do Ocidente, a necessidade nunca foi pensada na sua radicalidade e todas as palavras (sinônimos, paráfrases) que tentaram dizer algo a seu respei-to, obscureceram seu sentido originário, inominável, tomando-se palavras doentes.

É por isso, acredito, que deveríamos radicalizar o conceito de necessidade, no duplo sentido de: a) aprofundar o seu fundo sem fundo; b) detectar a sua parte destinal. Aprofundar “até a raiz”, até às palavras primordiais que dizem respeito ao espanto e à revolta perante a finitude e a precariedade, à lei de necessidade simbolizada pelo mito da expulsão do Éden e que marca a condição ontológica de cada humano e de todos os humanos, radicalmente dividida entre um saber distinguir entre o bem e o mal e um não saber como sobreviver para além de determinados limites, independentemente da sua “evolução” graças ao saber-fazer da tecno-ciência.

Em conclusão, ao ser enunciada, a “necessidade radical” esconde um sentido inaudito que parece resistir à liberdade e à história, à autonomia humana, que, pela lei de necessidade, encontra-se destinalmente vinculada à heteronomia, deixando aparecer uma impossível Aufhebung, pois os querubins armados do mito bíblico guardam o caminho da árvore da vida que, para todo ser humano, é também a árvore da precariedade e da finitude, metáfora de lei de necessidade.

Podemos, portanto, perguntar se a queixa contra as supostas “reduções” acarretadas pela distinção entre necessidades “primárias” e “secundárias”, entre necessidades da sobrevida e da qualidade da vida, não remeteriam, em última instância, para uma revolta perante o espanto frente à condição humana submetida à lei da necessidade, conforme a ordem do tempo e da destruição, recalcada pelos Ulisses do nosso tempo que substituíram à “barreira cerática” as construções da realidade virtual, vindo a ocupar, desta forma, o lugar do avestruz que, enquanto esconde a cara no buraco, esquece de estar sendo depenado, sem piedade, no lugar que mais mostra a sua fragilidade? A comicidade desta imagem – “imortalizada” pelo psicanalista Jacques Lacan e retomada, recentemente, pelo epidemiologista Luis David Castiel – não impede que ela revele o fato de uma tragédia que se consome no dia-a-dia dos humanos, submetidos à lei de necessidade simbolizada pelo mito da expulsão do Éden, isto é, desde que Adão se tomou Homo sapiens, cujas “pretensões em ocupar a terra, e a reinar sobre ela e aquilo que nela se encontra, se concretizaram cada vez mais” (Allan, 1991: 11). Ou será que a perdição é só do outro?

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATLAN, H., 1991. Tout Non Peut-Ettre. Paris: Ed. Du Seuil.

DIELS-KRANZ,1966. Die Fragmente der Vorsokratiker. 12ª ed., Berlin.

SEVERINO, E., 1980. Destino della Necessitá. Milano: Adelphi.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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