EDITORIAL / EDITORIAL
As pós-graduações brasileiras vivem hoje um momento crucial de redefinição de seu projeto acadêmico e de sua missão. Neste momento em que a sociedade procura formular e implementar estratégias viáveis para saldar sua enorme e antiga dívida social, resgatando o papel fundamental do ensino primário como pilar do desenvolvimento científico e tecnológico, torna-se imperativo rever prioridades. Isto implica novo pacto político entre os diferentes atores sociais envolvidos, capaz de assegurar critérios de excelência que orientem a adequada alocação dos recursos públicos nas universidades e institutos de pesquisa, ampliando e impulsionando ao mesmo tempo áreas promissoras para o avanço do conhecimento.
Nesta conjuntura complexa, que sinaliza a possibilidade de novos rumos e perspectivas para a política de ensino em escala global, as pós-graduações em saúde pública defrontam-se, nos vários países, com um desafio adicional, relacionado à própria natureza abrangente e necessariamente disciplinar de seu objeto de trabalho. A rápida especialização, requeridas pelos avanços do conhecimento nesta área, acabaram com a figura tradicional do sanitarista, capaz de percorrer sozinho, por seu espírito pioneiro, amplo espectro de disciplinas e técnicas. Ao mesmo tempo, profundas mudanças na estrutura de prestação de serviços de saúde, levando a novas formas de articulação público-privado, aliadas à crise do socialismo real, colocaram também em xeque algumas formulações teóricas abrangentes da política de saúde por alguns cientistas sociais. Estas transformações evidenciaram a insuficiência de análises que tendiam a privilegiar certa visão restrita da reforma do Estado, como se ela pudesse se limitar a mudanças no aparato governamental e como se este pudesse ser tratado independentemente das forças sociais que o sustentam, ignorando-se relações formais e informais com interesses empresariais e de mercado que caracterizam a chamada "privatização do Estado".
É importante alertar, contudo, para o risco da aceitação passiva de uma interpretação equivocada e negativista das implicações desta crise de valores e de projetos: é como se as conquistas de toda uma geração marcada pela intensa produção intelectual, pelo compromisso social e pela militância, tendessem agora a ser ignoradas por uma nova geração supostamente fadada à anomia social e à falta de memória, pela excessiva especialização e pela fragmentação do saber.
Certamente não será possível um debate sério do projeto acadêmico das pós-graduações em saúde pública no país sem o enfrentamento, com ousadia e criatividade, desta questão, que permeia o inconsciente coletivo da área. Opções para o seu equacionamento implicarão necessariamente o fortalecimento do corpo docente e discente, viabilizando-se novos projetos de reestruturação curricular, novos recortes temáticos, identificação de áreas de excelência e de áreas prioritárias para o investimento em pesquisa e novos mecanismos de avaliação da produção acadêmica, capazes finalmente de viabilizar a consolidação da meritocracia.
Esta reestruturação tão necessária ao avanço das pós-graduações nesta área certamente passa por um grande desafio, imposto pela transdisciplinaridade: a possibilidade de construir articulações estratégicas com a pesquisa biomédica, exigências do rápido processo de inovação científica e tecnológica no campo da saúde em escala global, assegurando ao mesmo tempo a ampliação da importante produção acadêmica no campo das ciências sociais e políticas, reconhecida internacionalmente como conquista da saúde pública na América Latina, em particular no Brasil.
O enfrentamento deste desafio requer uma efetiva política nacional de ciência e tecnologia em saúde tão bem formulada em outubro do ano passado, pelos diferentes atores envolvidos na I Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde. Somente a consolidação deste esforço coletivo, redefinindo a atuação das várias instituições na área, permitirá conferir à Saúde Pública um novo status, inserindo-a no processo de transformação social tão necessário à viabilização de uma sociedade mais eqüânime, sonho dos velhos sanitaristas e cientistas sociais.
Cristina de Alburquerque Possas
Coordenadora da Pós-Graduação
Escola Nacional de Saúde Pública
Graduate studies in Brazil are currently undergoing a crucial stage of redefinition in their academic project and mission, At a time when Brazilian society, seeks to formulate and implement viable strategies for paying off its huge, historical social debt, reviving the fundamental role of primary education as the backbone for scientific and technological development, it becomes imperative to review priorities. This implies a new political pact among the various social actors in order to guarantee criteria for excellence that orient the proper allocation of public resources in universities and research institutions, simultaneously broadening and stimulating promising areas for the advancement of knowledge.
Within such a complex political context, which points to the possibility of new directions and perspectives for educational policy on a global scale, graduate studies in the field of public health in various countries are facing an additional challenge, related to the very farreaching and necessarily transdisciplinary nature of the object of their work. Rapid specialization, required by the progress of knowledge in this field, have swept away the traditional public health professional, once capable of single-handedly tackling a broad spectrum of disciplines and techniques with his/her pioneering spirit. At the same time, profound structural changes in the provision of health care services, leading to new forms of articulation between the public and private sectors, combined with the crisis experienced by real socialism, have also challenged some of the broad theoretical formulations concerning health policy as produced by various social scientists. Such changes have revealed the insufficiency of analyses concentrating on a certain narrow view of state reform, as if the latter could be limited to changes in the government apparatus, and as if this in turn could be dealt with regardless of the social forces sustaining it, thus ignoring the formal and informal relations with business and market interests characterizing the so-called privatization of the state".
However, it is important to point out the danger of passive acceptance of a mistaken and negativist interpretation of the implications of this crisis of values and projects, as if the gains of an entire generation marked by intense intellectual production, social commitment, and militancy now tended to be ignored by a new generation, supposedly condemned to social anomie and amnesia by excessive specialization and fragmentation of knowledge.
It will certainly not be possible to undertake a serious debate concerning the academic mission of graduate courses in public health in Brazil without daringly and creatively dealing with this issue, which no doubt permeates the collective unconscious in this field. Solutions to the problem necessarily imply a strengthening of both the faculty and student bodies, making possible new proposals for restructuring of the curriculum, new thematic approaches, identification of areas of excellence and priority areas for investment in research, and new mechanisms for evaluation of academic production, all finally capable of consolidating meritocracy.
This restructuring, so necessary to the advancement of graduate studies in this field, is certainly facing a major challenge imposed by transdisciplinarity, i.e., the possibility of building strategic articulations with biomedical research, requisites for the rapid process of scientific and technological innovation in the field of health on a global scale, meanwhile ensuring a broadening of important academic production in the field of social and political sciences, internationally acknowledged as an achievement by public health in Latin America, particularly Brazil.
The meeting of this challenge requires a nationwide project capable of implementing an effective national policy for science and technology for the health sector, so well discussed and formulated last October by participants in the 1st National Conference on Science and Technology in Health. The consolidation of this collective effort, which will require the redefinition and integration of action by the various agencies in the field, is the only way to give Public Health a new status, integrating it into the process of social change that is so needed for building a more just society, a longstanding dream of public health professionals and social scientists alike.
Cristina de Albuquerque Possas
Coordinator of Graduate Studies
National School of Public Health