Doenças Infecciosas Emergentes no Reino da Complexidade: Implicações Para as Políticas Científicas e Tecnológicas
Emerging Infectious Diseases in the Realm of Complexity: Implications for Scientific and Technological Policies

Marília B. Marques[1]

 

 

MARQUES, M.B. Emerging Infectious Diseases in the Realm of Complexity: Implications for Scientific and Technological Policies. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 361-388, Jul/Sep, 1995.
The current emergence and global dissemination of some new and resurgent infectious diseases have surpassed national frontiers, increasingly affecting developing and also developed countries. This study stresses that this outburst is affecting the predictability of dominant health transition approaches. This paper analyses, from epistemological and policy viewpoints, alternative approaches in order to confront these new global epidemiological trends.

Key words: Virus; Human Parasites; Infectious Diseases; Epidemiological Transition; Complexity

 

 

INTRODUÇÃO

Surpreendentemente, as doenças infecciosas emergentes e re-emergentes, voltaram a colocar os sistemas de saúde de países desenvolvidos e em desenvolvimento frente a frente com uma série de incertezas e riscos de grande magnitude.

Sucessivamente, vão sendo descritos novos episódios de infecções, como a pandemia global do HIV/AIDS, a contínua disseminação dos vírus da dengue e o freqüente aparecimento de doenças previamente não reconhecidas como as febres hemorrágicas, além do ressurgimento da tuberculose e da cólera, em novas formas.

Doenças infecciosas emergentes estão estimulando discussões de temas políticos, como as possíveis conexões entre engenharia genética/novos agentes patógenos e armas biológicas (Geissler, 1993; FAS, 1993), o tráfico global de viroses (Morse, 1993), o intercâmbio de doenças entre o velho e o novo mundo (Berlinguer, 1993). Além do mais, estão renovando as esperanças de que a cooperação científica etecnológica internacional ajude a decifrálas e impeça a propagação mundial (Jain, 1991; Doll, 1992). A Federation of American Scientists (FAS), por exemplo, defende um Programa para o Monitoramento de Doenças Emergentes (ProMED), de alcance global (FAS, 1993).

Simultaneamente, grandes mudanças estão se processando no, interior da pesquisa em saúde, sobretudo no campo da biologia molecular e do desenvolvimento das técnicas de engenharia genética e as perspectivas científicas e tecnológicas para a intervenção sobre as doenças infecciosas e parasitárias nunca foram tão promissoras.

A tomada de decisões políticas e gerenciais, internacionalmente, deparase, portanto, com os novos desafios de esclarecer e explicitar os riscos e as oportunidades na definição da agenda de pesquisa em saúde e na escolha de tecnologias estratégicas.

Neste trabalho discutimos uma possível estratégia alternativa para enfocar tais fenômenos complexos, concentrando-nos, sobretudo, nas implicações que o tema oferece para a formulação de políticas científicas e tecnológicas em saúde.

 

O PROBLEMA

Em 1993, nos Estados Unidos, as investigações epidemiológicas de casos de doença grave, devido à Escherichia coli cepa O157:H7, comprovaram a relação com o consumo de carne moída industrializada, servida em cadeia de restaurantes de fastfood (Berkelman et al., 1994).

Surtos de doenças como essa, desconhecidas ou não, de origem infecciosa, que passam a ter uma incidência crescente em seres humanos, em um período de tempo recente e que apresentam riscos de aumento progressivo no futuro próximo, introduzem o conceito de doenças emergentes e re-emergentes, também denominadas de novas doenças infecciosas.

Em geral, são infecções não reconhecidas previamente e que acometem pessoas vivendo ou trabalhando em áreas que atravessam mudanças ecológicas: o deflorestamento e o reflorestamento aumentam a exposição a insetos, animais e a fontes ambientais que podem albergar agentes infecciosos novos ou incomuns.

Estudos da distribuição geográfica de parasitas e de doenças transmitidas por vetores revelam a existência de sinergismos entre destruição de florestas tropicais, perda de biodiversidade e alterações climáticas, com impactos potenciais em saúde (Dobson & Carper, 1993; Skole & Tucker, 1993; Walsh et al., 1993). Somamse novas doenças em seres humanos e novas ocorrências em plantas e animais, atestando a contínua vulnerabilidade global às doenças infecciosas.

A emergência da doença de Lyme, desconhecida nos Estados Unidos até duas décadas atrás, foi, em parte, conseqüência do reflorestamento e do crescimento de populações de veados, no nordeste americano. Atualmente, é a doença transmitida por artrópodes mais comum naquele país, causa de elevada morbidade em áreas suburbanas e rurais (Barbour & Fish, 1993).

No Brasil, além do recrudescimento da malária em áreas de garimpo, da dengue, do HIV/AIDS, da cólera, são descritas entre as doenças emergentes algumas viroses como a febre oropouche e a encefalite do rocio (FAS, 1993). Recentemente, foi isolado um novo arenavirus, denominado Sabiá, a partir de um caso fatal de febre hemorrágica, inicialmente diagnosticado como sendo febre amarela (Coimbra et al., 1994).

O Centers for Diseases Control and Prevention (CDC, 1994) considera que as novas doenças infecciosas, tanto podem ser o resultado de mudanças evolutivas nos microorganismos, como podem resultar da disseminação de doenças conhecidas para novas áreas geográficas ou novas populações humanas.

Além das anteriormente mencionadas, o CDC fornece outros exemplos de doenças infecciosas emergentes e re-emergentes verificadas nos Estados Unidos: Cryptosporidiosis; Coccidioidomycosis; doença pneumocóccica resistente a múltiplas drogas; infeccções enterocóccicas resistentes à vancomicina; Influenza A/Beijing/32/92; infecções por Hantavirus.

Fora dos Estados Unidos, o CDC fornece os seguintes exemplos: Cólera, na América Latina; Febre Amarela, no Kenya; Vibrio cholerae O139, na Ásia; E. coli O157:H7, na África do Sul e em Swaziland; Febre do Rift Valley, no Egito; Shigella dysenteriae resistente a múltiplas drogas, em Burundi; Dengue na Costa Rica; Difteria, na Rússia.

A re-emergência de doenças infecciosas também é associada ao desenvolvimento de resistência aos agentes terapêuticos conhecidos (por exemplo: malária, doença pneumocóccica) e à interrupção de medidas previamente disponíveis para o controle de infecções como cólera, tuberculose, coqueluche.

Nos últimos 20 anos, também as infecções por fungos oportunistas aumentaram acentuadamente e hoje muito contribuem para a morbomortalidade em ambientes hospitalares. São freqüentes os casos de candidíase invasiva, de aspergilose pulmonar invasiva, de pneumonia por Pneumocystis carinii. Este crescimento, em parte, foi um resultado paradoxal dos avanços médicos, incidindo, sobretudo, em indivíduos tratados com agentes antibacterianos de largo espectro, ou submetidos a procedimentos invasivos, como catéteres e dispositivos protéticos e na supressão imunológica verificada em pacientes transplantados, na quimioterapia do câncer, nos casos de HIV/AIDS, entre outras condições debilitantes (Georgopapadakou & Walsh, 1994).

O Institute of Medicine (IOM, 1992) lançou, nos Estados Unidos, em 1992, um relatório entitulado "Emerging Infections: Microbial Threats to Health in the United States", reafirmando que as novas doenças desconhecem fronteiras nacionais e reconhecendo que o sistema de saúde dos Estados Unidos não está capacitado para detectar surtos de novas doenças infecciosas.

O CDC (1994) propôs a criação de um sistema para fortalecimento da vigilância global das infecções emergentes enfatizando, entre outros aspectos, o fortalecimento das notificações, o estabelecimento de redes sentinelas de vigilância e de centros de pesquisa epidemiológica.

A situação atual nos sugere, portanto, que múltiplos e complexos fatores parecem contribuir com a presente explosão das novas doenças infecciosas, as quais, por sua vez, estão dando novo impulso à pesquisa em saúde.

Tendo em conta as inúmeras incertezas que cercam estas doenças, para levar adiante nossas discussões, partiremos da seguinte indagação geral: Serão as doenças infecciosas emergentes e re-emergentes resultados negativos da ação do homem sobre sistemas naturais que tem levado à degradação dos sistemas ecológicos planetários?

 

O TEMPO E SUAS RACIONALIDADES

Afirmar que ciência, tecnologia, sociedade e dinâmica evolutiva formam um conjunto de noções complexas é fazer uma assertiva óbvia. Não constitui, porém, uma obviedade, afirmar que o tempo exerce um papel importante na definição dessa complexidade. Tempo e risco também constituem dois importantes elementos na análise do processo de desenvolvimento científico e tecnológico.

Concordando com Bifani (1993), pensamos que o tempo deve ser considerado segundo diferentes racionalidades. A racionalidade do tempo social é fundamentalmente de curto prazo; a do tempo do desenvolvimento científico e tecnológico é, basicamente, de longo prazo; a racionalidade do tempo da dinâmica evolutiva dos sistemas naturais é, essencialmente, de muito longo prazo.

Alguns autores consideram, com criticismo, que os métodos e técnicas contemplados pelas análises formais do risco em saúde têm um corte predominantemente utilitarista, lógico-positivista, no qual a predição de eventos visa à diminuição da sua ocorrência pela redução da margem de incerteza (Hayes, 1992).

De fato, é a previsibilidade do risco de ocorrência de eventos que possibilita orientar a intervenção, permitindo que a racionalidade de curto prazo predomine no tempo social em saúde. As críticas não deveriam esquecer as motivações práticas presentes no horizonte das análises de risco em saúde: além do controle e erradicação de doenças, incluem a avaliação de produtos e procedimentos médicos, a avaliação de desastres tecnológicos e naturais e os planos de seguro saúde.

Diferentemente, entretanto, na lógica de muito longo prazo dominante na dinâmica evolutiva dos sistemas naturais, a imprevisibilidade introduz complexidade. Como orientar a intervenção quando se está diante de fatos imprevisíveis?

A evolução é um processo baseado na transmissão de informação. Os intervalos de tempo nos processos evolucionários são longos, podendo ser centenários, seculares. A prosperidade humana teria no desenvolvimento do cérebro, no plano biológico, a sua mais significativa característica evolucionária pregressa. O desenvolvimento da espécie humana é, em sua maior parte, tributado à evolução cultural, não se tratando de mera evolução genética. Na espécie humana, a evolução cultural possibilita que a experiência adquirida possa ser transmitida oralmente ou através da palavra escrita de uma geração para a seguinte.

Com o advento do paradigma da informação, das técnicas de computação (Marques, 1991; Gallopín, 1992), a capacidade de acumular e transmitir informações ampliouse de tal modo que provocou uma aceleração no tempo evolucionário do homem. O processo evolucionário (de comunicação/troca de informação) humano consome muito menos tempo em comparação com o das outras espécies biológicas.

Conseqüências negativas desse sucesso evolutivo do homem seriam as muitas mudanças, qualitativas e quantitativas, verificadas nos componentes incerteza e risco no cotidiano da vida. Os problemas ecológicos e ambientais da atualidade costumam ser vistos como sendo conseqüências, em essência. do sucesso biológico da espécie humana e do papel dominante da ação do homem sobre os diversos ecossistemas e de sua capacidade de dominar mecanismos de controle biológico (Holliday, 1983: Smith. 1986). A acumulação de informação científica nas ciências da vida. ao mesmo tempo que possibilitou ao homem manipular a informação genética. também implicou a diminuição da biodiversidade global. através da intervenção humana nos ecossistemas naturais. Mudanças dramáticas na sociedade, na tecnolooia e no ambiente estariam, portanto, conduzindo a humanidade para uma nova era de confronto com a morte e com a invalidez. Estariam favorecendo a evolução/disseminação de agentes patogênicos, fazendo com que o espectro de doenças infecciosas se altere e expanda.

As reflexões de Tiezzi (1988) sobre tempos históricos e tempos biológicos e os problemas da nova ecologia são interessantes: a introdução de uma espécie como o homem. que tem múltiplas relações com outras espécies, em um sistema natural, não aumenta a complexidade do sistema, podendo, pelo contrário, significar a simplificação do mesmo. Os danos sobre o meio ambiente, o incremento descontrolado de algumas espécies, a destruição de ecossistemas inteiros seriam provocados por essa ação "simplificadora" do homem.

Os resultados da ação "simplificadora" do homem sobre os sistemas naturais seriam, portanto: desflorestamento, desertificação, erosão do solo, degradação das terras irrigadas, poluição ambiental e agrícola, aquecimento global, destruição da camada de ozônio, extinção de espécies, emergência de novas doenças.

Tiezzi acrescenta: o homem inventou para si "mutações" para adaptarse ao meio ambiente, através dos instrumentos científicos e tecnológicos com que se presenteou, falsificando o seu próprio "tempo biológico".

Corroborando a tese da falsificação do próprio tempo biológico pelo homem, citamos as técnicas de fertilização artificial, a liberação de microrganismos geneticamente modificados no ambiente, as variedades engenheiradas de plantas e vegetais.

 

COMPLEXIDADE E DOENÇAS EMERGENTES

Para o Grupo de Harvard (Levins et al., 1994), um conjunto de cientistas e profissionais de diferentes áreas de especialização e que se reúne regularmente desde 1991, qualquer análise efetiva de doenças emergentes deve reconhecer no estudo da complexidade, o desafio científico central dos tempos atuais.

De fato, a atual voga em torno da complexidade tem no grupo de físicos do Santa Fe Institute, de Los Alamos, a meca das pesquisas norteamericanas a respeito. A discussão da complexidade, por sua vez, é relacionada à teoria do caos ou o estudo dos sistemas que podem ser alterados, de infinitas e, freqüentemente, imprevisíveis maneiras, a partir de inputs – ou estímulos ou mudanças – mínimos.

Tarride (1994), discorrendo sobre sistemas e complexidade com base em diferentes autores, refere que, na década de 1970, um grupo de matemáticos, físicos, biólogos, transitando em direção à desordem, buscava encontrar os nexos entre diferentes irregularidades presentes na natureza. O estudo do caos constituirseia, desde então, em uma visão transdisciplinar que assume a natureza multidimensional e global dos sistemas.

Para Tiezzi e muitos outros ecologistas, a ecologia é a ciência da complexidade: o caminho da sobrevivência dos sistemas vivos sobre a Terra pode ser não favorecer a futura complexidade do indivíduo e, conseqüentemente, favorecer a manutenção da complexidade dos ecossistemas. Holliday (1983: 51) diz que "a extraordinária característica do processo de seleção natural é que ele pode criar a ordem onde previamente existia o caos, e, a partir de um certo nível de ordem, poderá subseqüentemente criar níveis de complexidade cada vez maiores".

Para Tarride, o paradigma (sic) da complexidade, sem pretender substituir uma maneira clássica de fazer ciência por uma "nova ciência", produziu o reconhecimento da necessidade de abordar os problemas atuais que afetam ecossistemas e seres humanos, de maneira diferente e complementar à tradicional: é nesse desafio que o pensamento complexificador e a modelização sistêmica deverão mostrar toda a sua potencialidade.

O reconhecimento da insuficiência do procedimento de classificar uma dada doença em infecciosa, ambiental, psicossomática, autoimune, genética ou degenerativa, levou o Grupo de Harvard a considerar uma nova doença infecciosa como sendo um fenômeno inesperado, que resulta de múltiplas condições, derivadas de mudanças observadas não apenas no núcleo das células, mas verificadas ao redor de todo o globo terrestre, incluindo mudanças na ecologia, climáticas e nos padrões econômicos.

Verificase que o Grupo de Harvard está em busca de uma estratégia de abordagem transdisciplinar que integre parâmetros ecológicos, sociais e biológicos e que compreenda o estudo da complexidade, no conhecimento do fenômeno imprevisível.

Richard Levins, ecologista e geneticista de populações e uma das mais destacadas lideranças acadêmicas do Grupo de Harvard, integrou, nos anos 1970, o grupo de cientistas esquerdistas de Boston, que se intitulava "Grupo de Estudos Sociobiológicos da Ciência para o Povo" e que ganharia fama pelas duras críticas feitas ao livro "Sociobiology: The New Synthesis", do entomologista Edward O. Wilson, da Universidade de Harvard.

Neste livro, Wilson codifica a Sociobiologia como um ramo da Biologia Evolucionária, especialmente da moderna Biologia de Populações que se dedica ao estudo, do ponto de vista biológico, da natureza e das bases do comportamento animal, ou, mais precisamente, do comportamento social animal, contemplando desde as formas mais simples, passando pelos insetos, invertebrados inferiores, mamíferos, primatas e chegando ao Homo sapiens. De acordo com Ruse (1983), seu maior mérito é o esforço de juntar explicação cultural e explicação biológica, na análise do comportamento social humano.

Apesar da virulência das críticas dirigidas a Sociobiologia e, em especial, a Edward O. Wilson, incluindo acusações de nazismo, reacionarismo, visão preconceituosa da mulher e dos homossexuais, a Sociobiologia continua atual. Isto se depreende das pesquisas recentes que tentam comprovar a base genética de certos atributos sociais humanos, como o alcoolismo e a homossexualidade.

Argumentamos que, atualmente, o Grupo de Harvard, nada tem a ver com as polêmicas passadas suscitadas pela Sociobiologia de E. Wilson e de outros autores.

Encontramos, entretanto, uma outra semelhança com o passado nesta busca de um novo marco ou quadro teórico para a história natural das doenças e que seja alternativo aos conceitos de causalidade unidirecional, de causas necessárias e suficientes e de rede de causas. De fato, as atuais preocupações com a complexidade atraem novos interrogantes para o velho problema da causalidade e para os domínios até certo ponto dogmatizados, dos determinantes sócio-econômicos em saúde.

Esse tema foi, e ainda é, objeto de várias propostas teórico-metodológicas geradas, em grande parte, no âmbito do pensamento social em saúde (Arouca, 1975; Goldberg, 1990). Nessa visão crítica, tratase de introduzir um modelo determinístico, onde um valor político é conferido às variáveis (determinantes) sócioeconômicos: as raízes causais da deterioração da saúde, da ecologia e da sociedade estão fixadas nas contradições internas das estruturas sociais e econômicas prevalecentes.

A estratégia proposta pelo Grupo de Harvard denota, por sua vez, uma grande preocupação com os sistemas adaptativos complexos, pelo fato de as novas doenças infecciosas estarem questionando a previsibilidade implicita em trajetórias ou perfis epidemiológicos paralelos ao processo de desenvolvimento econômico.

A emergência de novas doenças infecciosas está, portanto, fertilizando novas aproximações transdisciplinares, onde somam-se as contribuições de ecologistas marinhos, microbiologistas, epidemiologistas, engenheiros, cientistas sociais e outros especialistas. Em seus esforços, tratam de compreender os sistemas vivos complexos, nos quais se processa a evolução de patógenos desconhecidos ou não.

Nesse novo marco, em um trabalho prévio (Possas & Marques, 1994), discutimos em que medida a emergência e a disseminação global de doenças infecciosas novas e re-emergentes estão contribuindo para acentuar a complexidade dos perfis de saúde e como esta tendência pode afetar a previsibilidade – ou a capacidade de efetuar prognósticos – implícita nas abordagens predominantes da transição em saúde. O enfoque principal daquele trabalho foi analisar a inadequação das abordagens tradicionais da transição epidemiológica para lidar com essa complexidade. Sugerimos que um enfoque abrangente, transdisciplinar, incorporando as análises contemporâneas da complexidade, baseadas na ecologia, na teoria evolucionária, nas ciências sociais, na ciência da informação, poderia fornecer os elementos para a formulação de um novo quadro de referências teóricas para a transição epidemiológica.

Acreditamos que as suposições clássicas da dinâmica demográfica, a respeito das possíveis conseqüências, no longo prazo, do envelhecimento populacional. do crescimento populacional e da migração, estão sendo abaladas porque desconhecemse as interações das novas doenças infecciosas com esses processos.

Proliferam atualmente os vaticínios incapazes de dar conta das relações desafiadoras que vão sendo estabelecidas entre mudanças sociais e ambientais e surgimento de novas doenças infecciosas: desequilíbrio ambiental e alterações climáticas, explosão de populações humanas, crescente mobilidade de bens, serviços e pessoas, avanços técnicos, mudanças comportamentais e guerras. Estas mudanças propiciam novos contactos de seres humanos com insetos e animais que são reservatórios de doenças, assim como a criação de novos nichos para agentes de doenças e vetores.

Como interpretar, neste novo contexto global, o surgimento de novas doenças infecciosas? Sem dúvida, a complexidade tem raízes na imprevisibilidade, pois, como efetuar a predição de tendências demográficas e epidemiológicas, ter 100% de precisão na previsão do curso futuro da fecundidade, da mortalidade, da migração estando diante de fatos incertos e inesperados como o surgimento de novas doenças infecciosas?

 

ABORDAGEM PROSPECTIVA DA COMPLEXIDADE

Tem ampla aceitação a suposição de que o conceito de transição epidemiológica deve orientar o planejamento do tipo e da escala das necessidades em saúde que podem ser esperadas no futuro, dentro de diferentes países (Phillips, 1993). Pouco tem servido a esse objetivo, entretanto, os vaticínios determinísticos, com freqüência catastróficos, baseados em perfis epidemiológicos estáticos (Possas & Marques, I 993).

Alternativamente, por que não supor que antecipações ou projeções dinâmicas, tendo por base diversas conjecturas epidemiológicas, políticas, sociais, mercadológicas, culturais, etc., orientarão melhor, tanto o planejamento dos serviços de saúde quanto a formulação da política científica e tecnológica em saúde?

Aprofundemos esta questão, levantando outra indagação geral: Como abordar o futuro da saúde no mundo e antecipar o que significará para o homem?

Qualquer imagem do futuro é sempre um cenário contendo diversas incertezas, isto é, fatos e acontecimentos que não podem ser antecipados com precisão absoluta. O futurista canadense Norman Henchey (apud Hancock & Bezold, 1994), descreve quatro modos de pensar o futuro: o futuro possível; o futuro plausível; a futuro provável; o futuro preferível. O cenário do futuro preferível cria nos indivíduos a expectativa de um valor a ser criado e o do futuro provável permite aos homens prepararse para enfrentá-lo.

Rattner (1979: 193194), todavia, chama a atenção para um dos problemas que surgem no caminho dos artífices do futuro: a maioria dos modelos de previsão

"... pressupõe um conhecimento perfeito da realidade, concebida como um sistema cujos elementos necessariamente estariam em harmonia e cujas variáveis dependentes e interdependentes e seus padrões de relacionamento e funcionamento seriam controláveis pelos detentores do poder. Bastaria, então, mudalas ou combinálas de modo diferente, afim de se conseguir os objetivos almejados. Na realidade, os elementos componentes do sistema estão geralmente em tensão e conflito e é duvidoso que se possa chegar a um conhecimento de todas as variáveis que determinam seu funcionamento e a direção em que evolui o sistema"

Concordamos com Rattner quando argumenta que previsões do futuro baseadas em um tal determinismo histórico, encaram a história como um processo linear e progressivo, no qual o homem teria não só a possibilidade de prever o futuro, como o poder de administrá-lo, visando lograr certos fins:

"... planejadores e tecnocratas, amparados por uma visão sistêmica e determinista da sociedade, cuja origem, evolução e destino estariam de acordo com leis, decidem sobre um projeto fundamental... ". (Rattner, 1979: 193)

Contra-argumentamos, porém, que a modelagem sistêmica não é obrigatoriamente determinista e, ao contrário, constitui recurso potencialmente útil, na abordagem da complexidade, cujas raízes estão na imprevisibilidade de certos fatos. Fornece um suporte físico para a formulação de conjecturas no estudo de fatos imprevisíveis como as novas doenças infecciosas.

A seguinte idéia é central nas discussões da complexidade: sistemas adaptativos complexos podem ser quantificados, recorrendo-se com esta finalidade à modelização sistêmica, com suporte nos modelos matemáticos e físicos e na ciência da computação.

Segundo Tarride (1994) a modelização sistêmica situase entre os "paradigmas" da concepção de modelos complexos. Nela recorre-se ao conceito de projeção, enquanto que as noções de evidência ou explicação causal lhe são alheias.

De acordo com Tarride, a modelização analítica, ao contrário, é objetiva e se presta à apreensão de fenômenos previsíveis. A modelização sistêmica é projetiva e, segundo Tarride, se desenvolveu precisamente para permitir passar da previsibilidade forçada do cálculo à imprevisibilidade.

Uma análise prospectiva, sendo uma atividade projetiva, constitui, portanto, uma tarefa distinta da predição de fatos previsíveis. Enquanto a prospectiva diz respeito à antecipação, a predição requer um grau de certeza dificilmente alcançado na realidade.

De fato, as palavras predição/previsão são sinônimas que têm por significados: profecia; vaticínio; prognóstico. Ou seja, o resultado da previsão ou predição, é um vaticínio, uma profecia ou prognóstico.

A palavra prospectiva, por sua vez, diz respeito a fazer projeções no futuro. É concernente à construção de uma imagem crítica do futuro, de uma conjectura.

Ambas – previsão e prospectiva – tratam de olhar em direção ao futuro, tarefa que é por definição interdisciplinar, pluralística e de complementaridade. Se, entretanto, a predição estabelece prognósticos, a prospectiva faz conjecturas sobre o futuro.

Com efeito, a confrontação de previsões feitas no passado, com a realidade populacional atual, mostra divergências que têm a ver com a ocorrência do inesperado, como certos eventos migratórios ou certos progressos sanitários – científicos, tecnológicos – que costumam surpreender, com seus impactos, podendo tanto ultrapassar expectativas como rejeitar hipóteses (Arocena, 1993). O desvio entre a evolução esperada e a evolução real, pode oferecer, por exemplo, uma medida do grau de inovação tecnológica da medicina, no período coberto pela projeção.

Essa perspectiva crítica permitiu identificar particularidades e especifcidades e graças a ela hoje já se compreende que, com base em um prognóstico demográfico único, linear, é muito difícil conjecturar diante do incerto, do novo. Arocena fornece alguns exemplos interessantes: a Suécia e outros países do Norte da Europa evidenciam um surpreendente crescimento da fecundidade, indicando que sociedades hiperdesenvolvidas estão retornando às pautas familiares tradicionais, contrariando as previsões lineares dos enfoques dominantes da transição demográfica. No que se refere à mortalidade, encontram-se desde previsões de esperança de vida de 125 anos, até vaticínios catastróficos para as perspectivas ambientais e climáticas e para as doenças infecciosas.

É, portanto, a imprevisibilidade que nos autoriza a pensar diferentes cenários alternativos e analisar imagens prospectivas do futuro, baseadas no nosso conhecimento do presente. Ao construir conjecturas sobre diferentes possibilidades, poderemos colaborar para evitálas ou, ao contrário, para tornálas realidade. Portanto, já que os desenvolvimentos populacionais são, inerentemente, incertos – e os fenômenos migratórios, assim como as doenças emergentes, são especialmente imprevisíveis –, pensamos que os cenários prospectivos podem tornar se uma valiosa alternativa teórico-metodológica.

A efetuação de uma análise prospectiva será, necessariamente, um exercício formal, processado em um marco temporal e contingencial bem determinado e que recorrerá a diversas técnicas de antecipação. Tratar-se-á de esboçar e analisar um certo número de diferentes futuros e de construir conjecturas a respeito, com uma finalidade prática: auxiliar a tomada de decisões, a escolha, a fixação de prioridades, analisando diferentes trajetórias epidemiológicas, mantendo, de início, uma certa distância de todas elas. Este distanciamento é necessário para contornar o viés do determinismo, para o qual Keilman (1986: 52) chama a atenção: "certas projeções de populações nacionais, por se basearem em modelos determinísticos incapazes de lidar com a incerteza, acabam sendo instrumentos das políticas autoritárias".

Em síntese, a prospectiva é, essencialmente, uma atitude que olha-para-a-frente e que toma em conta, entre outros aspectos, o fato de que a oferta de certas formas de cuidados à saúde pode requerer prazos longos de implementação. Tomemos, a título de exemplo, a construção de cenários relacionando problemas de saúde de indivíduos idosos, como câncer e doenças cardiovasculares, a diferentes estilos de vida. Esta tarefa requer a formulação prévia de perguntas, como no exemplo seguinte:

"No futuro, quais são os principais desenvolvimentos que influenciarão o status de saúde dos idosos na Holanda, entre 1984 e 2000?" e "Quais são os padrões alternativos de serviços de saúde mais importantes, entre 1984 e 2000, tendose em consideração o futuro status de saúde dos idosos e o número relativo dos mesmos na população da Holanda?" (Becker et al., 1986: 16)

No caso das novas doenças infecciosas, buscar-se-á o fortalecimento e a modernização, no curto prazo, dos serviços de notificação e vigilância epidemiológica.

Embora os estudos do futuro no campo da saúde sejam ainda embrionários e em pequeno número (IHFN, 1994), diversas técnicas e procedimentos formais são amplamente utilizados no campo da prospectiva tecnológica. Entre outros, a elaboração de cenários (árvores de relevância), os métodos de consenso (Delphi, painéis de especialistas, sessões de brain storm), as análises estrutural e morfológica, as análises de impactos cruzados, a análise de insumo/produto, as técnicas de prognóstico, de simulação, de mapeamento contextual, as árvores de decisão (Godet, 1987; Rattner, 1979).

Consideramos também os Sistemas de Informação Geográfica – SIGs, um suporte físico de enorme potencial na análise prospectiva. De introdução recente no estudo das doenças infecciosas, os SIGs incorporam técnicas de geoprocessamento, imagens fornecidas por satélites e tecnologia de sensoriamento remoto.

A introdução de SIGs poderá revigorar a geografia médica, ao definir, com alta precisão, as condições topográficas e meteorológicas associadas com a abundância de parasitas (Dobson & Carper, 1993; Epstein et al., 1993). A visualização cartográfica de dados e informações detalhadas e diversas, ajuda, portanto, a construir conjecturas epidemiológicas, sobretudo tendo em conta a emergência de doenças infecciosas.

Através de modelos explanatórios preditivos da difusão da doença, a geografia médica tem pretendido oferecer concepções ecológicas integradoras da rede causal: dado um conjunto de condições antecedentes, identificase um padrão, reconhecemse relações causais e efetuase a predição do fenômeno resultante. Diante do imprevisível, porém, seus propositores também não escapam à tentação de resvalar para os vaticínios.

Pretendendo superar a geografia médica tradicional, a ecologia política da doença surgiu para analisar certas relações "escondidas" entre economia, política e o fenômeno observável. Conferindo relevância aos fatores políticos e econômicos na explicação da distribuição da doença, examina o ambiente em seu contexto social e político: o Estado e as relações sociais exercem influências sobre o ambiente e a doença. O propósito da ecologia política da doença, a causa estando tanto na estrutura social quanto no microorganismo (Mayer, 1992), é estabelecer os determinantes econômicos, sociais e políticos da doença. Contempla, portanto, um alargamento da interpretação da causação; seu conceito de causa é multifacético, incluindo comportamentos, ambiente, cultura, sociedade e germe patogênico. Esta maneira ampliada de ver a doença, coloca, entretanto, a predição da doença como um dos seus objetivos principais. Nesse particular, a ecologia política converge com os argumentos essenciais da epidemiologia crítica latino-americana, embora focalizando menos a crítica das noções de causalidade e dirigindo mais seus argumentos para registrar a predominância da análise acrítica das interações doençaambiente. Falta lhe faz, a nosso ver, a perspectiva histórica que a análise prospectiva poderá impulsionar.

 

A INTERVENÇÃO DEMOCRÁTICA

Conforme descreve Bifani (1993), da aplicação (difusão) da ciência e tecnologia no sistema social e na natureza, resulta uma miríade de efeitos diretos e indiretos, em diferentes espaços funcionais e físicos e que se materializam em diferentes horizontes temporais. Tanto o sistema social quanto a natureza, não sendo passivos, reagem a esta aplicação e o resultado é que a ação interventora original da ciência e da tecnologia inicia uma dinâmica complexa de efeitos e reações que são cada vez mais amplos, tanto em intensidade, como em extensão temporal e espacial, com fenômenos sinergéticos amplificando os impactos finais. Em conseqüência, a predição da probabilidade de ocorrência (risco) destes efeitos e reações, bem como da magnitude dos mesmos, se torna cada vez mais difícil, aumentando assim a incerteza.

Efeitos e reações inesperados – não necessariamente negativos – que podem permanecer ocultos ou escondidos e se infiltrar na totalidade das estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais, bem como na natureza, costumam escapar, ou melhor, podem deixar de ser considerados pelos processos de tomada de decisão nas atividades de formulação de políticas, planejamento, gestão e controle do desenvolvimento científico e tecnológico. Sendo esta uma situação indesejável e incômoda, que caracteriza a omissão diante do fenômeno oculto e/ou imprevisível, tornase justificado o exercício de conjecturar sobre a ocorrência do inesperado. A fixação de prioridades de pesquisa e a escolha tecnológica passarão a ser, portanto, atividades antecipatórias, tão capazes de tomar em conta os riscos de ocorrência de efeitos previsíveis, quanto de conjecturar sobre a imprevisibilidade.

A análise prospectiva, encarando o futuro como devenir, tem por finalidade contribuir para o diálogo democrático em uma sociedade (Martínez, 1993; Arocena, 1993). De fato, esta propriedade decorre do fato de ligarse à decisiva questão da democratização do conhecimento científico. Ao tomar em conta expectativas individuais e coletivas, pode impulsionar diálogos abertos e pluralísticos e suscitar o interesse social em torno de grandes opções vinculadas ao futuro.

Pode contribuir para aumentar a consciência pública a respeito das conseqüências éticas e de segurança do desenvolvimento científico e tecnológico, estimulando uma nova interação entre ciência, tecnologia, natureza e humanidade.

 

FINALIZANDO

No presente estudo, argumentamos que a abordagem prospectiva, além de assumir que a emergência de novas doenças infecciosas é um processo evolucionário complexo, no qual interagem diversos processos naturais e sociais (Eckardt, 1994), também deverá ter em conta que o tempo é uma variável arisca e que opera segundo diferentes racionalidades.

Enfatizamos que a análise das novas doenças infecciosas deve ir ao encontro do estudo da complexidade. É a imprevisibilidade das novas doenças infecciosas que conduz a este reconhecimento.

Para o enfrentamento da imprevisibilidade propusemos a realização de estudos críticos do futuro em saúde, contemplando a modelização sistêmica, os encontros transdisciplinares e a utilização de sistemas de informação geográfica, no monitoramento global das novas doenças infecciosas. Uma estratégia, enfim, que efetue conjecturas sobre o futuro, alimentada por dados e informações gerados pelo monitoramento ecológico, geográfico e evolucionário.

Essa estratégia compreenderá: análises prospectivas de curto-prazo, através do reconhecimento das condições que favorecem a re-emergência ou o recrudescimento de doenças já conhecidas e pela antecipação de mudanças ecológicas associadas à atividade humana; análises prospectivas de longoalcance, por meio de modelos baseados na ecologia evolucionária.

Finalmente, consideramos que a análise prospectiva será potencialmente útil aos processos democráticos de formulação das políticas públicas, quando novas formas de interação entre ciência, tecnologia e dinâmica evolutiva estiverem sendo cogitadas.

 

 

RESUMO

MARQUES, M.B. Emerging Infectious Diseases in the Realm of Complexity: Implications for Scientific and Technological Policies. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 361-388, Jul/Sep, 1995.
A atual emergência e reemergência de algumas doenças infecciosas ultrapassa fronteiras nacionais, afetando cada vez mais países desenvolvidos e em desenvolvimento. Este estudo alienta que a disseminação global de novas doenças infecciosas está afetando a previsibilidade implícita nos enfoques dominantes da transição em saúde. Este trabalho analisa, do ponto-de-vista epistemológico e político, enfoques alternativos para enfrentar estas novas tendências epidemiológicas globais.
Palavras-Chave Virus; Doenças Infecciosas; Parasitas Humanos; Transição Epidemiológica; Complexidade

 

 

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[1] Núcleo de Estudos em Ciência e Tecnologia, Centro de Informações Científicas e Tecnológicas em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4036, 7° andar, Rio de Janeiro, RJ, 21040-361, Brasil.
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