EDITORIAL
Bioética nos anos 90
Após duas décadas de intenso debate acerca de sua pertinência teórica e legitimidade prática, a bioética dos anos 90 é reconhecida mundialmente como campo interdisciplinar consolidado da filosofia aplicada, que tem uma relevância pública, compartilhada por usuários, comités hospitalares e conselhos de saúde, que passam paulatinamente a ter o bioeticista entre seus quadros. Prova desta relevância são os vários encontros, nacionais e internacionais, promovidos por associações profissionais, leigas ou religiosas, sobre os novos problemas éticos induzidos pelos avanços das tecnociências biomédicas. A International Association of Bioethics por exemplo, depois dos Congressos de Amsterdam (1992) e Buenos Aires (1994), promove este ano seu terceiro Congresso Mundial em São Francisco, que pretende enfocar a situação da bioética no contexto de confronto entre cultura ocidental e culturas não-ocidentais. Esta preocupação da IAB com a "diferença" faz parte do espírito de nossa época, preocupada em construir formas pluralistas de convívio, embasada num minimalismo ético capaz de combinar uma versão atualizada do universalismo humanista com políticas da diferença, que respeitem tanto o politeísmo dos valores quanto a (igual) consideração dos interesses em conflito. Mas, concretamente, e depois da primeira fase tolerante, dita "dos pioneiros" (Mori), em que coexistiam posições éticas contrastantes num mesmo friendly field (Callahan), com os anos 90, a bioética parece ter entrado numa nova fase, na qual se agudizam determinados conflitos, em particular, os conflitos entre visão leiga e visão religiosa, ou entre visão pluralista e visão fundamentalista, sobre os deveres que deveriam nortear o agir nas situações fundamentais da condição humana do nascer, viver e morrer. Uma prova deste conflito são as recentes Conferências do Cairo (1994) sobre população e desenvolvimento, e de Beijing (1995) sobre os direitos das mulheres e a saúde reprodutiva. Ambas viram delinear-se o antagonismo entre concepções diferentes sobre os deveres e os direitos humanos. Outros aspectos relevantes e polêmicos, desta segunda fase, são as preocupações crescentes com a relação entre biotecnologias de segunda geração (capazes de reprogramar sistemas vivos) e biossegurança, em particular, com os Organismos Geneticamente Modificados introduzidos no meio ambiente; a problemática, abordada pelas Ciências Sociais, do impacto da cultura dos limites sobre a saúde pública; os direitos fundamentais do indivíduo e a eqüídade na distribuição dos recursos disponíveis; a saúde ambiental e a saúde do trabalhador. Em suma, parece que a bioética; ao complexificar seu campo de reflexão e de atuação, encontra necessariamente os antigos "novos" problemas que preocupam a saúde pública.
F. Roland Schramm
Departamento de Ciências Sociais
Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz
Bioethics in the 1990s
After two decades of intense debate about the theoretical pertinence and the practical legitimacy of bioethics, in the 1990s it is being recognized worldwide as an interdisciplinary field of applied philosophy so relevant to the public interest that hospital committees and health councils have gradually come to incorporate a bioethicist in their membership. The relevance of bioethics is demonstrated by the number of national and international meetings organized by professional associations, both lay and religious, that examine the new ethical dilemmas raised by recent advances in biomedical technology. For example, the International Association of Bioethics, following conferences in Amsterdam (1992) and Buenos Aires (1994), this year is organizing its third World Conference in San Francisco with a specific focus on the situation of bioethics in the context of confrontation between Western culture and non-Western cultures. This preoccupation of the IAB with "difference" is in the spirit of the times, concerned with the construction of forms of social interaction based on a minimalist ethic capable of combining a current version of humanistic universalism with a politics of difference that respects the pluralism of values as well as the (equal) consideration of conflicting interests. But in concrete terms, after the first tolerant phase, of "the pioneers" (Mori), in which contrasting ethical positions coexisted in the same friendly field (Callahan), in the 1990s bioethics seems to be entering a new phase in which certain conflicts have become more acute, especially those between lay views and religious views, or between pluralistic views and fundamentalist views, about the obligations that should orient action in the fundamental situations of the human condition: birth, living, and death. The conflicts are reflected in the recent conferences of Cairo (1994) on population and development, and Beijing (1995) on women's rights and reproductive health. Both illustrated the antagonism between different concepts of human rights and duties. Other relevant and polemic aspects of this second phase are the growing concerns with the relationship between second generation biotechnologies (capable of reprogramming life systems) and biosecurity, in particular with genetically modified organisms introduced to the environment; the problem facing the social sciences of the impact of the culture of limits on public health, fundamental individual rights, and the equitable distribution of available resources; environmental health and workers' health. In summary, it appears that bioethics, as its field of reflection and action becomes more complex, necessarily reencounters the same old "new" problems that concern public health.
F. Roland Schramm
Departamento de Ciências Sociais
Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz