ARTIGO ARTICLE


 

 

 

 

 

Ricardo Cordeiro 1
Euclydes Custódio de Lima Filho 2
Paulo Eduardo deToledo Salgado 3


Reajustando o limite de tolerância biológica aplicado à plumbemia no Brasil  

Readjustment of the biological exposure limit applied to blood lead levels in Brazil

 


1 Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista. C. P. 543, Botucatu, SP 18618-970, Brasil. E-mail: cordeiro@fmb.unesp.br
2 Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos, Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil.

3 Departamento de Princípios Ativos Naturais e Toxicologia, Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Universidade Estadual Paulista. Rodovia Araraquara-Jaú km 1, Araraquara, SP 14801-902, Brasil.
  Abstract We randomly selected twenty lead workers from an electric accumulator factory in the State of São Paulo, Brazil, whose blood lead level and urinary d-aminolevulinic acid level were below 60 mg/dL and 10 mg/L, respectively. The workers were submitted to a standard motor nerve conduction velocity study of the right radial nerves, in addition to blood lead dosage. Based on these measures, a first-order linear regression model was adjusted, where the dependent variable was conduction velocity and the independent variable was the blood lead level. Analyzing the fitted model, we inferred that the negative predictive value of the Brazilian biological exposure limit is 0.63. In order for the above biological exposure limit to have a negative predictive value of 0.99, the study suggests that it be reduced from its present value (60 mg/dL) to 32 mg/dL.
Key words Lead; Lead Poisonings; Occupational Diseases; Worker's Health; Environmental Exposure  

Resumo Foram alocados aleatoriamente vinte trabalhadores expostos ocupacionalmente ao chumbo em uma indústria de acumuladores elétricos de médio porte, no interior do Estado de São Paulo, os quais apresentavam plumbemia e excreção urinária do ácido d-aminolevulínico, nos últimos dois anos, sempre menores que 60 µg/dL e 10 mg/L, respectivamente. Os trabalhadores foram submetidos a eletroneurografia do nervo radial direito e a dosagem de plumbemia. Com estas medidas ajustou-se um modelo de regressão linear simples de primeira ordem, tendo como variável dependente a velocidade de condução e como variável independente a plumbemia. Analisando-se a regressão ajustada, infere-se que o valor preditivo negativo do limite de tolerância biológica brasileiro aplicado à plumbemia seja de apenas 0,63. O estudo sugere que o valor do referido limite de tolerância deva ser reduzido do atual valor de 60 µg/dL para 32 µg/dL, para ter um valor preditivo negativo de 0,99.
Palavras-chave Chumbo; Intoxicação por Chumbo; Doenças Ocupacionais; Saúde do Trabalhador; Exposição Ambiental


 

Introdução

 

Embora nos países industrializados a incidência da intoxicação profissional pelo chumbo esteja diminuindo, esta doença ainda avança em muitos países do terceiro mundo. Nestes, seu controle constitui um importante problema de saúde pública, que, para tanto, utiliza-se ­ dentre outras ­ das práticas da Higiene Ocupacional.

No âmbito da Higiene Ocupacional, define-se a monitorização biológica como "a medida e avaliação de agentes químicos ou de seus produtos de biotransformação em tecidos, secreções, excreções, ar exalado ou alguma combinação destes, para estimar a exposição ou risco à saúde quando comparado a uma referência apropriada" (Berlin et al., 1982). A monitorização biológica visa a estimar a quantidade biodisponível (dose interna) do agente químico, complementando a avaliação ambiental e fornecendo uma base mais sólida para o desenvolvimento dos limites permissíveis relacionados à poluição do meio.

A monitorização biológica se dá por intermédio da determinação ­ em amostras biológicas de organismos expostos ­ de agentes exógenos, de seus metabólitos e de seus efeitos metabólicos (ILO, 1983), todos chamados genericamente de indicadores biológicos. A concentração sangüínea de chumbo (Pb-S ou plumbemia) é o indicador biológico mais importante na prevenção da intoxicação profissional pelo chumbo, bem como no acompanhamento dos trabalhadores já intoxicados.

Baseado no conhecimento atual da relação exposição/dose interna/efeito, são propostos para os indicadores biológicos limites de tolerância biológica (LTB), níveis de advertência a partir dos quais aumenta consideravelmente o risco de adoecimento (Della Rosa & Colacioppo, 1994; Siqueira, 1992; Della Rosa et al., 1991; Della Rosa & Siqueira, 1989).

Os LTB aplicados à Pb-S na maioria dos países industrializados, e por extensão em todo o mundo, têm variado ao longo das últimas décadas entre cerca de 80 mg/dL e 50 mg/dL (Repko & Corum, 1984). No Brasil, desde 1983, através do Anexo II da Norma Regulamentadora n. 7, o Ministério do Trabalho definiu como 60 mg/dL o limite de tolerância biológica para a Pb-S (MT, 1988). Recentemente, o Ministério do Trabalho complementou a Norma Regulamentadora n. 7, por intermédio da Portaria n. 24/1994, publicada em dezembro de 1994, mantendo inalterado o LTB da Pb-S (MT, 1994). Nesta Portaria, o termo limite de tolerância biológica foi substituído por índice biológico máximo permitido.

Entretanto, desde meados da década de 70, tem sido descrita a ocorrência de alterações nervosas centrais e periféricas em trabalhadores ocupacionalmente expostos ao chumbo, com plumbemias abaixo do LTB brasileiro, conforme apontam em recente revisão Cordeiro & Lima Filho (1995). É sabido que o chumbo agride o nervo periférico, levando à degeneração axonal e desmielinização, por intermédio de mecanismos ainda não totalmente esclarecidos (Cordeiro, 1995). Tais alterações se manifestam, ao exame eletroneurográfico, como diminuição da velocidade de condução do impulso nervoso, particularmente nos nervos radiais (Windebank, 1993). O relato destas alterações em um grande número de trabalhos independentes evidencia a inadequação do atual LTB propostos para a plumbemia no Brasil, e a necessidade de reajustá-los.

O objetivo deste estudo é contribuir para o estabelecimento de um novo valor para o LTB aplicado à Pb-S, menor que os usualmente adotados na maioria dos países, como forma de melhor proteger a saúde dos trabalhadores expostos ao chumbo.

 

 

Material e método

 

Processo amostral


 

O grupo estudado foi composto por vinte trabalhadores, alocados por intermédio de amostragem aleatória simples, conduzida após a realização de dois processos restritivos abaixo descritos, aplicados aos operários da linha de montagem de uma fábrica de acumuladores elétricos de médio porte (280 trabalhadores). A fábrica funcionava em regime de dois turnos diurnos fixos ­ das 7h às 17h e das 13h às 23h ­ no interior do Estado de São Paulo.

O primeiro processo restritivo, ao qual foram submetidos os 280 trabalhadores empregados na referida fábrica, consistiu de uma entrevista, e, com base nesta, foram excluídos do grupo aqueles trabalhadores que não satisfizeram a pelo menos um dos critérios abaixo:

1) Concordância em participar do estudo.
2) Ser do sexo masculino.
3) Trabalhar na empresa há no mínimo um ano.
4) Ter idade entre 20 e 44 anos.
5) Não consumir no presente ­ e em nenhum momento passado, por mais remoto que seja ­ mais que uma garrafa (600 ml) de cerveja ou uma dose (50 ml) de qualquer outra bebida alcoólica por semana.

6) Nunca ter anteriormente exercido as ocupações a seguir, sabidamente fontes de exposição a solventes orgânicos: pintor, frentista, mecânico de oficinas, operador de indústrias petroquímicas, de indústrias de calçados e de indústrias de plásticos em geral.
7) Nunca ter tido contato profissional com agrotóxicos de qualquer natureza.

Após as entrevistas, 248 trabalhadores foram excluídos do grupo, em sua maioria por não satisfazerem o quinto critério acima definido, e apenas dois por não concordarem em participar do estudo (Critério 1).

O segundo processo restritivo, aplicado aos 32 trabalhadores que não foram excluídos no processo anterior, constou de anamnese, exame clínico e exame neurológico. O objetivo da anamnese e do exame clínico foi detectar e excluir trabalhadores com uso atual ou pregresso de drogas potencialmente causadoras de neuropatias tóxicas, bem como com condições potencialmente associadas a patologias que reconhecidamente têm repercussão neurológica periférica. O objetivo do exame neurológico foi detectar e excluir trabalhadores com eventuais neuropatias periféricas não relacionadas ao chumbo. Dois trabalhadores foram excluídos nesta fase, não apresentando os trinta restantes qualquer dado positivo à anamnese, além de os exames clínico e neurológico estarem dentro dos limites da normalidade.

Finalmente, por intermédio de sorteio simples, foram alocados vinte trabalhadores entre os trinta remanescentes dos dois processos restritivos descritos, compondo assim o grupo estudado.

 

Exames gerais


 

O grupo estudado foi submetido a um conjunto de avaliações clínicas e laboratoriais gerais. Os exames realizados foram:

  aferição da pressão arterial; dosagens séricas de sódio, potássio, uréia, creatinina, TGO, TGP, g-GT, fosfatase alcalina, bilirrubina direta, bilirrubina indireta, triglicérides, colesterol, glicemia de jejum e urina tipo I.

 

Análises toxicológicas


 

O grupo estudado foi submetido a dosagens de Pb-S, ALA-U e atividade da enzima d-aminolevulínico desidratase (ALAD).

As amostras sangüíneas utilizadas para o processamento das análises toxicológicas foram coletadas entre 6h 30min e 7h 30min na empresa onde os trabalhadores eram empregados, em ambiente adequado, afastado das linhas de produção. Os trabalhadores usavam roupas próprias vindas de casa, não tendo passado pelas linhas de produção antes da coleta. Após lavagem da região de punção com água abundante, utilizou-se, para a venopunção, seringa de polietileno, inclusive o êmbolo. Na mesma ocasião, colheram-se amostras de urina em frascos de vidro comum para dosagem de ALA-U. As amostras foram todas imediatamente transportadas, sob refrigeração, para o Laboratório de Toxicologia do Departamento de Princípios Ativos Naturais e Toxicologia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Araraquara-UNESP, onde foram processadas. A determinação da Pb-S deu-se por espectrofotometria de absorção atômica, por intermédio da técnica descrita por Patriarca & Morisi (1990), utilizando-se Espectrofotômetro de Absorção Atômica AAS4-Carl Zeiss Jena, Forno de Grafite EA4 e Micropipetador MPE4. A determinação da ALA-U deu-se por intermédio de espectrofotometria visível, através da técnica descrita por Tomokuni & Ogata (1972). A determinação da ALAD deu-se por intermédio do Método Europeu Padronizado, através da técnica descrita por Berlin & Schaller (1974).

 

Análises eletroneurográficas


 

Os trabalhadores estudados foram submetidos a eletroneurografia clássica do nervo radial direito, no Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP, sempre por um mesmo profissional médico neurologista, familiarizado com a técnica do exame, seguindo sempre a mesma rotina. Este nervo foi escolhido por ser um sensível indicador da ação periférica do chumbo no sistema nervoso (Windebank, 1993). Foram medidas a velocidade de condução, a amplitude e o tempo de latência do impulso nervoso. Para tanto, utilizou-se um eletromiógrafo da marca Nihon-Kohden, modelo Neuropack 2.

 

 

Resultados

 

Durante os dois anos que precederam a realização deste estudo, os trabalhadores do grupo estudado, bem como todos os demais trabalhadores da linha de produção, foram submetidos ­ por iniciativa da empresa ­ a dosagens de plumbemia, por intermédio de espectrofotometria de absorção atômica, com periodicidade média de quatro meses. Analisando-se os resultados destes exames, observou-se que nenhuma das avaliações excedera o valor de 60 mg/dL.

Os resultados dos exames gerais acima referidos encontraram-se todos dentro dos limites da normalidade. Também as amplitudes e os tempos de latência do impulso nervoso no nervo radial direito no grupo estudado enquadraram-se dentro dos limites normais.

A Tabela 1 apresenta os resultados dos exames ALAD, ALA-U, Pb-S e velocidade de condução do impulso nervoso no nervo radial direito (VCRADd) para os vinte trabalhadores estudados, denominados T1, T2, ... , T20.

 

 

Ajustando-se um modelo de regressão linear simples de primeira ordem, tendo como variável dependente a velocidade de condução nervosa no nervo radial direito (VRADd) e como variável independente a Pb-S, obtiveram-se as estimativas apresentadas na Tabela 2.

 

 

O teste de Shapiro-Wilk não rejeitou a hipótese de normalidade dos resíduos da regressão acima, que apresentam média, variância, coeficiente de assimetria e coeficiente de achatamento iguais a, respectivamente, 0,00 m/s; 3,82 (m/s)2; -0,56 (m/s)3 e 0,01 (m/s)4.

A figura 1 apresenta a distribuição conjunta no plano das variáveis VCRADd e Pb-S para os trabalhadores estudados, bem como a reta da regressão ajustada.

A figura 2 apresenta a distribuição conjunta no plano dos resíduos da regressão ajustada e da variável Pb-S.

 

 

Discussão

 

No modelo de regressão linear simples, a cada valor da variável preditora corresponde um conjunto de valores da variável dependente, com distribuição normal, média centrada no valor predito pelo modelo e variância igual à soma dos quadrados dos resíduos dividida pelo número de graus de liberdade do ajuste (Draper & Smith, 1981). A figura 3 ilustra o acima dito.

Os dados apresentados na Tabela 2 permitem ajustar a expressão:

 

 

Tal expressão prediz a velocidade de condução do impulso no nervo radial direito como uma função linear da Pb-S atual. A qualidade deste ajuste é ilustrada pelas Figuras 1 e 2. Assumindo-se a validade da generalização destes dados, em uma primeira aproximação do problema, pode-se inferir que uma população de trabalhadores com Pb-S igual a 60 µg/dL (valor do LTB aplicado à plumbemia no Brasil, bem como em diversos outros países) provavelmente apresentará um conjunto de valores de VRADd com média estimada em cerca de 48,66 m/s e variância estimada em cerca de 4,04 (m/s)2. Estes valores são obtidos, respectivamente, por intermédio da aplicação do valor 60 à variável independente na regressão ajustada e através da soma dos quadrados dos resíduos da regressão, ponderada pelo seu número de graus de liberdade.

O limite inferior da normalidade da VRADd é estabelecido, conservadoramente, como 48,00 m/s (Kimura, 1993). O valor z associado à distância entre este e a média acima referida (48,66 m/s) é calculado como z = (48,00 - 48,66)/ = 0,33. Tal valor delimita uma área de 0,3707 na curva normal padrão. Deduz-se, portanto, que, em uma população grande de trabalhadores com Pb-S igual a 60 µg/dL, cerca de 37% apresentam velocidades de condução do nervo radial abaixo do limite inferior da normalidade, apresentando assim um inequívoco sinal de doença.

Os LTB são entendidos como concentrações de alerta, acima das quais começa a aumentar significativamente o risco de adoecer. A conclusão natural que se tira é que a adoção de valores de Pb-S em torno de 60 µg/dL como LTB é inadequada, pois já de antemão deixa atrás de si mais de um terço dos expostos doentes.

A figura 4 ilustra o referido nos dois últimos parágrafos.

Define-se valor preditivo como a probabilidade de doença dado o resultado de um teste (Fletcher et al., 1989). O valor preditivo negativo é a probabilidade de não ter a doença quando o resultado do teste é negativo ou normal (Fletcher et al., 1989). Adaptando-se esta conceituação à discussão acima, o valor preditivo negativo de uma plumbemia igual a 60 µg/dL seria 0,6293 para o grupo estudado, valor complementar à área de 0,3707 anteriormente referida. Isto é, se selecionarmos ao acaso um indivíduo do grupo estudado e dele soubermos apenas que tem Pb-S = 60µg/dL, a melhor predição sobre seu estado clínico é que a probabilidade de ele não apresentar velocidade de condução anormal no nervo radial é 0,6293. A figura 5 apresenta a relação entre o valor preditivo negativo [VP(-)] e a plumbemia, baseada nos dados obtidos neste estudo. O valor preditivo negativo foi obtido através do algoritmo VP(-) = 1 - Probnorm(z), onde Probnorm(z) é a função que retorna a probabilidade de uma variável aleatória com distribuição normal (0,1) situar-se abaixo de um valor z; neste caso, z é calculado a partir da regressão anteriormente ajustada como z = [48 - (57.06 - 0,14.Pb-S)]/.

Este estudo propõe que o LTB aplicado à Pb-S seja reajustado para um nível associado a um valor preditivo negativo de 0,99. Isto é, que seja estabelecido em um patamar que proteja de antemão 99% da população ocupacionalmente exposta. Este novo valor do LTB para a Pb-S seria aquele que implica um valor médio de VRADd situado |z0,01| desvios-padrão acima do limite inferior de 48,00 m/s, de modo a deixar na "zona de doença" apenas 1% da população, conforme ilustra a figura 6.

Finalmente, assumindo-se que a regressão ajustada vale para os trabalhadores em geral (validação externa), sugere-se que o valor do LTB para a Pb-S deva ser ajustado para 32 µg/dL para atender o requisito acima, isto é, proteger da IPCh 99% da população trabalhadora. Chega-se a este valor de duas maneiras.

Analiticamente:

 

VP(-) = 1 - Probnorm(z)
z = Probit[1 - VP (-)] = 2,33

mas, z = [48 - (57.06 - 0,14.Pb-S)]/ ,

       conforme visto anteriormente

então, 2,33 = 48 - (57.06 - 0,14.Pb-S)]/

Pb-S = 31,26, arredondados para 32.

 

Ou então visualmente, por observação direta da figura 5.

 

 

Existe tolerância biológica ao chumbo?

 

Embora no âmbito da Higiene Industrial muito se discuta sobre a viabilidade técnica e econômica de uma redução drástica do valor do LTB aplicado à plumbemia, um número cada vez maior de estudos epidemiológicos envolvendo grandes amostras vem questionando a própria legitimidade da sua existência, argumentando que o chumbo, em qualquer quantidade, provoca doença.

Esta idéia advém justamente das pesquisas que estudam as relações que se estabelecem entre a exposição ao chumbo e a hipertensão arterial.

Há cerca de um século, suspeita-se da existência de uma relação causal entre chumbo e hipertensão arterial sistêmica (HAS).

Batuman et al. (1983) referem que, ao final do século XIX, foram relatados os primeiros casos de HAS associada a nefrosclerose em trabalhadores expostos ao chumbo. Sharp et al. (1987) referem terem encontrado sugestivas evidências de associação HAS-chumbo em casos documentados de trabalhadores expostos ao chumbo no início do século XX.

Em 1935, Vigdortchik, em um estudo notavelmente bem desenhado para a época, encontrou uma freqüência de hipertensão sistólica cerca de duas vezes maior em um grupo de 1.437 trabalhadores expostos ao chumbo em relação a um grupo de 1.332 trabalhadores não expostos ao metal.

Dingwall-Fordyce & Lane (1963) referiram ter encontrado mortalidade por acidentes vasculares cerebrais significativamente aumentada em um grupo de 187 trabalhadores expostos ao chumbo.

Beevers et al. (1976) publicaram um detalhado estudo demonstrando, em um grupo de 135 hipertensos expostos apenas ambientalmente ao chumbo, plumbemia significativamente maior quando comparados com um grupo-controle emparelhado por sexo e idade, na cidade de Renfrew, Escócia.

Desde então, os estudos investigando a associação HAS-chumbo cresceram acentuadamente em freqüência e complexidade.

Hertz-Picciotto & Croft (1992) publicaram uma meticulosa metanálise, com base em extensa revisão dos trabalhos sobre a associação HAS-chumbo concluídos entre 1980 e 1992. Nela, foram analisadas mais de cinqüenta publicações, enfocando não só grupos ocupacionalmente expostos, mas também exposição apenas ambiental. Os autores comentam as dificuldades inerentes a uma revisão conclusiva de todos estes estudos, devido à grande variabilidade intraindividual (labilidade) da pressão arterial e, principalmente, à diversidade dos métodos utilizados nos vários trabalhos analisados. Fatores relacionados a influências ambientais sobre os níveis pressóricos, técnica e aparelhagem utilizada nas aferições pressóricas, variações circadianas, inclusão ou não no estudo de indivíduos em uso de medicação anti-hipertensiva, discretização ou não dos valores pressóricos, desenho do estudo, instrumental e pressupostos estatísticos utilizados, tratamento dado aos confoundings etc. restringiram a amplitude da generalização do conhecimento produzido pelos trabalhos analisados.

Não obstante, os autores concluem que: "Vários estudos bem conduzidos, nos quais a metodologia de mensuração tanto da Pb-S quanto da pressão arterial parece ser de alta qualidade, encontraram pequena mas estatisticamente significativa associação entre eles".

Hertz-Picciotto & Croft (1992) vão além em seu trabalho, discutindo a natureza causal da associação HAS-chumbo estudada. Comentam os autores que os achados são consistentes entre si na maioria dos trabalhos analisados.

Nos estudos que utilizaram desenhos longitudinais, a temporalidade causa-efeito foi apontada. Por exemplo, Weiss et al. (1986), em trabalho analisado na citada revisão, referem que: "Uma alta Pb-S é um significativo preditor de subseqüente elevação pressórica".

Nos estudos que utilizaram regressões lineares múltiplas, o efeito dose-resposta foi apontado. Por exemplo, Pirkle et al. (1985), em trabalho analisado, através de regressão linear múltipla evidenciam relação linear entre pressão arterial e o logaritmo da Pb-S.

E, finalmente, recentes estudos experimentais em animais, observacionais em trabalhadores, e estudos anatomopatológicos de base populacional suportam a hipótese de o chumbo atuar como uma nefrotoxina, bem como um vasoconstritor através de ação direta na musculatura lisa vascular, além de provocar alterações da permeabilidade vascular, da dinâmica das catecolaminas e do sistema renina-angiotensina, provavelmente através de mediadores neurogênicos (Windebank, 1993).

Uma observação importante feita por Hertz-Picciotto & Croft (1992) a partir da análise dos trabalhos referidos, é que: "Os níveis baixos de exposição em vários estudos implicam que o fenômeno (relação HAS-chumbo) não segue um modelo do tipo limiar, ou, no mínimo, qualquer limiar deve ser muito baixo". Isto é, a relação HAS-chumbo não começa a se manifestar apenas a partir de uma concentração limiar de chumbo (o que implica em não haver um limite de tolerância para o metal), ou, se isto acontece, o limiar deve ser muito baixo. Alguns trabalhos analisados, como o de Pirkle et al. (1985) por exemplo, referem explicitamente não haver evidências de um limiar de Pb-S para o início de seu efeito sobre a HAS.

É importante observar que a pequena associação referida entre HAS e chumbo tem enorme repercussão devido à ubiqüidade da HAS e ao seu notório envolvimento como o principal fator de risco para as doenças cardiovasculares, que por sua vez são responsáveis por cerca um terço dos óbitos nas regiões Sul e Sudeste do País (MS, 1987).

Pirkle et al. (1985) estimaram que, se a Pb-S da população americana entre 40 e 59 anos de idade fosse reduzida de 37% entre 1976 e 1980, após dez anos haveria uma redução de 4,7% da incidência de infartos do miocárdio, fatais ou não, de 6,7% da incidência de acidentes vasculares cerebrais, fatais ou não, e uma redução de 5,5% dos óbitos por todas as causas. Tal estimativa foi feita valendo-se da análise dos dados do Second National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES II, realizado nos Estados Unidos entre 1976 e 1980, tendo sido examinadas 20.322 pessoas amostradas aleatoriamente, e obtidas plumbemias de uma subamostra de 9.932 indivíduos).

Schwartz (1991) estimou que anualmente nos Estados Unidos deixariam de ocorrer cerca de 24.000 infartos do miocárdio e 100.000 outras doenças cardiovasculares se a plumbemia da população fosse reduzida à metade; estimativa feita a partir da análise dos dados do NHANES II, para estimar a associação HAS-chumbo, e dados do Multiple Risk Factors Trial (MRFIT), para estimar a associação doença cardiovascular-HAS.

Após a publicação da metanálise de Hertz-Picciotto & Croft (1992), ainda outros estudos continuam sendo publicados apontando a relação HAS-chumbo, como por exemplo o trabalho de Mareswaran et al. (1993), estudo transversal que demonstra um fraco efeito do chumbo metálico sobre a pressão de 809 trabalhadores ocupacionalmente expostos ao metal em uma fábrica de acumuladores elétricos de Birminghan, Inglaterra.

 

 

Conclusão

 

Concluindo, propõe-se que o limite de tolerância biológica aplicado à concentração sangüínea de chumbo em nosso meio seja imediatamente revisto. Os resultados aqui apresentados sustentam sua redução do atual valor de 60 µg/dL para 32 µg/dL.

Tal redução aproxima bastante o limite de tolerância aos níveis considerados normais para a população não ocupacionalmente exposta, fato bastante benéfico para a saúde dos trabalhadores. Parafraseando Giovanni Berlinguer, é difícil justificar que os operários que se ocupam de fabricar baterias sejam obrigados a trabalhar em condições particularmente insalubres apenas porque as baterias podem servir a todos.

 

 

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