RESENHAS REVIEWS

 

 

CONEXÃO COM A INTERNET E INFORMAÇÃO BIOMÉDICA

 

A evolução organizacional da Internet é diversa e eclética. Os analistas (Krol, 1992; Deering & Richardson, 1995) admitem sua origem em 1957, quando foi iniciado o programa ARPA (Advanced Research Projects Agency) nos Estados Unidos. Este programa de pesquisas militares (financiado pelo Departamento de Defesa do Estado) foi estabelecido para descentralizar a informação (compartilhando computadores de grande porte e outros recursos através da ARPAnet, desenvolvida durante a década de 1960), visando a proteger a telecomunicação em caso de ataques nucleares. A partir de 1981, houve um crescimento acelerado da rede nas universidades, quando então foi criada a BITnet ("Because It's Time Network", entre a City University of New York e Yale University). Em 1983, a ARPAnet foi desmembrada, surgindo assim a Milnet.

Em 1984, a National Science Foundation, NSF, (EUA), financiou a NSFnet, que conectou vários centros de supercomputadores com outras instituições de pesquisa. A partir daí, a rede passou a funcionar como um canal de comunicação importante nas faculdades, onde foram desenvolvidos recursos (como e-mail, archie, gopher, mosaic, wais etc.) empregados na rede. Iniciativas similares surgiram na Europa, onde foram criadas (em 1983 e 1984, respectivamente) as redes EARN (Europen Academic and Research Network) e JANET (Joint Academic Network), assim como no sudeste da Asia, com a implantação de várias redes regionais pelo programa intergovernamental SEAMEO (Southest Asian Ministers of Education Organization).

Em 1995, a NSF iniciou o programa SUPERNET. Trata-se de uma nova rede eletrônica de 155 Mbps (definida como vBNS, very-high-speed Backbone Network Service), que interligará centros de supercomputadores no país. Experiência similar ocorre na Europa com a rede acadêmica SUPERJANET (Deering & Richardson, 1995; Butler et al., 1996).

O uso da Internet cresce rapidamente em regiões menos desenvolvidas do Mundo. Recentemente, vários países na América Latina (como Bolívia, Cuba e Peru) instalaram suas redes eletrônicas regionais. Na África e outras regiões (Guadeloupe, Guyana, New Caledonia e Seychelles), o programa ORSTOM (Institut Français de Recherche Scientifique pour le Developpment en Cooperation) implanta a rede RIO (Reseau Intertropical d'Ordinateurs), interconectando vários centros de pesquisa (cerca de oitenta instituições em 12 países membros). A Greennet (criada com o objetivo de proteger os direitos humanos e ambientais) é outra rede atuando na África, e os dados indicam que somente cinco ou seis países nesta região não estarão ligados na Internet até o final de 1996. Em contraste, o crescimento de redes regionais na Índia (onde apenas 12 universidades estão ligadas na Internet), China e Rússia tem sido limitado, devido à precária infra-estrutura em telecomunicação nesses países (Butler et al., 1996).

No Brasil, a organização da Internet teve origem em 1989 com o programa telemático da Rede Nacional de Pesquisa (RNP), conectando as instituições de pesquisa do País com o Mundo. Em maio de 1995, foi criado o Comitê Gestor do plano de expansão da rede nacional. Atualmente, a espinha dorsal ou backbone (com capacidade expressa em bits per second, bps) de 2 Mbps da RNP abrange nove capitais (Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Florianópolis, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo), com três conexões (2 com links a 2 Mbps) para os EUA (EMBRATEL ­ Brasília, FAPERJ ­ Rio de Janeiro e FAPESP ­ São Paulo). Cerca de seiscentas instituições de ensino e pesquisa estão conectadas à Internet via RENPAC (Rede Nacional de Comutação de Pacotes). Há um projeto para instalar um backbone de 34 Mbps em ATM (Assynchronous Transfer Mode), interligando os grandes centros urbanos (Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo) (Levy Macedo, 1996; Siqueira & Charlab, 1996). No Rio de Janeiro, 83 instituições de ensino e pesquisa estão conectadas na rede Rio, que opera a 2 Mbps (veja dados no Informe Faperj, maio/96).

Em 1983 existiam apenas duzentos computadores ligados em redes eletrônicas e até o final da década de 80 a Internet era praticamente desconhecida para o público. Ambos os processos, (1) a substituição de mainframes das empresas comerciais por computadores ligados a redes locais e (2) a incorporação de provedores particulares de acesso e serviços na rede, tornaram comum o conceito de Internet, modificando assim o panorama virtual. A rede internacional de comunicação está presente em 150 países, distribuídos nos cinco continentes (sendo 72% na América do Norte, 23% na Europa e 5% em outras partes do mundo) (Luna, 1996). Estimativas atuais registram dez a trinta milhões de computadores ligados na rede global (sendo o crescimento médio avaliado em um milhão de novos adeptos/mês), servindo cerca de quarenta milhões de usuários (Arthur, 1995; Deering & Richardson, 1995; Butler et al., 1996). No Brasil, o crescimento da rede é significativo, hoje com mais de duzentos mil adeptos e uma projeção superior a um milhão para o final de 1996 (Siqueira & Charlab, 1996). O crescimento rápido da Internet causa dificuldades no tráfego de informações, em particular ao nível de conexões (links) transcontinentais.

 

 

Organização e funcionamento da Internet

 

A criação e a expansão de redes regionais têm sido gerenciadas por organizações nacionais, em geral sem a participação de um órgão de controle sistemático da Internet. Hoje, entretanto, a Internet Society (http://www.isoc.org) como organização internacional não governamental tenta organizar o funcionamento da rede global. O World Wide Web Consortium, W3C (http://www.w3.org/pub/www/), estruturado pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology, EUA) e pelas organizações francesas INRIA (agência de computação) e CERN (Conseil Européenne pour le Recherche Nucleaire), engloba mais de 120 empresas visando a padronizar especificações e programas na WWW.

Os métodos de conexão e ferramentas usadas na Internet para navegar no espaço cibernético são discutidos na literatura (Engst, 1994; Wiggins, 1995). A Internet funciona com a participação integrada de (a) provedores de backbones (rede de computadores interligados por canais de alta velocidade, com capacidade de transmitir grande volume de dados), (b) provedores de acesso (computadores conectados a um backbone, atuando assim como nós ou sites) e (c) usuários da rede (clientes que pagam aos provedores locais o acesso e serviços prestados na rede). No Brasil, existem vários provedores (hoje com cerca de trezentos), presentes na maioria dos estados (Benayon, 1996).

Em geral, as universidades e institutos de pesquisa estão ligados diretamente com a Internet via conexão dedicada com um computador gateway (ou Internet router). Ou então, seu computador (com modem e programa instalados) pode entrar no circuito via telefone, através de conexões discadas do tipo terminal e SLIP (Serial Line Internet Protocol) ou PPP (Point-to-Point Protocol). A conexão discada tipo SLIP/ PPP é mais indicada, pois os protocolos são empregados com modem de alta velocidade, permitindo o acesso a todos os recursos da rede. É recomendável discutir com provedores locais os tipos de conexão oferecidos, cujos custos são variados.

A Internet funciona com uma linguagem comum estabelecida entre computadores ligados na rede. Os protocolos que controlam a organização e tráfego de dados são os TCP (Transfer Control Protocol) / IP (Internet Protocol), que regulam de que forma redes, computadores e programas devem veicular a informação. A informação organizada é distribuída segundo o modelo conhecido como Cliente-Servidor (entidade que solicita serviços e entidade que presta serviços, respectivamente). A informação nos bancos (database) servidores é distribuída aos usuários, através da comutação de pacotes de dados. Programas (softwares) servidores e clientes específicos são usados na tranferência de arquivos.

Os computadores são identificados na Internet com um esquema de endereçamento ou Domínio (Domain), que lista grupos de palavras-código (indo do mais específico para o geral), separados por pontos. Os países são identificados com dois caracteres (br, Brasil; fr, França; uk, Reino Unido), enquanto nos EUA os domínios são divididos por áreas (.edu, para educação; .com, comércio; e .gov, governo). O DNS (Domain Name Server) representa nomes de servidores Internet com uma seqüência simbólica de números (indo de 0 a 255), separados por pontos. O URL (Uniform Resource Locator) define o endereço do site onde arquivos podem ser acessados. A primeira parte do URL indica o serviço prestado (FTP, HTTP para WWW ou gopher etc.) e os dados seguintes referem-se ao computador onde os arquivos estão armazenados.

Além dos limites de transmissão ocorrendo em redes regionais, outros fatores podem dificultar o tráfego de informação na Internet, como (a) modem com capacidade limitada; (b) tipo de protocolo (arquivos, por exemplo, são transferidos mais rapidamente com File Transfer Protocol, FTP, do que com Hypertext Transfer Protocol, HTTP); (c) uso freqüente de ícones e (d) servidores com capacidade limitada para o número de clientes.

Os arquivos FAQ (Frequently Asked Questions) respondem perguntas de usuários da Internet. Há FAQs publicados (Engst, 1994; Wiggins, 1995) e on line: (1) Aprendendo um pouco mais sobre a Internet (http://www.telecom.uff.br/~buick); (2) Ask Dr. Internet (http://promo.net/gut/index.cgi); (3) Internet Help Desk (http://w3.one.net/~alward/) e (4) Dicionário do Internetês ( http://www.public.iastate.edu/~pedro/pt_all/pt_internet.html ). Há informação sobre as redes regionais no Centro de Informações Internet Brasil, RNP (http://www.ci.rnp.br/).

Consulte o site da PUC-Rio (http://www.puc-rio.br/portugues/rep.htlm) para obter programas usados na Internet (incluindo Netscape, WinFTP, Archie, Win Talk e WinVN). O site WWW FAQ (http://ruulst.let.ruu.nl:2000/www_faq.html) cataloga provedores de serviços WWW internacionais. Outros endereços importantes são: (1) http://cwsapps.texas.net./ (páginas com vários tópicos); (2) http://www.netscape.com ou (3) http://www.microsoft.com (paginador ou browser e outros aplicativos básicos); (4) http://www.cwo.com/~syko/soft.html (softwares, gráficos, músicas e games). O site http://www.bernina.com/german/semi/win955.html informa os links para acessar a rede com o sistema Windows 95.

 

Serviços disponíveis na Internet

 

A Tabela 1 lista os serviços e programas empregados na Internet. Os programas podem ser específicos ou tipo multiuso como Netscape. Informação detalhada no assunto pode ser consultada na literatura (Wiggins, 1995) e on line (http://www.cvp.com:80/cyber/, Cultura Ciber e http://www.interlog.com/~csteele/newbie.html , Newbies). A seguir estão resumidas algumas funções de serviços disponíveis na rede.

 

 

 

Correio eletrônico ou e-mail (eletronic mail)


 

É o meio de comunicação mais empregado na Internet, por ser rápido e fácil o envio de mensagens (carta eletrônica) e/ou arquivos (como texto, imagem, som ou vídeo). Via e-mail os correspondentes trocam informação, fazem pesquisas e comandam serviços em computadores remotos. O usuário deve registrar no servidor seu endereço eletrônico, o qual o identifica na rede. Consulte os sites http://home (compilations of e-mail address) e http://www.iaf.net/ (Internet Address Finder) para localizar listas de endereços e-mail.

 

Grupos de debate ou Newsgroups


 

Os Newsgroups representam um fórum virtual para a discussão ampla em qualquer assunto. A mensagem é enviada por e-mail, sendo arquivada em um site (bulletin board), ficando assim disponível aos usuários durante um tempo (semanas ou meses). O acesso aos grupos é feito através dos servidores de Newsgroups, como (1) news.puc.rio; (2) news.dcc.unicamp.br; (3) news.woldweb.net e (4) news.zippo.com. Os participantes são organizados em grupos e subgrupos hierárquicos (como sci ­ para tópicos científicos; rec ­ entretenimento; comp ­ computadores, etc.).

 

Listas de discussão ou mailing lists


 

É outro meio útil para o intercâmbio de idéias em qualquer área do conhecimento. Listserv é o sistema que gerencia as listas, sendo os grupos classificados por tópicos. A inscrição é feita enviando mensagem ao computador servidor de listas (Listserv) da Internet. Há catálogos de listas em sites dedicados ( http://www.ci.rnp.br/ci/forms/busca-list.html ).

 

Protocolo de Transferência de Arquivos ou FTP (File Transfer Protocol)


 

É o método usado para transferir arquivos (como programa de domínio público, documento, foto, som, vídeo) entre computadores ligados na Internet. O aplicativo Archie localiza com palavras-chave programas de domínio público na Internet. A comunicação entre servidor e cliente Archie é feita diretamente com Telnet ou enviando comandos por e-mail. No caso de conexão Telnet, o computador usuário funciona como terminal do sistema remoto. O usuário precisa estar autorizado (registrando conta/senha de identificação pessoal) para operar no computador servidor.

 

Comunicação em Tempo Real ou IRC (Internet Relay Chat)


 

Os IRC representam canais abertos na Internet para o intercâmbio de mensagens em tempo real. Existem serviços na rede que facilitam a transferência de arquivos (textos, imagens etc.) entre correspondentes. O IRC é organizado em canais (cujo número estimado hoje é de cinco mil), classificados por áreas de interesse (ciência, arte, cinema, esporte). É possível o uso de canal particular, controlando assim os participantes. Há vários serviços Webchat como http://www.aquanet.co.il/chat.html (Aquanet) e http://www.kanopus.com.br/~irc (IRC ­ Bate Papo Nacional).

 

Comunicação via WWW (World Wide Web)


 

A popularidade da Internet se deve ao uso comum da teia eletrônica (Web), um sistema multimídia capaz de organizar a informação de forma integrada (incorporando imagem/som em documento hipertexto). Home-Pages são páginas de apresentação dos servidores WWW, onde a informação é indexada. As páginas são mais interativas quando recursos de interface gráfica integram texto e imagem no mesmo documento. É um meio de comunicação eficiente, permitindo a interação com o leitor via formulários e outros recursos. Há servidores Web catalogados em várias fontes (como http://dcc.unicamp.br/~camcima e http://www.embratel.net.br/infoserv/krhonos/ ). A informação na teia é organizada com palavras-chave, empregando-se o paginador (Browser) Web. Para criar páginas, a Web emprega hipertexto que aparece no écran com cor azul sobreiluminado. Acionando a tecla na fase colorida, conectamos o computador com o site ou banco de dados onde a informação está arquivada. Esta informação (sob a forma de texto, gráfico, som ou imagem) é então transferida para o computador usuário. É fácil construir páginas WWW, definindo o layout com o editor HTLM (Hypertext Markup Language). O formato de páginas com esta linguagem é limitado. Entretanto, os recursos de programação multimídia com a nova linguagem Java (Sun Microsystem Inc.) tem revolucionado o assunto. Trata-se de um instrumento capaz de desenvolver aplicações distribuídas (programas escritos em Java podem ser modulados e instalados em computadores ligados na rede). Há guias HTML on line em (a) http://www.mat.unb.br/~moreira/cartilha.html e (b) http://www.dsc.ufpb.br/~helder/html-ref/ .

 

WAIS (Wide Area Information Servers)


 

São dados catalogados obtidos com vários instrumentos de pesquisa. Há guias on line (quake. think.com) sobre servidores WAIS. Como a informação está dispersa na rede, o êxito na pesquisa depende de instrumentos apropriados. Os dados são localizados com metaíndices, empregando ferramentas como: (1) diretórios (arquivos que agrupam os dados selecionados, através de índice hierárquico ou palavras-chave), como Yahoo (http://www.yahoo.com) e Magellan (http://mckinley.com); (2) catálogos (bancos de dados construídos com programas que selecionam a informação na Web), como Lycos (http://www.lycos.com), WebCrawler (http://webcrawler.com) e Alta Vista (http://altavista.digital.com) e (3) metaformulários (consultas com formulário único em bancos de dados integrados), como MetaCrawler (http://metacrawler.com) e DejaNews (http://www.DejaNews.com), que acessam dados específicos (catálogos de Newsgroups). Os diretórios são úteis para pesquisa genérica, sendo organizados com estrutura tipo árvore. Os catálogos são indicados para a busca de informação específica. Os metaformulários não dispõem de bancos de dados próprios; funcionam como uma interface, buscando a informação em outros locais. O site All-in-One Search Page (http://www.albany.net/allinone/) reúne aplicativos para localizar informação (Yahoo, Lycos e WeberCrawler) e arquivos (Archie e Veronica) na Internet. Os superíndices (a) Alta Vista (http://www.altavista.digital.com); (b) Cadê? (http://home.iis.com.br/~gvibert/) e (c) Yaih? ­ Diretório da Internet Brasil (http://www.ci.rnp.br/si) acessam dados mais abrangentes. O gopher é um meio de navegação através de menus, muito usado para localizar e recuperar arquivos na Internet. O acesso ao Gopherspace deve ser autorizado, registrando uma conta no cliente gopher. Os servidores operam em sistemas distintos, como em ambiente tipo caracter ou interface gráfica. Veja programas gopher no site FTP boombox.micro.umn.edu (diretório pub/gopher).

 

Ciências da saúde on line

 

A Tabela 2 lista servidores WWW de interesse nas áreas de Biociências (em particular, Genética e Biologia Molecular), Medicina e Saúde Pública (Bioestatística e Epidemiologia). Existem outras fontes de informação biomédica publicadas (Frey, 1994; White & Ostbye, 1994; Blaxter, 1995; Deering & Richardson, 1995; Franco & Pena, 1996; Coppel, 1996) e on line, como (a) bibliotecas virtuais ( http://www.nim.nih.gov/ , National Library of Medicine; http://www.actwin.com/aids/vl.html , WWW Virtual Library on AIDS) e (b) diretórios e metaíndices ( http://beijaflor.ci.rnp.br/si/Saude , Yaih? ­ Saúde; http://home.iis.com.br~gviberti/ , Cadê? ­ Saúde; http://www.yahoo.com/Health/Medicine/ , Yahoo! ­ Health:Medicine e http://lycos.cs.cmu.edu , Lycos ­ Health & Medicine).

 

 

A Rede Mundial da Saúde é uma aliança constituída de especialistas em saúde e telecomunicação (englobando instituições acadêmicas, empresas privadas, organizações governamentais e não governamentais) que organiza de maneira integrada a informação em Saúde Pública. O site (http://info.pitt.edu/HOME/GHNet/GHNet-p.html) concentra informação relevante para a saúde, abrangendo tópicos importantes (Recursos Mundiais, Saúde Hoje, Redes Relacionadas à Saúde, Oportunidades em Saúde Pública). A Organização Mundial da Saúde (WHO) é fonte de referência para a Saúde Pública, informando os programas de controle das doenças endêmicas. Entre os serviços prestados estão (a) WHOSIS (WHO Statistical Information System); (b) WER (WHO Weekly Epidemiological Record); (c) notícias de interesse público (World Health Day) e (d) acessos a vários instrumentos na Web, como WHO Gopher, Yahoo e Lycos. O Sistema Latino-Americano de Informação em Ciências da Saúde, BIREME/OPAS/PMS, auxilia a comunidade com informação científica, visando a melhorar a qualidade de ensino, pesquisa e atenção à saúde regional. O programa WHO/TDR financia o Malaria Database. O site armazena dados de interesse em malária (seqüências nucleotídicas de genes e proteínas de parasitas; cepas de plasmódios etc.). Há organizações com o objetivo de despertar o interesse da comunidade para problemas de saúde e sócio-econômicos causados por malária (Rotary Against Malaria, http://orathost.cfa.ilstu.edu/malaria/malariaHome.html e Malaria Foundation, http://www/malaria.org ). Os sites http://chimera.biotech.washinghton.edu/ e http://relios.bto.ed.ac.uk/nbx/pgn/pg/parasite-genome.html informam sobre estudos genéticos de parasitas (Parasite Genome).

Os Centers for Disease Control (CDC), em Atlanta (EUA), que incluem o National Center for Infectious Diseases (NCID), mantêm um site Web dedicado à Saúde Pública (com dados bioestatísticos, registros de doenças infecciosas emergentes, fontes de financiamento para pesquisa etc.). Últimas estatísticas de doenças podem ser acessadas no Morbidity and Mortality Weekly Report ( http://www.cdc.gov/epo/mmwr/mmwr.html ). Os National Institutes of Health (NIH), em Bethesda (EUA), mantêm um super-site com links para outros bancos de dados. Os serviços disponíveis no National Center for Biotechnology Information ( http://www3.ncbi.nlm.nih.gov/ ) são de particular interesse. O grau de similaridade genética entre organismos pode ser estudado com o sistema BLAST em bancos de seqüências nucleotídicas (GENBANK, VECBASE, EMBL DNA, SWISS-PROT, 3-D Protein Data Bank, Transcription Factors Database e Eukaryotic Promoter Database). O ExPASY (Universidade de Genebra, Suíça) é outro servidor em Biologia Molecular. O site contém programas (Swiss-Prot, Prosite e Swiss-2D page) para análises de seqüências de proteínas e ácidos nucléicos. Estes serviços podem ser acessados no site http://www.dbbm.fiocruz.br (Fiocruz, Rio de Janeiro). A Base de Dados Tropical, em Campinas, SP, ( http://www.bdt.org.br/portugues/ ) organiza (através da Rede de Informação sobre Biodiversidade ­ Brasil) catálogos de coleções de vários organismos mantidas no País. O site incentiva a formação de grupos de discussão e facilita o acesso a outros bancos.

A Tabela 3 lista URLs (Uniform Resource Locator) brasileiras ou ligadas ao Brasil disponíveis na Internet, com páginas informativas em Ciência, Tecnologia e Saúde Pública. Para participar em mailing lists ou grupos de discussão em Biologia, consulte a CONSBIO ( listproc@u.washington.edu ) ou Usenet (veja os canais sci.bio e bio.net). A American Society for Microbiology mantém um site URL ( http://www.asmusa.org ), com vários links Web. Existem Usenet groups ( http://www.bio.net/ ) dedicados a Parasitologia (bionet.parasitologia, bionet. protista, bionet.molbio etc.). O Diretório de Parasitologistas ( ftp://magnus.acs.ohio-state.edu/pub/zoology ) cataloga endereços e-mail de especialistas na área.

 

 

 

Educação e cultura on line

 

A Internet é uma ferramenta de ensino muito útil nas faculdades. O megaíndice de sites FTP da Pen State University ( ftp.cac.psu.edu ) e outros catálogos de universidades americanas ( http://tikkun.edu.asu.edu/coe/home.html , University of Arizona) ou brasileiras ( http://www.reitoria.ufrj.br/webr/ufrj.html , UFRJ e http://www.ifqsc.sc.usp.br/ifsc/cdcc/cdcc.html , USP ­ São Carlos) são exemplos. Nos Estados Unidos, há vários cursos universitários funcionando na Internet ( http://www_son.hs.washington.edu/vrc.html ). Existem programas similares no Brasil ( http://www.epm.br , Centro de Informática em Saúde/UPM e http://www.futuro.usp.br , Escola do Futuro/USP). Há informação on line em Matemática, Economia, Administração, Informática, Sociologia, Psicologia, Ciência Política, História, Filosofia, Artes, Teatro, Música e Literatura (Benayon, 1996). Dados em educação e cultura estão catalogados em superíndices como (1) http://www.altavista.digital.com (Alta Vista); (2) http://lycos.cs.cmu.edu/ (Lycos) e (3) http://www.yahoo.com (Yahoo). Há vários recursos de ensino on line, incluindo (a) Laboratório de Comunicação, como vídeo-conferências ( http://owl.trc.purdue.edu ) e jornal virtual, ( http://www.puc-rio.br/geral/jornal/principal.html ); (b) Mapa Climático ( geograf1.sbs.ohio-state.edu ); (c) Biblioteca Virtual ( http://www.fas.harvard.edu/~cabref/ ); (d) Museu e Galeria de Arte ( http://www.art.edu/aic/firstpage.html ) e (e) Cinema ( http://showbiz.starwave.com ). O ensino virtual vai se tornar comum com os recursos de multimídia VRLM (Virtual Reality Modeling Language).

 

Gabriel Grimaldi Jr.

Laboratório de Leishmaniose, Departamento de Imunologia, Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.

 

ARTHUR, C., 1995. And the Net total is... New Scientist, 13 May, 29-32.

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COPPEL, R. L., 1996. Internet and the parasitologist: the what, here and why of the Web. Parasitology Today, 12:85-87.

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ENGST, A. C., 1994. Internet Starter Kit for Windows. 2nd ed., London: Hayden Books.

FRANCO, G. R. & PENA, D. J., 1996. A small directory of World Wide Web sites for human molecular genetics. Brazilian Journal of Genetics, 19:371-374.

FREY, A. H., 1994. The Internet biologist. FASEB Journal, 8:1110-1116.

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LEVY MACEDO, A., 1996. Internet no Brasil. Guia da Internet.br, 1:22-24.

LUNA, A., 1996. Internet fácil. Seu guia para os primeiros passos. Guia da Internet.br, 1:6-15.

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WHITE, M. & OSTBYE, T., 1994. Global public health and the information superhighway: epidemiologists are using the Internet. British Medical Journal, 309:736-742.

WIGGINS, R. W., 1995. The Internet for Everyone: A Guide for Users and Providers. New York: McGraw-Hill.

 

O autor agradece Hooman Momen e Wim M. Degrave (Dpto de Bioquímica e Biologia Molecular/IOC) pelas sugestões.

 

 

O LIMPO E O SUJO: UMA HISTÓRIA DA HIGIENE CORPORAL. George Vigarello. Tradução: Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1996, 297 pp.

ISBN: 85-336-0476-9

 

A história da higiene corporal que nos é proposta por Georges Vigarello ensina que os signos de limpeza foram no passado simultaneamente parecidos com os que reconhecemos atualmente e bastante diferentes destes. Dava-se ênfase a traços que se tornaram acessórios, fazia-se pouco caso de detalhes que para nós vieram a ser essenciais. Aqui e ali as práticas antigas sugerem "faltas" e sobretudo "imprecisões" aos olhos contemporâneos ­ transmitindo-nos a impressão de que o nosso comportamento de limpeza corporal tenha se tornado cada vez mais exigente, preciso e minucioso.

Talvez dando seqüência à antiga tradição romana, o banho medieval estava vinculado a uma sociabilidade lúdica e festiva, que envolvia distrações, dissipações e, muito freqüentemente, excessos. Os banhos eram encontros em que as pessoas comiam, bebiam, deixavam-se massagear e se divertiam. Assim como hoje ninguém vai à piscina por motivo de higiene, a água funcionava na Idade média como uma espécie de suplemento do prazer, adicionando-se à vontade de desregramento e se adaptando às finalidades do banho, que eram eminentemente a brincadeira e a transgressão. Por esta razão, as casas de banho medievais em quase nada puderam ser consideradas equivalentes às instituições de limpeza que, nos séculos XIX e XX, virão a ajudar a implementar disciplina pessoal e política, assim como a reforçar normas de separação social.

A freqüência individual às casas de banho raramente era inferior a um por quinzena e amiúde se dava semanalmente. Estes números não consideram aqueles banhos que aconteciam ao ar livre, durante o verão, em um lago, jardim ou rio. Não se tratava de algo apenas espontâneo: por volta de 1292 era habitual que um homem percorresse Paris, gritando e convocando as pessoas para saunas e banhos. Nesta época havia trinta e duas delas nessa cidade. Os corpos nus se transpiram e se esponjam lado a lado no vapor de uma água esquentada com linha ou carvão, em salas equipadas com banheiras cercadas por ferro: a iconografia nos mostra mistura de sexos, de idades e de corpos; contém toques, carícias e leitos em que repousam casais entrelaçados.

Como se sabe, haverá um momento em que as práticas corporais medievais começarão a não ser mais tranqüilamente aceitas e as termas e casas de banho acabarão obrigadas a escolher se se destinariam a mulheres ou a homens, nunca a ambos. Também começou a ser lavada a sério, esboçando um futuro que viemos a conhecer ainda com força respeitável, a determinação conexa de que funcionassem em horários alternados para os sexos. Entre os séculos XIV e XV proibiu-se nelas a entrada de homens casados e se reconheceu oficialmente as casas de banhos como sendo confessadamente lugares de prostituição. No âmago dessas pressões, o que se anunciava era uma nova concepção de corporalidade.

Não foi um vácuo o que substituiu o modo medieval de lidar com a imersão. "C'est lê linge qui lave": com estas palavras Vigarello procurou sintetizar e colocar em evidencia o sentido de uma nova atenção de limpeza, orientada agora sobretudo para as roupas de baixo e para os vestimentos. Em vez de se referir à pele, a nova preocupação passa a se dirigir para este objeto mais imediatamente visível, que é a roupa. A limpeza pessoal principia a ser simbolizada pelos trajes e, muito especialmente, por aquilo que se interpões entre o corpo e o que se oferece à visão. As roupas de baixo se vêem pouco, obviamente. Não obstante, o ritmo, ou melhor, a freqüência de mudança delas se transforma em importante indicador de limpeza corporal, particularmente durante os séculos XVII e XVIII.

Estes novos conceitos se ocupam antes de tudo com a aparência. A atenção que esta teoria da limpeza desenvolve se volta particularmente para o olhar e para o olfato. Mudar a roupa de baixo supões uma sensibilidade que não é puramente a do olhar. Considerava-se que substituir periodicamente estas roupas intermediárias fosse limpar a pele. O branco delas eliminaria o cascão, por efeito de absorção, atingindo a intimidade do corpo, ao mesmo tempo em que a protegeria. As conseqüências das mudanças de roupas íntimas seriam comparáveis às da água, embora sem os incovenientes e perigos que esta cada vez mais passou a representar para o imaginário europeu. Teriam, pois, as roupagens intermediárias, um resultado até mesmo muito mais seguro e muito menos temível que o da lavagem. Em síntese, com as roupas de baixo, às inquietações de toda ordem que o banho passou a suscitar, adicionava-se doravante a certeza de quase completa inutilidade do banhar-se.

Ainda mais, entre a mudança eventual da roupa de baixo e a imersão sempre raríssima acrescentaram-se nesta época gestos que, embora de pequena freqüência, insinuavam o nascimento de uma limpeza corporal localizada e especializada: abluções do rosto, lavagens de pés ou de assento, fricções suplementares nas articulações nas zonas intersticiais do corpo e principalmente naquelas partes onde a permanência do suor configurava risco de produzir mau-cheiro. Tudo isso definiu, por volta de 1740-1760, uma espécie de "higiene setorial", ainda hoje bastante presente nos países europeus, segundo os variados segmentos sociais.

A limpeza setorial e a das roupas interiores definiam uma direção para o processo de higiene corporal: fundamentalmente, apontava para a transição do mais visível ao menos visível do corpo, do mais exterior ao mais reservado, do mais íntimo ao mais secreto... O "íntimo" passou a apresentar, com os hábitos de vestuário e de limpeza das roupas, um lugar que não possuía, visto que a mudança de camisa e de roupas de baixo após a transpiração constituía eminentemente um gesto de si para si. Representava uma sensibilidade também privada, com os sentidos direcionados par "dentro". Presupõe-se agora uma vigilância de si. Exige-se uma atenção reflexiva. Por este intermédio, cada uma passa a se policiar a si mesmo.

Parte desta limpeza setorial e ao lado das vestimentas, os perfumes aparecem como instrumentos desta nova arte da aparência. Destinam-se a uma encenação enganadora, que se adiciona e se sobrepões à visibilidade das várias camadas de roupas. Primeiro, as pessoas procuram saturar os armários com pós perfumados, para que as roupas, inclusive as de baixo, conservem as marcas duráveis de seus aromas. Mas também logo aparecem os diversos sachês, que destinam a ser colocados sob as axilas, nos quadris, nas dobras das roupas e do corpo, nos interstícios corporais, nas partes "íntimas"... Nos meios aristocráticos, todos se perfumavam. Todos se perfumavam da cabeça aos pés. Sobretudo, todos perfumavam as roupas.

Para não se andar mais rápido do que seria justo, deve-se ponderar que manuais militares de 1769 ainda recomendavam, para expressar os "progresso" da limpeza, que se fizessem as trocas de roupa idealmente uma vez por semana. As teorias sobre as águas ainda atemorizavam e os médicos continuavam a advertir contra o molhar a cabeça, contra o entrar na água, imaginando correr-se perigo de congestão cerebral, de infertilidade, de redução da elasticidade da pele e assim por diante. Até mesmo se aconselhava ainda contra o risco da perda daquela película "protetora" do corpo ­ que era nada mais nada menos que o cascão.

Apenas nas décadas finais do século XVIII o cascão começará a se transformar em inimigo a ser combatido rigorosa e obsessivamente. Mas o combate ao cascão não invocará de início quaisquer razões de limpeza. Era para que os poros pudessem se desentupir e respirar, que ele eventual e raramente, deveria ser removido. A finalidade dessa remoção era a de que estranhos tumores, pressões internas e inchamentos não se desenvolvessem, provocados pela "abafamento" que o cascão poderia propiciar ao "fechar" as saídas do corpo. Ainda assim, de modo bastante coerente, este razão valia para as elites. Não abrangia os trabalhadores braçais, uma vez que esses já transpiravam bastante na labuta, atingindo o mesmo fim por outros meios. Estavam, pois, dispensados da obrigatoriedade de se lavar, mesmo que de tempos em tempos.

Começou a haver, a partir do século XVIII, uma reação contra os excessos no uso de pós e de pomadas perfumados nos cuidados corporais. Esta nova atitude estava ligada à crença no desequilíbrio de humores, que poderia ser produzido pelo bloqueio dos poros, associado ao desenvolvimento do cascão. Por esse caminho, o uso da água foi mudando lentamente, a partir do meio daquele século. A água, que abalava a fisiologia e que veiculava energias secretas e perigosas, foi se transformando de modo gradativo em algo mais "funcional" e foi encontrando outras legitimidades. Por exemplo, servia agora para proteger, para propiciar "saúde" ou "vigor". Este ponto foi crucial, pois sem se terem transformado as idéias que hostilizavam a água, a limpeza corporal não poderia ter mudado de sentido e não poderia ter tomado a direção que viemos a conhecer.

Com as novas idéias sobre água, as abluções lentamente foram se instalando. A imersão, que tinha virado algo raríssimo depois do período medieval, começou a ser aceita de novo. A água passou a se integrar em novos circuitos. Principiou nas elites, embora sem sentido propriamente higiênico, pois ainda continuava ligada mais à terapêutica e às regras de decoro e cortesia. Por muito tempo ainda ­ rigorosamente até nossos dias ­ não existirá uma gramática definida ou definitiva da higiene "liquida", de forma que cada um terá a sua própria norma para o banho, segundo os países, as regiões e as, classes sociais: em alguns se o toma de oito em oito dias; em outros de dez em dez; outros ainda a cada mês; há os que se banham a cada ano; há os que o praticam diariamente ou em dias alternados...

A partir das décadas centrais do século XIX, as autoridades das cidades começarão a projetar, a propiciar ou a exigir a construção de locais públicos para banhos e lavagens de trabalhadores pobres. Esta categoria social estava simbolicamente associada à natureza ­ o que fazia dela uma fonte perigosa de poluição, além de um contingente humano especialmente votado a ser "explorado". Os novos locais de lavagens eram espaços a que, em teoria, os pobres poderiam ou mesmo deveriam comparecer, para neles se purificar gratuitamente ou a preços bastante reduzidos. Assim, o asseio "pessoal" dos pobres se transformou, ao menos do ponto de vista teórico, em assunto coletivo, em questão de higiene e saúde públicas, em problema de profilaxia urbana.

O livro de Georges Vigarello permite especular sobre o fato de que a "democratização da higiene" adquiriu caráter técnico, pairando acima das ideologias e sendo reivindicada inclusive pelas vanguardas dos movimentos populares. Nada haveria em princípio a implicar com as idéias de "democratização da higiêne" e tudo isso seria muito fácil de aceitar, se os próprios pobres, desprezando completamente o fato de que isso fosse um projeto das elites burguesas e aristocráticas para os desinfectar, tivessem espontaneamente esquecido as acusações gravíssimas de que eram vítimas e tivessem tranqüilamente desejado acolher como suas, como próprias, as conquistas da higiene.

Tudo seria muito aceitável, se os "beneficiados" tivessem seguido por vontade própria as trilhas que lhes traçaram as camadas dominantes. Acontece, entretanto, ironicamente, que não foi desse modo que as coisas se deram. Acontece, além disso, e principalmente ­ como a história que Vigarello retrata nos ensina de maneira muito mais que repetida ­ que nem mesmos os extratos privilegiados, aristocráticos ou burgueses, foram assim tão espontâneos no seguir nas sendas indicadas por esses "progressos" e por essas "conquistas" corporais. E que, mesmo nestas camadas sociais, as resistências sempre foram muito mais fortes que os avanços.

Na leitura de O Limpo e o Sujo, o que encontraremos de mais importante será a demonstração, por trilhas tão proximamente ligadas ao nosso cotidiano ­ como proximidade entre corpos, suportabilidade de odores, apresentação do vestuário, atitudes relativas à água ­ de profundíssimas modificações filosóficas e existenciais sobre quais são os seus valores principais e suas associações simbólicas preferenciais.

 

José Carlos Rodrigues

Departamento de Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói

 

 

O MERCADO HUMANO: ESTUDO BIOÉTICO DA COMPRA E VENDA DE PARTES DO CORPO. Giovanni Berlinguer & Volnei Garrafa. Brasília: Editora UnB, 1996, 212 pp.

 

Publicado quase que simultanemante no Brasil e na Itália (neste último país pouco antes que aqui), O Mercado Humano é uma daquelas publicações aguardadas com certa ansiedade pelos estudiosos de bioética. O livro, além de preencher uma lacuna significativa na literatura, analisa fatos ocorridos em nosso país, o que em certa medida é uma exceção. A bioética ainda é uma discussão em que poucos são os debatedores nacionais assim como pouquíssimas são as publicações nativas, fazendo com que boa parte das reflexões sejam importadas mecanicamente de outras realidades, muitas delas pouco condizentes com a nossa. Neste tipo de erro, muito comum aos bioeticistas periféricos ­ isto é, àqueles que não se encontram entre o eixo Estados Unidos, França e Inglaterra ­ O Mercado Humano com toda segurança não incorre. Ao contrário, na tentativa de contextualizar histórica e culturalmente os eventos analisados, o livro assume um tom de denúncia política que arrisco ter sido intencional. Paralela às reflexões éticas relativas à doação e ao transplante de órgãos, ao aluguel de úteros, à experimentação com seres humanos, ao patenteamento do genoma humano, à prostituição, à corrupção de menores, entre outros temas analisados pelos autores, o livro cumpre sua outra função: a de denúncia não apenas da realidade nacional sobre estas questões (até mesmo porque não se trata apenas do Brasil ou do continente sul-americano, mas de uma abordagem comparativa em que o principal contraponto é a realidade européia a partir da Itália) mas das desigualdades humanas existentes entre os países do Norte e os do Sul. A entrada deste argumento econômico-político-social, de grande peso no livro, acredito ser sustentada, por um lado, pelas trajetórias políticas de seus autores (Berliguer foi deputado e senador na Itália e Garrafa é conhecido por suas análises da saúde pública brasileira) e, por outro, talvez o mais significativo, porque é impossível tratar de ética em saúde sem que se reflita o conjunto das relações entre os países, já que, como o livro muito bem argumenta, a distribuição da saúde replica boa parte de outras transações entre o Norte-rico e o Sul-miserável.

Mas vamos à apresentação do livro por partes. Bem escrito, em linguagem corrente, podemos dividi-lo em três grandes seções. A primeira, da introdução ao final do terceiro capítulo, corresponde ao histórico de mal-usos do corpo, à apresentação do problema bioético e aos seus desdobramentos contemporâneos em cada país. A segunda parte, a mais importante do livro, é relativa a análise ética da situação apresentada na primeira parte e está condensada no quarto capítulo. Por fim, na terceira e última seção são apresentadas as prováveis saídas para os impasses postos em larga medida pela biotecnologia, além de ser explicitada a posição dos autores. Lançando mão desta tripartição do livro, passemos à análise de O Mercado Humano com mais detalhes.

Na primeira seção, que resumirei pelo título do primeiro capítulo "Da Escravidão ao Mercado Tecnológico", os autores usam um recurso de investigação e de levantamento de dados, pouco comum às pesquisas biomédicas, que, mantido por todo o livro, transformou-se em um de seus maiores méritos: associados à extensa e cuidadosa revisão da literatura científica, foram usados artigos veiculados na mídia impressa de vários países. Assim, ao mesmo tempo que o leitor tem a oportunidade de acompanhar o desenrolar do debate através dos artigos científicos também pode observar como as discussões e as descobertas repercurtiram na vida cotidiana das pessoas através das reportagens analisadas (em geral, estas últimas foram postas à título de estudos de caso). Sinto pena, no entanto, que esta pérola do livro se disperse no decorrer da análise, uma vez que não há ao final do livro uma compilação de todas as referências bibliográficas utilizadas, tendo estas se restringido às notas de pé de página.

Do paralelo histórico entre os mal-usos do corpo (a escravidão, a servidão, a prostituição, entre outros) e a situação-objeto principal de reflexão do livro (os usos do corpo pela biotecnologia), Berlinguer e Garrafa lançam a pergunta que em sua resposta está o pressuposto filosófico de grande parte das argumentações desenvolvidas em O Mercado Humano: "o que haveria em comum entre essas diversas situações?" (p.39). Segundo eles, a presença do mercado sobre o corpo humano. Sobre esta idéia e mais especificamente sobre o conceito de mercado vale a pena nos determos um pouco mais. A grande peça argumentativa dos autores é que não se deve mercantilizar o corpo humano ou partes deste. Tal procedimento infringiria preceitos básicos da vida coletiva, tais como o respeito, a liberdade, a justiça e a solidariedade, somente para citar os mais referidos no livro. Neste contexto, o mercado, entidade não muito bem definida pelos autores, seria um dos grandes vilões. Trechos como este em que dizem "...um dos riscos é de que as leis de mercado subvertam todo e qualquer princípio moral..." (p.43)(sem grifos no original) são tão comuns que beiram a repetição. No entanto, tenho dúvidas de se a fórmula está correta. Não creio que o mercado possua poderes de subverter uma ordem ainda não estabelecida. É importante lembrarmos que estamos nos referindo à uma realidade nova em que alguns valores morais se encontram em suspenso. Talvez, o mais seguro fosse invertermos a fórmula, transformando-a em: "o progresso da ciência ou da biotecnologia geram incerteza moral e esta por sua vez abre espaço para comportamentos aparentemente disparatados, tais como, a doação voluntária, a venda de órgãos, o comércio violento, o xenotransplante e o roubo". Nesta nova forma de encarar o problema, o mercado de órgãos, por exemplo, se tornaria apenas uma dentre outras soluções morais e/ou técnicas que as sociedades vêm apontando para o problema. Isso não significa, no entanto, que seremos ingênuos em não reconhecer que o mercado, com suas leis reguladoras, possui um poder de difusão e persuasão muitas vezes maior do que a solidariedade, por exemplo. Sugiro este cuidado apenas para evitarmos argumentos reducionistas e auto-suficientes como é o do mercadocentrismo. Assim, ao invés de dizermos "...se o mercado se generalizasse..." (p.53; p.55) diríamos "se a moral do mercado se generalizasse".

A idéia do mercado sobre o corpo humano, como um dos fatores reguladores da moral, abre espaço para que os autores se deliciem com suas críticas à política internacional. Trechos em que se analisa a moralidade do mercado são impecáveis pelo seu poder de crítica cultural. Vale a pena conferir as palavras, algumas duras, de Berlinguer e Garrafa: "...É preciso salientar, além disso, que o mercado se desenvolve quase sempre entre o Sul e o Norte do mundo. Poderia por isto delinear-se a seguinte probabilidade: depois de cinco séculos, nos quais o Norte utilizou para progredir, além da própria capacidade e vontade, os recursos materiais e humanos do Sul (incluindo a escravidão), no século XXI poderia tentar curar suas próprias doenças, importando e usando os órgãos tirados daqueles que pertencem às classes pobres dos países subdesenvolvidos..." (p.50). De escravos produtores de riqueza passaríamos a escravos produtores de saúde. Esta é uma hipótese que, a partir dos dados fornecidos pelo livro, não parece tão absurda. Até mesmo porque tentativas como estas já estão sendo feitas, haja visto o acordo que o Brasil esteve em vias de efetuar com a França: o primeiro em troca de tecnologia forneceria 30 mil litros de plasma humano por ano para o último (ou a proposta feita pelo Instituto de Transplantes de Pittsburgh à Associação Brasileira de Transplantes que consistia na troca de apoio financeiro e técnico-científico por fígados humanos (p.92)). É por situações como estas que os autores dizem: "...a hipótese que formulamos no primeiro capítulo sobre a conveniência em manter os povos na pobreza, para poder melhor explorar os seus recursos de matéria humana, não é assim tão remota..."(p.83). A inspiração dos autores para esta argumentação parece ter sido o trecho citado de Victor Hugo, de Os Miseráveis, que dizia: "...a miséria oferece, a sociedade aceita..." (p.56). E que traduzido para este segmento do livro seria: "...o Sul oferece, o Norte aceita...". O teor narrativo de O Mercado Humano, a partir da entrada deste argumento político, modifica-se completamente. Tanto que, caso fosse desconhecida as nacionalidades dos autores, facilmente se arriscaria que haveria entre eles um Sulista. Este é o momento do livro-denúncia a que se referiu William Saad no prefácio.

As críticas à política de saúde internacional implicam, talvez não diretamente, críticas ao fazer científico. E quanto a estas últimas, os autores são bastante cautelosos. O receio de não serem interpretados adequadamente faz com que continuamente repitam frases elogiosas à ciência. Em seguida a cada massacre há um tiro de misericórdia. A intenção dos autores, e isso é reforçado no decorrer do livro, não é impedir os avanços científicos nem tampouco atravancar as novas pesquisas. É apenas buscar um caminho que sirva de guia para situações ainda sem regras, ou nas palavras de Berlinguer e Garrafa: "... falamos de normas que aspirem desestimular ou eliminar o uso de funções ou de partes do corpo humano como mercadoria..."(p.117). A mesma cautela, todavia, não foi empregada nas oportunas críticas destinadas à bioética. Refletir sobre o mercado de corpos humanos (ou de partes deste) ou sobre o conjunto das relações entre o Norte e o Sul em saúde é navegar contramaré das correntes dominantes da bioética, que apenas para lembrar são todas originárias dos países do Norte.

A segunda seção, a menor das três, também pode ser resumida pelo título de seu capítulo: "Os prós e os contras". Nela, Berlinguer e Garrafa propõem apresentar ao leitor as principais opiniões favoráveis e contrárias ao comércio de partes do corpo humano. É um grande momento do livro, especialmente para aqueles interessados em acompanhar a grande confusão de valores que é, em algumas situações, a bioética. A pergunta-chave do capítulo, bem como de boa parte de O Mercado Humano, é sobre a licitude da venda de partes do corpo humano. Neste capítulo, os autores centram suas análises no comércio de órgãos.

Para os defensores da autonomia, uma linha de bioética muito comum nos Estados Unidos, proibir qualquer atitude neste campo significa burlar o princípio da livre-escolha. Neste raciocínio, um importante bioeticista norte-americano defende: "...quem é o explorador? O rico que compra órgãos do pobre? Ou o rico que proíbe ao pobre de vender os próprios órgãos?" (p.133). Aí está com clareza não apenas a confusão ética reinante na bioética, mas também um bom exemplo dos oponentes morais de Berlinguer e Garrafa. Estes últimos argumentam que não há como se exercer esta autonomia apregoada sem antes resolver questões primárias, tais como a pobreza que em O Mercado Humano foi analiticamente englobada pelas relações Norte e Sul. Sem igualdade de condições, continuam os autores, não há autonomia, daí a insistência no princípio da justiça. A desconfortável conclusão que o leitor mais apressado pode chegar ao terminar de ler esta seção é de que, como diriam os hermeneutas, não há qualquer possibilidade de fusão de horizontes entre oponentes e proponentes (esta impossibilidade de conciliação é reconhecida pelos autores (p.209)). Suas posturas filosóficas mais básicas são radicalmente opostas: para uns, o corpo humano pode se transformar em mercadoria e sua justificativa seria o princípio bioético da autonomia; para outros, o corpo humano ou suas partes jamais serão mercadoria pelos princípios da não-maleficência e da justiça. É e esta idéia, a impossibilidade de tornar o corpo humano ou suas partes em mercadoria, que Berlinguer e Garrafa irão defender como saída moral para algumas possibilidades acenadas pela biotecnologia.

Composta pelos dois últimos capítulos, "Alternativas ao Mercado" e "Os Comportamentos e as Regras", a terceira seção resume e organiza as idéias-solução já desenvolvidas esparsadamente pelos autores no corpo do livro. A preocupação de não soarem apocalipticamente sobre os poderes e usos da ciência é a tona final do livro. Para eles, qualquer reflexão que implique em restrições deve ser cuidadosa, o que é algo diferente de não haver limitações à ciência. No caso dos transplantes de órgãos, por exemplo, a argumentação dos autores é de que há saídas alternativas ao mercado. A questão principal é vencer a idéia de que faltam órgãos, argumento muito utilizado pelos defensores da legalização do mercado. O contrargumento de Berlinguer e Garrafa é de que, na verdade, não faltam órgãos, mas sim doações, problema que pode ser solucionado caso se invista na organização do sistema de saúde, no incentivo às doações, na pesquisa de transplantes com órgãos artificiais e no xenotransplante. O que há de novo nesta última parte do livro, no entanto, é o chamamento à ação que propositadamente compõe as últimas frases do livro: "Nós procuramos nos mover em direção a uma terceira probabilidade, que recusa tanto o advento do mercado humano como um inexorável resultado da era moderna, como a interpretação satânica da ciência e da técnica (...) Não apenas tentamos acrescentar muitas informações para quem queira empenhar-se em relação a estes temas; de apresentar algum elemento para reflexão; e de fornecer uma avaliação nossa, que esperamos seja compartilhada por muitos e que possa ser traduzida em ações eficazes..."(p.212).

Assim, como é possível perceber por esta breve apresentação de O Mercado Humano, este é um livro que traz contribuições importantes ao debate bioético, especialmente aquele desenvolvido em países periféricos, como é o caso do Brasil. Seu poder de crítica política e cultural e sua constante colocação da bioética no campo das relações de força entre os países do Sul e do Norte é uma das maneiras possíveis, e talvez a mais eficaz, de colocarmos nossa realidade sócio-cultural na pauta do conjunto das decisões mundiais sobre o futuro da humanidade.

 

Débora Diniz

Departamento de Antropologia Universidade de Brasília, Brasília

 

 

TRIBUTO À VÊNUS: A LUTA CONTRA A SÍFILIS NO BRASIL, DA PASSAGEM DO SÉCULO AOS ANOS 40. Sérgio Carrara. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996, 339 pp.

 

Doenças e épocas. Se a lepra, bíblica e medieval, era por excelência a enfermidade pré moderna, se a Aids é a doença pós-moderna, então cabe à sífilis o título de doença da era moderna. De fato, o termo aparece pela primeira vez em 1530, no poema "Syphilis sive morbus gallicus". Do médico e poeta Girolamo Fracastoro (1478-1553); a primeira vítima do mal é o pastor Syphilus, castigado pelo Deus-Sol com a infecção. No texto, como na vida real, a sífilis foi associada com a descoberta do Novo Mundo. Durante muito tempo discutiu-se essa "conexão Colombo", aceita por respeitáveis autores como Claude Quétel. Mas não é impossível que a doença já existisse na Europa e que dos numerosos casos de lepra muitos fossem, em realidade, sífilis secudária mal diagnosticada. De qualquer modo, as transformações sócio-econômicas e culturais da Europa renascentista (a ânsia por bens de consumo, a valorização da liberdade individual, a liberalização dos costumes) seguramente favoreceram a disseminação da doença, que, diferente da peste, não dizimava populações, mas que de imediato se prestou para uma guerra semântico-política. Os franceses, vítimas precoces, (o primeiro grande surto na Europa foi registrado em 1495 entre as tropas do rei Carlos VIII que invadiram Nápoles) chamavam-na de "mal napolitano"; os italianos, de "mal francês"; a eles aderiram os alemães, que falavam em Frantzoziscen Pocken, cancro francês, e os ingleses. Para os holandeses, tratava-se de "doença espanhola", para os portugueses de "doença castelhana" (mas os japoneses e os habitantes das Indias Orientais falavam em "mal português"). Os poloneses temiam a "doença dos alemães", os russos, a "doença dos poloneses", os persas, a "doença dos turcos".

A sífilis surgiu numa época de desenvolvimento do comércio ­ e seu tratamento foi influenciado por interesses comerciais. Uma das substâncias usadas na terapêutica da doença era o mercúrio, definido por Paracelso e, a propósito, importante elemento alquímico; a outra era o guaiaco, que, não por coincidência, era extraído de planta nativa da América (às vezes chamada de "madeira sagrada", hollywood em inglês) introduzido pelos espanhóis em 1508, mas comercializado principalmente pelos Függer, poderosos financistas alemães. Com mercúrio ou sem mercúrio, com guaiaco ou sem guaiaco, a sífilis continuou sua implacável trajetória como "estranha doença e das mais obscenas", segundo disse Henrik Ibsen em sua peça ­ de enorme repercussão ­ Os Espectros (1881).

É na passagem do século que começa a história narrada por Sérgio Carrara em seu excelente livro. É um dos dois momentos decisivos na história da doença (o outro é a descoberta da penicilina nos anos quarenta): em 1905 Schudinn identifica o Treponema pallidum, em 1906 Wasserman descreve o teste diagnóstico que levará o seu nome, em 1909 é introduzido o Salvarsan, droga descrita como a "bala mágica" que curaria a doença e que foi recebida com grande entusiasmo, inclusive no Brasil, onde Afrânio Peixoto escreveu, em 1913, o "epitáfio" da doença: "Afastado o charlatanismo interesseiro (...) a sífilis irá desaparecendo e acabará com o último sifilítico". Em 1914 o sanitarista Carlos Seidl, substituto de Oswaldo Cruz na Diretoria Nacional de Saúde Pública pediu que o Estado brasileiro engajasse na luta anti-venérea. E havia razões para tal: a sífilis estava amplamente difundida no país; estimava-se que até um quinto da população estava infectada ­ na ausência de um sistema de notificação, todas as especulações tornavam-se possíveis. Era preciso "pensar sifiliticamente" afirmava Antônio Austregesilo, cunhando uma expressão que ficou famosa. Renato Kehl falava em "diabólica doença". O interesse de Kehl, um defensor da eugenia, se justificava: um dos aspectos mais preocupantes da sífilis era a sua "hereditariedade", que poderia levar a uma "degeneração da raça".

A partir daí falar-se-á em "luta anti-venérea", e uma especialidade emergirá, em geral associada à dermatologia; a sifilografia, cujo "pai" foi Antônio José Pereira da Silva Araújo. Formado pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1870, Silva Araújo era membro da "Escola Tropicalista Bahiana" e pasteuriano entusiasta (foi reprovado num concurso de cirurgia na Faculdade por "insistir em perder tempo espiando bichinhos"). Encarregado, até sua morte (1900) do Serviço de Doenças de Pele e Sífilis na prestigiosa Policínica Central do Rio de Janeiro, Silva Araújo formou numerosos especialistas. Serviços e cátedras similares multiplicaram-se em várias regiões do país, com apoio do Departamento nacional de Saúde Pública que, de acordo com seu regulamento, deveria empenhar-se junto às Faculdade de Medicina do país para que se tornasse obrigatório o exame de Venereologia. Em 1922 orna-se obrigatório a freqüência e o exame de clínica dermatológica e sifiligráfica na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Os sifilógrafos, contudo, reclamavam que sua especialidade não recebia consideração devida nos cursos médicos e que sofriam a ameaça de "invasão" de outras especialidades (urologia, por exemplo). Se a passagem do século tinha visto a implantação da sifilografia, se as primeiras quatro décadas deste século haviam presenciado sua expansão, consolidação e depois preservação, a partir dos anos cinqüenta ver-se-á o desaparecimento progressivo de serviços, cátedras e do próprio especialista (p.100).

Apesar da expansão da sifilografia, Carrara fala (p.113) na "difícil medicalização do mal". O que não é de admirar, como diz Fleck, tratava-se de doença envolta em uma aura ético-mística. Os sifilógrafos empenharam-se no "desencantamento" da enfermidade, como diz o autor, usando uma expressão weberiana, sobretudo com fins práticos: era preciso fazer com que os sifilíticos procurassem os serviços de saúde, mesmo porque, em contraste com "sífilis merecida", havia a "sífilis inocente", que os filhos recebiam dos pais. Alvos preferenciais eram o "infame comércio" das prostitutas e os noivos ­ o exame pré-nupcial passou a fazer parte da rotina de saúde pública (antes do casamento, recomendava-se a abstinência de relações sexuais). No primeiro caso, havia uma polêmica entre os regulamentaristas, que defendiam a necessidade de um regulamento sanitário para a prostituição o os abolicionistas, que, entre outras coisas, taxavam o regulamento de imoral, já que reconhecia o "infame comércio" como profissão. Este capítulo é particularmente interessante, mostrando em detalhes a face oculta da sociedade brasileira nos inícios do século.

Os anos 1920-34 viram o apogeu da luta antivenérea no Brasil. Os órgãos públicos criaram dispensários antivenéreos e lançaram-se com todo o empenho em uma campanha que punha ênfase na educação sanitária. Publicações e cartazes (vários deles reproduzidos nas ótimas ilustrações que acompanham o livro) foram confeccionados, conferências eram realizadas; uma das figuras mais atuantes nesta área, além de Renato Kehl, sempre preocupado com a "degeneração" era o liberal, polêmico José de Albuquerque, fundador do Círculo Brasileiro de Educação Sexual e entusiasta do rádio, uma figura que Sérgio Carrara analisa em detalhes. A educação sexual foi endossada pela 1a Coferência Nacional de 1940, um evento que mobilizou autoridades, representantes de sociedades civis, além de especialistas. Carrara chama a atenção para a orientação predominantemente católica dos participantes; defendeu-se uma censura mais estrita ao cinema e à literatura e uma tendência à radicalização da luta anti-venérea no Brasil, mas "ela se desenvolvia sobretudo no sentido de enfatizar a lei como método privilegiado, secundado por uma proposta educativa eminentemente moralizadora" (:283).

O combate às doenças venéreas, diz Carrara em suas conclusões, travou-se no campo científico e social. Neste último, mostra como "os médicos, muito especialmente os sifilógrafos brasileiros, souberam legitimar seu trabalho, captando e mobilizando progressivamente tanto forças presentes em seu próprio meio (...) quanto forças provenientes de outras esferas: a política, a justiça, a religião, etc." O objetivo era fazer com que "a resolução das mazelas nacionais passasse também pela resolução do problema venéreo" (p.289; o grifo é do autor).

"Termino esta obra", diz o autor, "com a sensação (...) de que apenas agora poderia realizar uma pesquisa satisfatória sobre o assunto". É prova de modéstia, mas é um engano: doutor em antropologia social, professor e pesquisador do Instituto de Medicina Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Sérgio Carrara realizou um estudo exemplar, que se revela aplicável, de forma paradigmática, a muitas outras situações, sobretudo à questão da Aids.

Na história da Saúde Pública brasileira, Tributo a Vênus já tem um lugar definitivo.

 

Moacyr J. Scliar

Depto. de Medicina Preventiva Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, Porto Alegre

 

 

SISTEMAS DE SAUDE: CONTINUIDADES E MUDANÇAS. ARGENTINA, BRASIL, CHILE, ESPANHA, ESTADO UNIDOS, MÉXICO E QUÉBEC. Paulo Marchiori Buss & Maria Eliana Labra (org.). Rio de Janeiro ­ São Paulo:Editora Fiocruz/Hucitec, 1995. 259 pp.

 

Este livro reúne uma série de exposições de diferentes autores, voltadas, cada uma delas, para a discussão de um determinado país. O propósito que anima os organizadores, conforme explicitado na Introdução, é "contribuir para o debate sobre as reformas nos sistemas de saúde" através da discussão de sete países, quatro latino-americanos ­ Argentina, Brasil, Chile e México ­, um europeu ­ Espanha ­, e a província de Québec, no Canadá.

Essas apresentações não se configuram, porém, como casos que são parte de um estudo comparado (os chamados cross national studies), daí que não foram escolhidos com esse propósito, nem pretendem seguir nenhum esquema analítico pré-definido, ou mesmo uma corrente teórico-metodológica uniforme, configurando-se em coletânea onde distintos pontos-de-vista são utilizados para apreender os processos históricos de estruturação e mudanças dos sistemas de saúde em sociedades específicas.

A heterogeneidade das análises e suas diferentes capacidades explicativas é, portanto, a marca do livro. A comparação se dá, quando possível, apenas no interior de cada caso, entre os diferentes períodos que os autores selecionaram em cada estudo particular; e o eixo que os integra é o processo histórico de mudança nos respectivos sistemas de serviços médico-assistenciais.

A Introdução de Maria Eliana Labra pontua algumas das inflexões que permearam a constituição dos sistemas de saúde no mundo, principalmente com a expansão da assistência médica e a generalização do acesso aos serviços de saúde como direito de cidadania, após a Segunda Guerra Mundial: e enfatiza a complexidade organizativa, institucional e política que envolve a dinâmica da arena setorial, evidenciadas pelas crises econômica e sanitária, a partir de meados dos anos 60, e pela hegemonia neoliberal nos anos 80. Faz ainda o balanço situacional, nas palavras da autora, das reformas sanitárias mais recentes, explicitando o clima de velamento das certezas, de perplexidade e de insegurança que acomete não apenas os países centrais, onde os direitos sociais foram de fato implementados, mas também a periferia, apontando a gravidade dos problemas que as tendências mundiais de restrição de direitos, cujo alvo central são os benefícios sociais, trazem para as nações onde o exercício da cidadania em sentido pleno é ainda uma aspiração.

Na discussão do caso chileno, a mesma autora vincula a formulação/implementação da política de saúde à construção, destruição e restauração do regime liberal democrático no país, procurando identificar a sua inserção em projetos políticos de profunda transformação da sociedade, através dos quais se estrutura e/ou reforma o sistema de saúde. Sendo assim, a autora analisa a constituição do sistema nacional de saúde do Chile, na primeira metade deste nosso século, como parte da materialização dos direitos sociais da população, cuja institucionalidade foi construída através de conflitos e consensos entre "diversas forças societárias movidas pela dinâmica de um pluralismo político centrado no sistema partidário". E avalia que a demolição do Estado de Bem-Estar Social chileno, do qual a assistência médico-sanitária faz parte, integra a política de desmonte desse padrão de desenvolvimento político, econômico e social, assumida tenazmente pela ditadura militar a partir de 1973, como forma de implementar o receituário neoliberal de estabilização e reestruturação econômica com privatização dos serviços sociais.

A análise do sistema de saúde argentino, feita por Suzana Balmartino, utiliza como eixo conceitual a avaliação dos processos de consolidação, transformação e queda do Estado peronista e a redefinição das relações com os diferentes setores da sociedade que lhe é concomitante. Busca apreender, por essa via, as modalidades de articulação entre Estado e Sociedade que se materializam, em campo sanitário, na constituição de um específico sistema de saúde, assim como localiza na desintegração desses vínculos e na radicalização excludente das forças políticas e sociais opositoras a responsabilidade pela relação de dependência entre as bases de organização e financiamento da assistência médica e as características do sistema político. Para a autora, a instabilidade oriunda desse processo repercute na extrema dificuldade de implementar reformas, em diferentes conjunturas históricas, sinal da reiterada "resistência do sistema ante a pretensão reguladora do aparelho estatal".

A opção de Paulo Buss, na apresentação do caso brasileiro, é demonstrar que a estruturação do sistema de serviços de saúde no Brasil e as reformas que historicamente têm sido implementadas "correspondem muito mais à lógica da acumulação do capital no setor do que às reais necessidades de saúde da população", uma vez que está associada ao modelo de desenvolvimento adotado pelo país nas ;últimas décadas, caracterizado como "modernização excludente". Essa interrelação é elaborada através da organização e análise dos dados disponíveis (sobre condições de vida e saúde da população e distribuição de recursos sanitários) e da descrição do desenvolvimento histórico e político-institucional da assistência médica no Brasil. O autor assume que essa determinação econômica é responsável pelas diferenças sociais que marcam a história nacional, evidenciadas nas distintas situações de vida e saúde das populações, em diferentes regiões e grupos sociais, e oportunidades iníquas de acesso ao sistema de saúde. Sua avaliação se dedica ainda à descrição dos mecanismos e instrumentos político-institucionais utilizados pela sociedade brasileira, nas últimas décadas, para impulsionar um processo de mudanças e reformas setoriais, à identificação de problemas e dificuldades na implementação da nova política de saúde resultante desse processo e à reiteração das bandeiras de luta da oposição setorial na perspectiva de consolidação do Sistema Único de Saúde.

O relato de José Joaquín O'Shanahan Juan, sobre a Espanha, é uma análise da situação atual do processo de reforma sanitária, iniciado em 1986, em que o autor reporta os avanços e retrocessos setoriais domésticos e os interrelaciona com as restrições impostas "desde fora"pela política internacional de construção do bloco europeu e pela hegemonia neoliberal no continente. Ou seja, avalia as opções políticas dos sucessivos governos socialistas (durante mais de doze anos) como mediadas pela necessidade de cumprir com as exigências internacionais impostas para a entrada da Espanha na Comunidade Econômica Européia e, mais recentemente, para a sua permanência na União Européia. No que toca à área sanitária, isto tem significado, desde a subida do Partido Socialista Espanhol ao poder, o não comprometimento efetivo do Estado com a implementação do Sistema Nacional de Saúde (isto é, a reforma sanitária ficou no meio do caminho) e, a partir dos anos 90, a explicitação da reorientação do processo de mudança na perspectiva de desestatizar os serviços públicos, tal como vem acontecendo em outros países europeus (como, por exemplo, a Inglaterra e a Itália).

Na discussão dos EUA, José Carvalho de Noronha e Maria Alicia Ugá partem da premissa que o sistema de saúde americano é coerente com "os princípios do Individualismo em que se apóia o ideário liberal"que permeia toda a sociedade norte-americana e, sendo assim, historicamente a saúde foi tratada "como problema de caráter individual". Isto explicaria o fato de que somente aos "incapazes de competir no mercado (isto é, os pobres, incapacitados, órfãos e idosos) se destinaram ações específicas promovidas por instituições de caridade e, secundariamente, pelos governos locais" e federal a partir de meados dos anos 60. Esta prescrição é exarcebada a partir dos anos 80 com a hegemonia neoliberal, que legitima e fortalece os resultados do processo de mercado como mecanismo mais eficiente para a alocação de recursos, mesmo em campo sanitário. Entretanto, para os autores, esses argumentos perdem a força frente os problemas enfrentados hoje pelo sistema de saúde norte-americano que, a partir dos anos 90, também tenta um processo de reforma em uma perspectiva de maior controle e intervenção estatal no setor.

Na sexta exposição que integra o livro, sobre o México, as autoras Catalina Eibenschutz, Silvia Tamez e Claudia Bodek assumem "que, a partir da década de 80, os processos econômicos e as soluções implementadas fizeram de toda a América Latina uma única região" que, embora não signifique identidade (cultural ou de nível de desenvolvimento), fornecem critérios para fazer uma "padronização" dos países latino-americanos, uma vez que todos se enfrentam com a crise econômica e a dívida externa; a política de ajuste imposta pelo FMI e o Banco Mundial; e a crise do Estado de Bem-Estar Social e sua "brusca transformação num modelo neoliberal". Assim, a discussão do sistema de saúde mexicano proposta pelas autoras destina-se a identificar as "modalidades de instrumentalização" desse modelo naquele país. A cidadania incompleta (que aliás é o modelo latino-americano, como argumentam) se explicaria pela "hegemonia que o Estado tem mantido sobre a sociedade civil desde a época da conquista", que justificaria o fato de que "o direito à saúde não faz parte da consciência de cidadania no México", sendo a "assistência à saúde percebida como dádiva e não como direito trabalhista ou social", pelo que parece não ter sido difícil para o governo restringir ainda mais os parcos direitos anteriores. A vinculação do México ao FMI e o cumprimento das metas impostas pelos acordos decorrentes teriam baixado brutalmente os níveis de investimento e implementado medidas privatizadoras, sem, entretanto, grandes reações da "cidadania mexicana".

Por fim, Gilles Dussault explicita o que considera algumas lições da reforma do sistema de saúde de Québec, identificando como "normal" o tom ideológico do debate sobre as reformas sanitárias nos anos 80, dada "a importância social e econômica do setor saúde". O autor centra sua exposição na simples descrição dos princípios que nortearam a reforma do sistema de saúde do Québec e das medidas tomadas para sua implementação, detectando como questão crucial os problemas de gestão e enfileirando algumas das dificuldades e problemas que têm preocupado as autoridades, sobretudo no que concerne à eficiência, que para o autor é problema prioritário.

De uma maneira geral, todos os textos aportam considerável quantidade de informação sobre os países que pretendem analisar, algumas mais completas que outras, fornecendo elementos importantes inclusive para possíveis análises posteriores.

O diálogo entre os casos está dado não pela identificação de determinantes dos processos de reforma, passíveis de serem arrolados como varáveis que permitam comparar distintas realidades, mas pela identificação de um movimento de mudanças que está presente em todos os sistemas, sobretudo nas últimas décadas.

Como bem alerta Labra, na Introdução, a partir de Calvino, "os textos falam por si", e nossas rápidas considerações apenas têm o intuito de introduzir o leitor nessa miríade de pontos de vista que fazem parte dos esforços de diálogo e difusão imprescindíveis ao avanço da produção do conhecimento na área de políticas de saúde e à melhor compreensão dos processos de reforma sanitária em curso pelo mundo.

 

Célia Almeida

Departamento de Administração e Planejamento em Saúde Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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