DEBATE DEBATE
Moisés Goldbaum Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. | Debate sobre o artigo de Gil Sevalho Debate on the paper by Gil Sevalho
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O trabalho apresentado é extremamente instigante, retomando de forma oportuna e com propriedade o debate (pouco estimulado e reconhecido) a respeito da teoria e dos conceitos em epidemiologia. O paraíso que o autor procura traçar com a evolução de outras áreas científicas, ainda que não possa ser aplicado de modo imediato e direto a outras tantas, tem o mérito de suscitar novas aproximações quanto à definição de variáveis e ao pensamento causal na metodologia epidemiológica.
A apreensão feita acerca da perspectiva positivista da disciplina mostra o alinhamento da mesma e a tradução da sua lógica nos termos das teorias da probabilidade. É uma evidência registrada, mostrando que a afirmação feita sobre o fato de o método epidemiológico não se indagar a respeito das representações que faz do tempo e, portanto, das suas outras variáveis, merece ser revitalizada. É oportuno dizer, então, que, seja explicitamente ou não, os movimentos predominantes na disciplina concebem e utilizam suas variáveis atendendo a sua operacionalidade e às instâncias nas quais promove ou sugere a própria intervenção. Em outras palavras, trata-se de verificar, ou melhor, explicitar, qual concepção e qual referencial estão sendo utilizados para entender a "socialização das coisas", uma vez que as diferentes formas como esta é apreendida seja no espaço, no tempo, ou nas próprias pessoas dão-lhe a abrangência e consistência pretendidas, guardando a coerência da explicação ou interpretação.
No caso do pensamento causal predominante, a epidemiologia utiliza o tempo como forma para encontrar factualmente elementos que expliquem a ocorrência de eventos em estudo. Duas situações em que isso ocorre são na sazonalidade (por exemplo, variações térmicas ou a possibilidade menor ou maior de dispersão ou concentração de substâncias no ambiente) ou na tendência secular (por exemplo, a introdução e/ou incorporação de novas tecnologias ou alteração de hábitos e costumes). Apresenta-se coerente com o modelo explicativo, no qual um ou vários antecedentes (físico, químico, biológico e "social") são identificados e a eles se atribui a qualidade de, linearmente, promover e desencadear alterações no organismo humano, ou seja, o seu conseqüente. Na raiz desse raciocínio localiza-se a forma como a causalidade é pensada em epidemiologia e operacionalizada enquanto instrumento para orientar a intervenção em saúde.
Não se pode, a despeito de o positivismo "ser um projeto empiricista e homogeneizador, querer controlar os eventos, por si só únicos e irrepetíveis, eliminando a perspectiva de mudanças nele contida", deixar de mencionar os avanços alcançados por esse tipo de conhecimento, os quais dialeticamente engendram as contradições à pretendida eliminação da "sucessão" e à contenção da "ameaça de mudança". Veja-se, nesse sentido, algumas conquistas sociais assinaladas na erradicação de certas doenças infecciosas ou mesmo na identificação de elementos nocivos ou protetores à saúde humana. Em tal condição pode-se verificar que esse modelo tem-se mostrado "útil" para situações específicas, às quais se aplicam modelos explicativos menos complexos e que se consolidaram na Saúde Pública tradicional ao lidar com determinadas doenças infecciosas (os exemplos de intervenção através da vacinação e do saneamento são bastante eloqüentes).
Da mesma forma, não se pode generalizar (ainda que seja prática corrente, na qual, com freqüência, os números obscurecem o objeto da pesquisa: o doente ou doentes, ou seja, as pessoas) a situação descrita por Skrabanek, haja visto que os maus usos das técnicas de pesquisa têm sido criticados unanimemente pelos autores mais responsáveis.
O tema abordado por Sevalho, como já dissemos, é oportuno e pode estender-se ao conjunto da epidemiologia e não só à variável tempo.
Nessa circunstância, é interessante registrar outras indagações a partir da polêmica estabelecida nos meios científicos concernente à menor ou maior proximidade da Epidemiologia à Saúde Pública, tal como a exibida pelas ponderações anotadas por Susser & Susser (1996a; 1996b) e Pearce (1996). Tanto um como o outro procuram mostrar suas preocupações quanto ao distanciamento da metodologia epidemiológica da sua contribuição central, que é a Saúde Pública na sua vertente populacional. Essas observações aliás, expostas pela primeira vez por ocasião do III Congresso Brasileiro de Epidemiologia permitem identificar três eras epidemiológicas sucessivas (sanitária, de doenças infecciosas e das doenças crônicas), às quais correspondem três paradigmas explicativos (miasmático, bacteriológico e da "caixa preta", respectivamente). Apesar de constatarem evolução ou mudança de paradigmas, impõe-se a reflexão sobre se, verdadeiramente, isso significa inovação.
Winkelstein (1996), em editorial no mesmo número da revista dos artigos citados, indaga-se quanto ao caráter evolutivo dessa representação, uma vez que, segundo seu argumento, com esse raciocínio presente na epidemiologia, descobertas ou evidências são mostradas da mesma forma desde 1767. Talvez assim se esteja a reforçar a idéia de que não se está diante de novo paradigma e que, em última instância, o modelo represente uma sofisticação daquele primeiro. Se essa concepção for real, o problema não se coloca ao nível das variáveis e se desloca à compreensão de paradigmas explicativos como questão central na epidemiologia, cuja abordagem, por exemplo, foi iniciada no nosso meio por Almeida-Filho (1992).
De qualquer forma, importa assinalar, como o fez Pearce (1996), que as técnicas utilizadas na epidemiologia, na medida da sua adequação à esfera da intervenção sobre a saúde, ou seja, o objeto de trabalho, têm-se mostrado bastante úteis em áreas científicas outras como a Clínica: nos estudos etiológicos, prognósticos e de curso de doenças nos indivíduos. Porém, em contrapartida, observa-se um fosso cada vez maior na sua aplicação à Saúde Pública, tal como concebida originalmente. No desdobramento dos artigos de Susser nota-se a emergência de nova era epidemiológica, ultrapassando-se o "paradigma" da caixa-preta para o das "caixas chinesas" e eco-epidemiologia. Abrem-se aí as necessidades para incorporar, ao lado do plano individual, aquilo que chamam de perspectivas molecular e societárias, procurando resgatar uma "epidemiologia orientada à saúde pública". Parece evidente que essa última abordagem obriga a trabalhar o entendimento do social na disciplina, ou seja, implica em ocupar-se de outra questão fundamental, aquela expressa nas concepções que se tem de população, para daí compreender o espaço, o tempo e as próprias características pessoais.
Essas questões centrais, na medida que sejam revistas e aplicadas ao método epidemiológico, podem promover campo fértil para a necessária incorporação dos avanços científicos das diversas áreas, como, por exemplo, vem sendo feito com as modernas técnicas matemático-estatísticas. O texto de Sevalho é um convite ao aprofundamento de todos esses temas.
ALMEIDA-FILHO, N., 1992. A Clínica e a Epidemiologia. Salvador: APCE-Abrasco.
PEARCE, N., 1996. Traditional epidemiology, modern epidemiology, and public health. American Journal of Public Health, 86:678-683.
SUSSER, M. & SUSSER, E., 1996a. Choosing a future nfor epidemiology. American Journal of Public Health, 86:668-673.
SUSSER, M. & SUSSER, E., 1996b. Choosing a future for epidemiology: I. Eras and paradigms. American Journal of Public Health, 86:674-677.
WINKELSTEIN JR., W., 1996. Editorial: eras, paradigms, and the future of epidemiology. American Journal of Public Health, 86:621-622.