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Luiz Carlos de Oliveira Cecilio 1 | Modelos tecno-assistenciais em saúde: da pirâmide ao círculo, uma possibilidade a ser explorada Technical health care models: from the pyramid to the circle, a possibility to be explored
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1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Cidade Universitária Zeferino Vaz, Campinas, SP 13084-100, Brasil. | Abstract The technical health care model that portrays the health system as a pyramid with ascending and descending flows of users obtaining access to differentiated levels of technological complexity within articulated reference and counter-reference processes has been conceived as a rationalizing perspective, the merit of which would be to provide greater efficiency in the use of resources, in addition to universal, equitable access. In practical terms, by assuming that facts occur differently than intended under a certain technocratic rationality, the author provides some explanations for this "distortion". He also defends the idea that the health system would be more adequately thought of as a circle, containing multiple "portals of entry" located at several points in the system rather than at a presupposed "base". The author also questions the sense of a "top level", a kind of expression related to a certain "technological hierarchy" with the hospital occupying the apex. At the same time he highlights the health system as an entity to be organized focusing on what is most relevant to each user, offering the most adequate technology in the right place and at the most appropriate time. Key words Techno-assistance Model; Health Services Accessibility; Health Planning; Public Health Resumo O modelo tecno-assistencial que pensa o sistema de saúde como uma pirâmide, com fluxos ascendentes e descendentes de usuários acessando níveis diferenciados de complexidade tecnológica, em processos articulados de referência e contra-referência, tem se apresentado como uma perspectiva racionalizadora, cujo maior mérito seria o de garantir a maior eficiência na utilização dos recursos e a universalização do acesso e a eqüidade. Reconhecendo que, na prática, os fatos se dão de maneira muito diferente da pretendida por uma certa racionalidade tecnocrática, o autor aponta algumas explicações para esta "distorção". Defende, ainda, a idéia de que o sistema de saúde seria mais adequadamente pensado como um círculo, com múltiplas "portas de entrada" localizadas em vários pontos do sistema e não mais em uma suposta "base". Questiona a idéia de um "topo", expressão topográfica de uma certa "hierarquia tecnológica" que teria o hospital no seu vértice, e aponta a necessidade do sistema de saúde ser organizado a partir da lógica do que seria mais importante para cada usuário, no sentido de oferecer a tecnologia certa, no espaço certo e na ocasião mais adequada. |
Uma breve contextualização das idéias apresentadas a seguir
Boa parte da literatura sobre modelos assistenciais em saúde tem uma certa postura de "exterioridade" em relação ao objeto trabalhado, um olhar "desde fora", quase sempre com a intenção de uma abordagem mais "estrutural", no sentido de totalizador, como apresentado em documento do MPAS (1983). Observa-se assim uma visão que se poderia denominar de racionalizadora e "técnica", na medida em que as pessoas reais, com suas angústias e sofrimentos passam a ser vistas, no jargão tecnocrático presente nesta literatura, como "usuários" do sistema, espécie de "agentes" dotados de comportamentos previsíveis, que deverão ser enquadrados a partir desta racionalidade exterior.
As observações que são feitas a seguir não pretendem pensar o modelo assistencial do "sistema de saúde" de uma forma fechada e acabada, mas iluminar certas dificuldades vividas, no cotidiano, por quem procura os serviços do SUS. Nesta medida, o autor coloca-se "no interior" do objeto trabalhado, abandonando qualquer intenção de distanciamento e compromisso com idéias racionalizadoras de caráter globalizante. Mais especificamente, olha-se o hospital como espaço privilegiado para entender fluxos e demandas do "cidadão comum", com seus desejos e necessidades; um olhar compartilhado com trabalhadores de saúde, gerentes de nível intermediário e superior e usuários, valendo-se de práticas institucionais desenvolvidas nos últimos anos como relatado por Cecilio (1994).
Há, então, no texto, uma intenção explícita de abandonar qualquer concepção apriorística do hospital, com base em uma certa racionalidade que o coloque no topo de uma pirâmide hierarquizada de serviços e tentar, sim, explorar novas alternativas, novos circuitos de integração entre os serviços, sem nunca perder de vista os "usuários" reais. A referência passa a ser as pessoas e suas necessidades e não qualquer tipo de "modelo assistencial" que possa ser previamente definido, conforme já apontado anteriormente por Campos (1994).
Sem desconhecer a discussão colocada por autores como Mendes (1996), no sentido da necessidade de uma crítica mais "estrutural" à própria concepção de modelos de assistência à saúde, o artigo tem como objetivo apenas apontar algumas possibilidades de intervenção no movimento real da assistência à saúde, nos moldes em que a mesma se dá nos dias que correm em nosso país, quem sabe testando, na prática, novas possibilidades de construção do SUS que queremos.
A pirâmide que traduzia nosso projeto de atenção à saúde
Por tantos anos, temos utilizado a figura clássica de uma pirâmide para representar o modelo tecno-assistencial que gostaríamos de construir com a implantação plena do SUS. Na sua ampla base, estaria localizado um conjunto de unidades de saúde, responsáveis pela atenção primária a grupos populacionais situados em suas áreas de cobertura. Para esta extensa rede de unidades, distribuídas de forma a cobrir grupos populacionais bem definidos (populações adscritas) seria estabelecida, de uma forma geral, a seguinte missão: oferecer atenção integral à saúde das pessoas, dentro das atribuições estabelecidas para o nível de atenção primária, na perspectiva da construção de uma verdadeira "porta de entrada" para os níveis superiores de maior complexidade tecnológica do sistema de saúde. Na parte intermediária da pirâmide estariam localizados os serviços ditos de atenção secundária, basicamente os serviços ambulatoriais com suas especialidades clínicas e cirúrgicas, o conjunto de serviços de apoio diagnóstico e terapêutico, alguns serviços de atendimento de urgência e emergência e os hospitais gerais, normalmente pensados como sendo hospitais distritais. O topo da pirâmide, finalmente, estaria ocupado pelos serviços hospitalares de maior complexidade, tendo no seu vértice os hospitais terciários ou quaternários, de caráter regional, estadual ou, até mesmo, nacional. O que a pirâmide quereria afinal representar seria a possibilidade de uma racionalização do atendimento, de forma que haveria um fluxo ordenado de pacientes tanto de baixo para cima como de cima para baixo, realizado através dos mecanismos de referência e contra-referência, de forma que as necessidades de assistência das pessoas fossem trabalhadas nos espaços tecnológicos adequados.
As vantagens de se pensar o sistema de saúde como uma pirâmide
A proposta de "regionalização e hierarquização dos serviços", traduzida na pirâmide descrita no item anterior, foi incorporada ao ideário dos que lutam pela construção do SUS no nosso país e tornou-se uma espécie de "bandeira de luta" consensual do movimento sanitário pelas seguintes razões:
está indissociavelmente ligada à idéia de expansão da cobertura e democratização do acesso aos serviços de saúde para todos os brasileiros. A formulação de uma "porta de entrada" para garantir acesso universal ao sistema pode ser vista como a expressão semiótica desta diretiva política do movimento sanitário;
o espaço propiciado por uma ampla rede básica de serviços de saúde, com responsabilidade pela atenção a grupos populacionais bem definidos (população adscrita), sempre nos pareceu como o ideal para o exercício de práticas e saberes alternativos ao modelo hegemônico vigente, sabidamente centrado no atendimento médico, medicamentalizante, com pouca ou nenhuma prática de prevenção das doenças e promoção da saúde. O espaço da rede básica seria então o locus privilegiado para a testagem e construção de um modelo contra-hegemônico de atenção à saúde;
a hierarquização dos serviços seria a principal estratégia para a racionalização no uso dos parcos recursos existentes no setor saúde. Representaria a utilização do recurso tecnológico certo, no espaço certo, de acordo com necessidades bem estabelecidas dos usuários. A hierarquização garantiria o acesso, para o paciente que entrou pela "porta de entrada", a todas as possibilidades tecnológicas que o sistema de saúde dispusesse para enfrentar a dor, a doença e o risco da morte. A pirâmide, nessa medida, tem o valor quase de um símbolo da luta em defesa da vida;
a proximidade do serviço de saúde da residência do usuário seria um facilitador tanto do acesso, como possibilitaria a criação de vínculos entre a equipe e a clientela;
a pirâmide seria um orientador seguro para a priorização de investimentos tanto em recursos humanos, como na construção de novos equipamentos, na medida em que seria mais fácil perceber onde estariam localizadas as reais necessidades da população.
Podemos dizer que a representação do sistema de saúde por uma pirâmide adquiriu tanta legitimidade entre todos os que têm lutado pela construção do SUS porque conseguiu representar, de forma densa e acabada, todo um ideário de justiça social no que ele tem de específico para o setor saúde.
O que tem acontecido, na prática, com o nosso desejo de construir a pirâmide do SUS
Todos aqueles que têm atuado no setor saúde ou precisado se utilizar dele nos últimos anos podem afirmar, sem muitas dúvidas, que anda bastante difícil visualizar qualquer coisa que, de fato, se aproxime da imagem projetada da pirâmide. Vamos aos fatos que demonstram esta afirmação:
A rede básica de serviços de saúde não tem conseguido se tornar a "porta de entrada" mais importante para o sistema de saúde. A "porta de entrada" principal continua sendo os hospitais, públicos ou privados, através dos seus serviços de urgência/emergência e dos seus ambulatórios. Atesta isto o fato de os atendimentos hospitalares serem expressivamente maiores do que o atendimento total feito nas unidades básicas de saúde, na maioria dos municípios nos quais exista a alternativa de acesso ao hospital. Os pronto-socorros sempre lotados são a imagem mais expressiva desta situação.
Todos os levantamentos realizados a respeito do perfil de morbidade da clientela atendida nos pronto-socorros mostram que a maioria dos atendimentos é de patologias consideradas mais "simples", que poderiam ser resolvidas no nível das unidades básicas de saúde. Por exemplo, pesquisa realizada pela equipe do Hospital Municipal de Volta Redonda (RJ), no primeiro semestre de 1996, revelou que, no mês de fevereiro/96, 66,5% das consultas em Pediatria e 52,5% daquelas em Clínica Médica realizadas no Pronto-Socorro não podiam ser consideradas como de urgência/emergência. Ou seja, há uma "distorção" no atendimento tanto quantitativo, como qualitativo. Tal "distorção" também é detectada nos ambulatórios hospitalares e nos ambulatórios de clínicas especializadas.
O acesso aos serviços especializados é bastante difícil, mesmo quando são implantadas medidas mais rigorosas de exigência da referência (marcação de consulta) pelas unidades básicas. Em geral, as esperas são tão demoradas, que resultam em desistência da consulta agendada. O número de consultas em especialidades é insuficiente perante as necessidades da população usuária do sistema. Os serviços ambulatoriais especializados mantêm certas "clientelas cativas", que poderiam muito bem estar sendo acompanhadas em nível de rede básica. A contrapartida disto é que os médicos da rede freqüentemente se "livram"dos pacientes, encaminhando-os para os especialistas, quando poderiam fazer o seguimento no centro de saúde mesmo.
É muito difícil conseguir acesso às cirurgias eletivas, tanto usando o centro de saúde como "porta" ou mesmo o atendimento através dos pronto-socorros.
Em resumo e como síntese destas constatações, é possível dizer que a pirâmide, a despeito da justeza dos princípios que representa, tem sido muito mais um desejo dos técnicos e gerentes do sistema, do que uma realidade com a qual a população usuária possa contar. Na prática, aqueles que dependem exclusivamente do SUS algo em torno de 80% da população têm que montar o seu "menu" de serviços, por sua conta e risco, buscando onde for possível o atendimento de que necessita. Daí ser uma prepotência tecnocrática dizer que o "povão" é deseducado, que vai ao pronto-socorro quando poderia estar indo ao centro de saúde. As pessoas acessam o sistema por onde é mais fácil ou possível. Não é à toa que a assistência à saúde ocupa um lugar central nas preocupações do "cidadão comum". O fato cruel, mas não por isto menos real, é que a grande maioria da nossa população sente-se insegura e abandonada quando necessita de atendimento médico-hospitalar. Por isso, é necessário coragem e lucidez para repensar alguns princípios que têm orientado o modelo assistencial do SUS, por mais que eles nos pareçam justos e adequados, por mais que seja difícil rever certos pressupostos que, de tanto repetirmos, passamos a tomá-los como verdadeiros e suficientes para a transformação da realidade sanitária brasileira.
Algumas explicações para o fracasso do tão decantado modelo da pirâmide
Para entendermos as dificuldades listadas no item anterior é possível trabalharmos com dois blocos principais de explicações. O primeiro deles diz respeito a causas mais gerais, ligadas à própria configuração do SUS nos seus aspectos de financiamento, relação público e privado, como é feita sua gestão e como é realizado o controle por parte dos usuários. O segundo aponta, diretamente, para a questão de como temos pensado o modelo tecno-assistencial, ou seja, coloca-nos a necessidade de questionarmos a idéia da organização do SUS nos moldes de uma pirâmide hierarquizada de serviços.
No primeiro bloco de explicações para as dificuldades de construção do SUS, é possível apontar, resumidamente, os seguintes pontos:
os recursos destinados ao setor saúde têm sido insuficientes. Segundo Levcovitz (1995) a adoção de políticas econômicas de ajuste estrutural tem conduzido à restrição do volume de recursos financeiros para a Saúde na ordem de um terço do montante disponível há cerca de cinco anos, ao passo em que se elevou de um terço a demanda pelos serviços públicos;
a atuação do setor privado de forma suplementar ao setor público, inclusive como previsto na Constituição de 1988 e na Lei Orgânica da Saúde de 1990, não tem ocorrido na prática. Ao contrário, há um processo de retração progressiva da oferta de serviços para o SUS, na medida em que um número crescente de serviços ambulatoriais e hospitalares contratados buscam garantir sua sobrevivência financeira através da criação de planos de saúde próprios, oferecidos a grupos populacionais que podem pagar pelos mesmos. A conseqüência disto é a dificuldade, quando não a impossibilidade, de acesso das amplas massas de brasileiros aos cuidados mínimos de saúde, mesmo quando há capacidade instalada ociosa no setor privado;
o próprio setor público opera uma rede ambulatorial e hospitalar, que é, paradoxalmente, muitas vezes ociosa. No caso, o paradoxo é a coexistência da grande dificuldade de acesso da população aos serviços com a ociosidade na utilização dos equipamentos e recursos existentes. De alguma forma seria possível utilizarmos a imagem de alguém morrendo de sede tendo um copo de água fresca ao alcance da mão! Portanto, uma parcela importante de responsabilidade pelas dificuldades de constituição de uma rede pública de cuidados à saúde pode ser creditada ao modo como tem sido gerenciado o setor público.
O primeiro bloco de explicações nos diz, em resumo, que os recursos para a saúde são escassos, mas que mesmo os poucos recursos são mal utilizados. Contribui para isto tanto a existência de verdadeiros filtros, no setor privado, baseados em critérios econômicos que discriminam, de forma perversa, quais os brasileiros que podem e quais os que não podem usar determinados serviços, como a ociosidade dos equipamentos públicos. O que se tenta demonstrar, na seqüência, é que a forma como temos pensado o modelo tecno-assistencial tem tido uma responsabilidade muito grande para o agravamento dos problemas que são vividos pela população na sua busca de assistência à saúde. Vejamos alguns aspectos:
Não temos tido clareza suficiente sobre qual é o verdadeiro papel das unidades básicas de saúde, por mais que tenhamos discutido o assunto e escrito sobre ele nos últimos anos. Na verdade, temos oscilado de uma certa visão quase "purista" do centro de saúde como local, quase exclusivamente, de promoção da saúde e prevenção das doenças, com suas práticas orientadas pelo saber que nos vem da Epidemiologia e dedicado a fazer "vigilância à saúde", até uma visão mais "realista" de que as unidades básicas têm que se comprometer com a necessidade de pronto-atendimento das pessoas, "virando-se" para organizar seus processos de trabalho de forma a "não deixar ninguém sem atender". Nossa experiência institucional no Laboratório de Administração e Planejamento (LAPA) da Unicamp, nos últimos 15 anos, já nos mostrou quais são os problemas oriundos destas duas formas polares de se pensar uma unidade básica de saúde. Na primeira, acabamos organizando centros de saúde bem-estruturados, que desenvolvem muitas vezes um trabalho de ótima qualidade, mas que padecem de ser muito fechados às necessidades mais agudas dos seus usuários. Como estes últimos costumam dizer: "Depois que a gente consegue entrar nestes serviços é uma maravilha. O duro é conseguir entrar". Por outro lado, a orientação de "escancarar" o centro de saúde, no sentido de torná-lo a verdadeira porta de entrada do sistema de saúde, por mais que se amplie e se invista nele, fica sempre aquém do que desejamos. Seja porque parece não ter fim a demanda por pronto-atendimento por parte da população, seja porque, por mais equipado que esteja o centro de saúde, ele é sempre menos resolutivo do que é necessário diante das situações que exijam um atendimento mais ágil, dito de "urgência". Pelo menos é o que parece estar gravado com muita força no imaginário popular, na medida em que as pessoas não hesitam em buscar, nos serviços de pronto-socorro, a resposta para seus "problemas" agudos de saúde. O centro de saúde fica reconhecido como um lugar em que ele deve buscar atendimento em situações bem específicas, com atendimento em geral agendado, em horários bastante rígidos e sempre com o risco de ser encaminhado para consulta no pronto-socorro.
Chama nossa atenção, também, o fato de que a orientação de aumentar cada vez mais a resolutividade do centro de saúde para realizar o "pronto-atendimento", tanto por uma maior "complexificação tecnológica", como por mudanças radicais na organização de seus processos de trabalho, acaba como que tendendo a reproduzir um "mini-hospital" ou um pronto-socorro miniaturizado e simplificado (nem sempre muito resolutivo), de forma que a lógica assistencialista, muito centrada no trabalho do médico, acaba "colonizando" a vida da unidade e "comprimindo" as atividades de prevenção das doenças e promoção da saúde, já que há uma "disputa" pela utilização dos recursos no serviço. Como conseqüência, a unidade acaba não sendo nem um centro de saúde nem um hospital. A população continua buscando os pronto-socorros e a unidade se deslegitima ainda mais, pois deixa de fazer aquilo que era seu papel mais reconhecido pelos usuários.
Nos hospitais, como não poderia deixar de ser, também são grandes as distorções em relação ao que se supõe ser sua missão, pelo menos tomando como referência o modelo da pirâmide. O grande volume de atendimento feito nos seus pronto-socorros e ambulatórios pode ser considerado como de "nível primário", para ser resolvido nos centros de saúde. Pelo menos é isto que um modelo pensado como hierarquizado nos leva a crer. Em geral, afirmamos que "a população está entrando pela porta errada", ou não seria mais correto afirmarmos, como já lembrado anteriormente, que as pessoas, diante de suas necessidades, acabam acessando o sistema por onde é possível, contrariando qualquer delírio racionalista que os técnicos do setor saúde continuam a defender sob a forma de uma pirâmide de serviços?
As más conseqüências desta verdadeira "invasão" dos serviços de urgência/emergência por todo e qualquer tipo de patologia não são poucas. Além da tensão sempre presente nos locais onde é feito o atendimento de urgência e emergência, que resulta em grande estresse e desgaste dos trabalhadores de saúde e desconforto para os usuários que acabam sendo atendidos após longas esperas, de forma impessoal e corrida, existe um problema que merece ser especialmente destacado: a inadequação do atendimento prestado. É claro que em algumas dituações de sofrimento caracterizadamente de urgência/emergência, em particular aqueles casos de sofrimento agudo (infarto do miocárdio, quadros infecciosos agudos, traumas, entre outros), o atendimento realizado no pronto-socorro é o ideal. É o que se poderia nomear como a utilização da tecnologia certa, no espaço certo, no momento certo. A questão é que já temos informações suficientes para sabermos que tais casos acabam constituindo um percentual muito pequeno dentro do volume total de atendimentos. "Misturados" com estes casos realmente agudos, é atendida uma legião de pessoas cujos problemas deveriam ser abordados com outras tecnologias e em outros espaços. É o caso das queixas relacionadas com as doenças crônico-degenerativas, tais como diabetes, obesidade, hipertensão arterial, doenças osteo-articulares, doenças pulmonares crônicas, doenças de fundo emocional, entre outras. O que ocorre então é que um número muito grande de pessoas acaba tendo um atendimento incompleto, descontínuo e, portanto, insuficiente e inadequado para os seus problemas de saúde. É como se fosse dispensado um grande esforço e realizassem-se gastos enormes em atendimentos que poderiam ser considerados, sem exagero, como "atendimentos de mentirinha". Fecha-se um ciclo perverso. Os profissionais de saúde sabem que o seu trabalho é inadequado e esta consciência, de alguma forma, pesa negativamente em suas subjetividades. Os usuários, mais do que ninguém, sabem que o atendimento recebido é paliativo e insatisfatório. Os poucos recursos são mal gastos agravando o quadro crônico de insuficiência dos mesmos.
Cabem agora algumas perguntas neste roteiro, que tenta debitar à concepção do modelo assistencial parte importante das responsabilidades pelas mazelas na assistência à saúde da população: que outro ator social, que não os gerentes e trabalhadores do setor saúde, detém recursos de conhecimento e poder para enfrentamento dos problemas listados no item anterior? Por que é que não temos nos mobilizado para encarar estas questões, tentando viabilizar alternativas mais adequadas de organização dos serviços?
Os serviços ambulatoriais, localizados nos hospitais ou em unidades de referência, ficam como "peças soltas" dentro do sistema, na medida em que sua articulação tanto com a rede de serviços básicos, como com o hospital é mal-equacionada. A missão destas unidades nem sempre é trabalhada com clareza. Idealmente deveriam funcionar tanto como suporte mais especializado, dotadas que são ou deveriam ser de maior complexidade tecnológica e capacidade resolutiva, para atendimento de encaminhamentos feitos pela rede básica, como deveriam funcionar como espécie de "ambulatório de egressos" para dar cobertura aos pacientes em alta hospitalar e que continuassem necessitando de atendimento mais cuidadoso e diferenciado, mas passível de ser realizado fora do ambiente hospitalar. Caberia ainda às equipes lotadas nos ambulatórios o papel de capacitação das equipes locais, buscando aumentar sua autonomia e capacidade de resolver problemas em nível de "atenção primária". A exigência formal de que a consulta especializada só seja marcada se referenciada pela rede básica, acaba sendo mais um dificultador da vida do usuário do que uma estratégia potente para o redesenho de novos circuitos e fluxos no interior do sistema.
Uma das faces mais prontamente identificáveis das distorções do atual modelo assistencial, além de todas as já apontadas, diz respeito à substituição de uma calorosa e humanizada relação médico-paciente, por uma excessiva e desnecessária solicitação de exames complementares.
Como síntese das observações feitas a respeito das explicações que podem ser creditadas à forma como tem sido pensado o modelo assistencial, poderia ser dito o seguinte: temos insistido em defender determinadas missões para os serviços localizados nos vários níveis da pirâmide (centros de saúde, ambulatório e hospitais) que não guardam relação com a realidade. Os centros de saúde nem bem fazem vigilância à saúde, assumindo efetiva responsabilidade pelos grupos de risco nas sua áreas de cobertura, nem conseguem dar resposta para as demandas por pronto-atendimento da população de sua área de cobertura; os ambulatórios não conseguem exercer, em toda a sua plenitude, o seu papel de referência técnica especializada para a rede básica; os hospitais são espaços profundamente desumanizados, tanto para os trabalhadores como para os usuários, gastando recursos e energias que resultam, na maioria das vezes, em baixo impacto sobre as reais condições de saúde da população. Quem mais sofre com isto é a população dependente do SUS, que tenta furar os bloqueios de todas as formas, acessando aos cuidados de que necessita por múltiplas entradas, tentando garantir alguma integralidade de atendimento por conta própria, na medida em que o sistema de saúde não se organiza para isto. Nesta medida, a concepção do sistema como uma pirâmide está muito distante da realidade do usuário real. A tese que se procura apresentar e discutir no próximo ponto é a seguinte: não adianta mais insistir na idéia de que o modelo da pirâmide é ótimo e que só nos falta implantá-lo definitivamente para que tudo fique bem para os usuários. Pelo contrário, é necessário pensar novos fluxos e circuitos dentro do sistema, redesenhados a partir dos movimentos reais dos usuários, dos seus desejos e necessidades e da incorporação de novas tecnologias de trabalho e de gestão que consigam viabilizar a construção de um sistema de saúde mais humanizado e comprometido com a vida das pessoas. Daí que se propõe um "arredondamento" da pirâmide, num movimento sutil, mas determinado, que, quebrando seus duros ângulos, leve-nos a conceber o sistema de saúde como a mais perfeita forma geométrica conhecida pelos homens: o círculo!
O modelo assistencial pensado como um círculo
Antes de mais nada, é necessário esclarecer que repensar o modelo assistencial nos moldes sugeridos no item anterior não significa abandonar nenhum dos ideários da reforma sanitária no que diz respeito ao compromisso inegociável de lutar por um sistema de saúde público, voltado para o atendimento universalizado, com eqüidade, organizado de forma a garantir um atendimento integral, de boa qualidade, colocando à disposição da população brasileira tudo o que as ciências de saúde têm de mais avançado para defender a vida das pessoas, garantindo a participação dos trabalhadores de saúde e dos usuários, da forma mais radical e plena possível, na gestão dos serviços. Pelo contrário. É preciso entender as colocações, feitas a seguir, como parte de um esforço imenso de ampliação e reorientação dos gastos em saúde, pari passu com importantes medidas de reorganização dos serviços, dotando-os de uma racionalidade mais próxima das necessidades dos usuários do sistema. Discutem-se aqui quais medidas de reorganização do sistema podem e devem ser implementadas visando implementação do Sistema Único de Saúde brasileiro.
Pensar o sistema de saúde como um círculo é, em primeiro lugar, relativizar a concepção de hierarquização dos serviços, com fluxos verticais, em ambos os sentidos, nos moldes que a figura da pirâmide induz. A pirâmide só faz sentido, no senso comum, quando vemos sua base mais larga voltada para baixo e a mais estreita para cima. A sua imagem contrária, apresentada de forma invertida, dá idéia de instabilidade e transmite a sensação de que algo está errado. Assim, associar o modelo assistencial à figura da pirâmide nos coloca em uma armadilha dos sentidos, que fatalmente nos faz pensar em fluxos hierarquizados de pessoas dentro do sistema. Com tal concepção há de se romper com radicalidade. O círculo se associa com a idéia de movimento, de múltiplas alternativas de entrada e saída. Ele não hierarquiza. Abre possibilidades. E assim deve ser o modelo assistencial que preside o SUS. Trabalhar com múltiplas possibilidades de entrada. O centro de saúde é uma boa entrada para o sistema, assim como também o são os pronto-socorros hospitalares, as unidades especializadas de pronto-atendimento e tantos outros serviços. A escola pode ser uma boa porta de entrada, assim como a farmácia do bairro, a creche, o quartel e qualquer outro equipamento social. A primeira estratégia nossa há de ser então a de qualificar todas estas portas de entrada, no sentido de serem espaços privilegiados de acolhimento e reconhecimento dos grupos mais vulneráveis da população, mais sujeitos a fatores de risco e, portanto, com mais possibilidade de adoecimento e morte, para, a partir deste reconhecimento, organizá-los no sentido de garantir o acesso de cada pessoa ao tipo de atendimento mais adequado para o seu caso.
Comecemos pela porta de entrada mais importante do sistema hoje: os serviços de urgência e emergência. Por tudo que já foi dito, tais serviços têm, nas condições concretas da sociedade brasileira, uma enorme legitimidade perante a população. Não ajuda muito dizer que isto é uma distorção. Fazer um juízo de valor deste comportamento dos usuários não leva a lugar nenhum. Com o grau de carência de grandes extratos da nossa população e, principalmente, em função da ausência concreta de alternativas para acessar aos serviços de que necessita, à maioria da população não resta alternativa que não seja a de utilizar dos serviços de urgência para resolver todo e qualquer problema de saúde. O mais complicado é que, como já foi referido, tais serviços não estão estruturados para oferecer o atendimento adequado ao grosso de sua demanda. O resultado disto é que os pronto-socorros vivem lotados, com um número crescente de atendimento que podem dar a impressão de que a população está sendo atendida em suas necessidades, mas, de fato, não está. O tratamento feito, na maioria das vezes, é apenas paliativo, do tipo queixa-conduta ou, para cada sintoma, um medicamento, de modo que o problema de fundo de quem está buscando o atendimento não é enfrentado. Afirmar isto não significa desconsiderar que, como também já foi dito, um percentual dos atendimentos feitos em nível dos serviços de urgência é perfeitamente adequado para a pessoa naquele momento. Citam-se aqui, só a título de exemplo e sem querer esgotar todas as possibilidades, as situações de trauma e os episódios isolados de doenças infecciosas agudas. Nestes casos, o pronto-socorro ou a unidade de pronto-atendimento oferecem a tecnologia certa, no lugar certo, no momento certo, conforme já colocado anteriormente. Porém, é possível oferecer mais para os usuários, no sentido de qualificar o atendimento prestado. Algumas possibilidades que podem ser pensadas:
Trabalhar com protocolos que estabeleçam quais são as patologias que necessitam ter acompanhamento mais apropriado que não aquele atendimento que está sendo feito no pronto-socorro. Com base nestes protocolos, as equipes dos serviços de emergência deveriam se responsabilizar pelo encaminhamento do paciente para o espaço tecnológico adequado dentro do sistema. O paciente hipertenso, diabético, asmático, ansioso, ou portador de qualquer patologia que necessita de apoio e acompanhamento mais sistematizado, já sairia do pronto-socorro com consulta com dia e hora marcados no serviço apropriado. A responsabilidade de garantir a integralidade do atendimento é do sistema como um todo e não uma batalha individual e solitária de cada paciente. O destino deste cliente poderá ser o centro de saúde mais próximo a sua residência, um ambulatório de especialidades ou qualquer outra possibilidade existente dentro do sistema. Importa reter que este é, tipicamente, um trabalho de toda a equipe, a fim de proporcionar ao paciente desde o atendimento médico inicial até o documento que lhe garante o acesso ao serviço do qual necessita.
Criar "vínculos provisórios" com médicos ou equipes dos serviços de urgência, no sentido de tentar aproveitar o atendimento inicial que o paciente está recebendo, para, em determinados casos estabelecidos também em protocolos, avançar na exploração e elucidação do problema do mesmo, dentro dos limites tecnológicos e organizacionais do pronto-socorro. Por exemplo, de um paciente hipertenso jovem, ainda sem vínculo estabelecido com qualquer serviço que lhe garanta o atendimento regular necessário, deverão ser solicitados os exames complementares considerados como preliminares ou uma outra consulta para nova avaliação, com agendamento para o mesmo dia em que o médico que iniciou a exploração esteja de novo de plantão. Espera-se, com este "vínculo provisório" ao médico ou à equipe do pronto-socorro, criar o sentido de responsabilidade com o paciente e garantir o seu adequado encaminhamento ao serviço apropriado, após realizadas as investigações iniciais.
O modelo assistencial que será trabalhado para "dentro" do hospital, mais especificamente no cuidado ao paciente hospitalizado, deverá dar ênfase à constituição de equipes horizontalizadas, responsáveis por grupos de leitos nas enfermarias, de forma a facilitar a criação de vínculos entre a equipe e os pacientes. Os ambulatórios hospitalares deverão ser reduzidos ao mínimo necessário para dar atendimento aos egressos das várias enfermarias, mas que ainda estejam necessitando de seguimento mais próximo da equipe que iniciou o tratamento. Esta é uma estratégia importante para a redução do tempo de internação hospitalar, valorizando novos espaços e tecnologias que permitam, de alguma forma, esvaziar a centralidade da internação hospitalar no tratamento dos doentes.
É possível e necessário explorar estratégias de desconcentração do atendimento hospitalar. Os programas de internação domiciliar, de visita domiciliar ou do médico de família, com suas abordagens diferenciadas, reforçam este necessário movimento desconcentrador.
Poder-se-á argumentar que o tipo de solução pensado para o atendimento de urgência/emergência não é novo, pelo menos como proposta. A questão é que, raras vezes, consegue ser implementado com a radicalidade necessária, porque implica, entre outras coisas, uma verdadeira revolução tecnológica nos processos de trabalho nos serviços de urgência, uma "revolução cultural" na cabeça dos técnicos e, outra vez, uma verdadeira revolução tecnológica aliada à construção de uma nova ética de trabalho nas unidades que compõem a rede básica de serviços. E esta não é uma tarefa fácil, conquanto não impossível. No próximo ponto exploram-se algumas possibilidades de reorganização do centro de saúde em função da lógica circular do sistema.
O centro de saúde deve ter, como missão principal, o reconhecimento dos grupos mais vulneráveis na sua área de atuação e a responsabilidade de garantir atendimento adequado às pessoas sujeitas a maior risco de adoecimento e morte que compõem estes grupos. Para cumprir esta missão, o centro deverá se estruturar para as seguintes atividades principais: delimitar e conhecer em profundidade o seu território, em todos os aspectos que são pertinentes aos cuidados de saúde; prestar atendimento direto às pessoas que pertençam aos grupos mais vulneráveis e funcionar como articulador competente do acesso destas mesmas pessoas a recursos tecnológicos mais complexos, em outros pontos do sistema. O centro de saúde deve se qualificar bem para ser uma das portas de entrada do sistema de saúde e, como parte de uma rede básica, não deve mais ser pensado como a porta de entrada do sistema (a porta hegemônica). O centro de saúde tem o papel muito importante de articular o acesso dos usuários aos outros pontos do sistema, devendo, por outro lado, organizar-se para dar acolhida a todas as pessoas que, tendo entrado em outros pontos do sistema, necessitam de atendimento regular e qualificado. E, de fato, todos sabemos que a rede básica é o espaço que dispõe de um grande acúmulo de experiência e possibilidade para este tipo de atendimento, denominado, de uma forma geral, de programático. O grande problema da rede é o acesso. Freqüentemente ótimos programas são usufruídos por uma parcela muito pequena da população adscrita. Aqueles que poderiam estar se utilizando da tecnologia de que o centro de saúde dispõe estão "perdidos" no sistema, forçando portas de entrada não organizadas ou "preparados" para fazer o seu acolhimento. As pessoas, mesmo aquelas consideradas de risco, entram e saem do sistema repetidas vezes e não são "capturadas". O atual modo de funcionamento do sistema não propicia isto. Então, é necessário tanto introduzir novas lógicas de trabalho nos serviços de urgência e nos hospitais, como pensar o centro de saúde de outra maneira. Uma coisa é verdade: se os atuais centros de saúde se propusessem a cumprir as suas atribuições de fazer vigilância à saúde nas suas áreas de cobertura e garantir seguimento bem qualificado às pessoas que lhe fossem referenciadas pelos outros serviços de saúde, não lhes sobraria muitos recursos de espaço e pessoal para se organizarem a fim de fazer o pronto-atendimento. É claro que o centro de saúde deve trabalhar, na medida de suas possibilidades, com o que se denomina de agenda aberta. Isto implica organizar o seu processo de trabalho de forma a garantir o máximo de "encaixes" de pacientes não agendados previamente. Tal preocupação deve existir tendo em vista, principalmente, os grupos de risco já matriculados no serviço e que já vêm recebendo atendimento regular. Estas pessoas já têm seus prontuários na unidade, já são conhecidas pela equipe e precisam ser acolhidas da melhor forma possível, pela unidade, nos momentos de suas "intercorrências". Esta é, aliás, uma das melhores formas de legitimar a unidade perante os olhos da população que a primeira se propõe a atender: estar aberta para receber as pessoas quando elas se sentem doentes e necessitando de atendimento. Porém, sem dúvida, considerando-se as atuais áreas físicas e equipamentos existentes nas nossas unidades básicas, será preciso fazer uma clara opção sobre qual modelo será priorizado: insistir que o centro de saúde deve se responsabilizar por toda a demanda que bate à sua porta, reproduzindo de certa forma a missão que está colocada para os serviços de urgência, ou reorganizá-lo de forma a ser responsável pela vigilância à saúde na sua área de cobertura e uma boa referência para pacientes que necessitam de atendimento continuado e vínculo com equipes?
É necessário, no entanto, dizer que o autor não desconsidera a possibilidade de ser contra-argumentado com a idéia de que, se toda a rede básica já existente nos municípios recebesse investimentos maciços para que se alcançasse um padrão médio de centros de saúde com área física em torno de 400 m2, equipe de, no mínimo, 15 médicos (pediatras, clínicos e toco-ginecologistas), funcionando das 7h às 22 h, inclusive aos sábados, com gestão de ótima qualidade, responsável por uma cobertura de, no máximo, vinte mil pessoas (70% dependentes do SUS), além de ter toda a sua lógica de trabalho orientada para a integralidade da atenção (da vigilância à saúde aos primeiros socorros em situações de urgência/emergência), poderia talvez validar a concepção do sistema de saúde como uma pirâmide, em particular a proposta da rede básica, pensada como uma grande "porta de entrada" do sistema (estes dados foram obtidos valendo-se da experiência concreta do Centro de Saúde da Vila Ipê, da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas/SP, considerado como modelo de um centro de saúde atuando em sua potencialidade máxima). Este é, com certeza, um caminho possível de construir o SUS e poderá ser experimentado em determinados contextos municipais muito particulares e favoráveis, mas não exclui a necessidade de se repensarem os fluxos de usuários de forma muito mais flexível, bem como toda uma reorganização do modelo de assistência hospitalar e ambulatorial especializada, hoje hegemônico. A descentralização da política de saúde propiciada pelo SUS é favorecedora da experimentação de mais de um modelo assistencial em nível municipal. A implantação do programa de saúde da família é um bom exemplo disto.
Repensar o sistema de saúde como círculo tira o hospital do "topo", da posição de "estar em cima", como a pirâmide induz na nossa imaginação, e recoloca a relação entre os serviços de forma mais horizontal. E que não se veja aqui apenas um jogo de palavras. A lógica horizontal dos vários serviços de saúde colocados na superfície plana do círculo é mais coerente com a idéia de que todo e qualquer serviço de saúde é espaço de alta densidade tecnológica, que deve ser colocada a serviço da vida dos cidadãos. Por esta concepção, o que importa mais é a garantia de acesso ao serviço adequado, à tecnologia adequada, no momento apropriado e como responsabilidade intransferível do sistema de saúde. Trabalhando assim, o centro de nossas preocupações é o usuário e não a construção de modelos assistenciais apriorísticos, aparentemente capazes de introduzir uma racionalidade que se supõe ser a melhor para as pessoas. Ter acesso aos serviços de um centro de saúde é, em incontáveis situações, mais importante do que ter acesso a qualquer serviço oferecido pelos hospitais hoje. Nestas situações, o centro de saúde é o "topo" para um número imenso de usuários. Repensar o sistema de saúde como círculo pode ser uma ótima estratégia, afinal, para se quebrar a dura hegemonia do hospital e recolocar a rede ambulatorial de serviços em outro patamar de reconhecimento pelos usuários.
Referências
CAMPOS, G. W. S., 1994. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança. In: Inventando a Mudança na Saúde (L. C. O. Cecilio, org.), pp. 61-62, São Paulo: Hucitec.
CECILIO, L. C. O., 1994. Inventando a Mudança na Saúde. São Paulo: Hucitec.
LEVCOVITZ, E., 1996. Desafios e perspectivas para a área de Planejamento e Gestão no SUS. Oficina de Trabalho "Rearticulação da Área de P&G em Saúde". São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.
MENDES, E. M., 1996. Uma Agenda para a Saúde. São Paulo: Hucitec.
MPAS (Ministério da Previdência e Assistência Social), 1983. Reorientação da Assistência à Saúde no Âmbito da Previdência Social. Terceira edição. Brasília: MPAS.