OPINIÃO OPINION


Bertoldo Kruse Grande de Arruda 1
"Geografia da Fome": da lógica regional à universalidade  

"The Geography of Hunger": from regional logic to universality

 


1 Instituto Materno-Infantil de Pernambuco. Rua dos Coelhos 300, Recife, PE50070-550, Brasil.   Abstract The Geography of Hunger, now the target of reflective reading 50 years after it was first published, shows the author' elegant combination of argumentative skill and scientific confidence. Josué de Castro's provocative focus is both a new way of thinking and acting towards the food and nutritional situation in Brazil and a pioneering approach to the issue of collective hunger as a geographically universal phenomenon. Based on regional specificities, the book admits that partial contributions may help establish a characteristic map of the problem's universal nature, thus helping build a different image of Brazil and the world and opening up the possibility of constructing a universal plan to combat hunger and new perspectives for those seeking to correct regional differences and overcome underdevelopment. In this book, which is also a manifesto, Josué de Castro reinterprets the role of classical geography, taking into account one of the most important explanatory dimensions, i.e., political analysis, to unveil the significance and consequences of uneven spatial development. The concepts and proposals raised by The Geography of Hunger are alive and provide essential tools for critically rethinking Brazilian reality, particularly that of the Northeast. On its fiftieth anniversary, The Geography of Hunger is more current than ever because of stimulating and disturbing message.
Key words
Nutrition; Feed; Hunger; Geografia  

Resumo Geografia da Fome revela a associação harmoniosa da capacidade de argumentar com a segurança científica, um novo modo de pensar e de agir frente à realidade alimentar e nutricional e também uma abordagem pioneira no dimensionamento da fome coletiva como um fenômeno geograficamente universal. Admitiu, com base nas especificidades regionais, que as contribuições parciais poderiam compor um mapeamento caracterizador da universalidade do problema, permitindo construir uma imagem diferente do Brasil e do mundo, possibilitando a estruturação de um plano universal de combate à fome, abrindo novos caminhos para aqueles que buscam a correção de desequilíbrios regionais e a eliminação do subdesenvolvimento. Nesse livro-manifesto, Josué de Castro reinterpretou o papel da geografia clássica, incorporando uma das dimensões explicativas mais importantes, que é a da análise política, para desvendar a significação e conseqüências do desenvolvimento espacial desigual. A releitura de Geografia da Fome mostra que seus delineamentos conceituais e propositivos continuam vivos e constituem instrumentos indispensáveis para repensar criticamente a realidade brasileira e, em particular, a nordestina. Geografia da Fome, no seu cinqüentenário, torna-se um livro atual pela sua mensagem estimuladora e perturbadora.
Palavras-chave Nutrição; Alimentação; Fome; Geografia

 

 

"Mais importante do que as verdades descobertas, é o processo de descobrir verdades" (Fontenelle).

Pernambuco foi berço de figuras que estão indiscutível e indissociavelmente ligadas à história da região e do País. Duas delas, com a marca de pensadores originais e polêmicos, fazem parte da historiografia recente ­ Gilberto Freyre e Josué de Castro.

Arrisco-me a afirmar que talvez tenham sido os autores singulares de trabalhos caracterizados por uma densa e rica tessitura de informações e deduções, desenvolvendo estudos com uma visão de espaço sob diferentes ângulos, para uma compreensão da condição humana e seus valores, nos aspectos ecológicos, históricos e sociais.

Recordo o propósito explicitado por Gilberto Freyre na conferência intitulada "Menos doutrina, mais análise", proferida em outubro de 1935 na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, quando recomendou menos obediência às fórmulas e mais conhecimento das realidades. Daí a riqueza de Casa Grande e Senzala, obra que se destaca por antecipações e pelo comprometimento com transformações sociais, considerada 'uma proposição libertadora', antevista como 'um livro voltado para o futuro' (Andrade, 1995).

O mesmo se pode dizer de Josué de Castro, o "enfant terrible" da ciência da nutrição no Brasil, com a sua Geografia da Fome, livro-manifesto que aos cinqüenta anos de sua aparição está sendo alvo de uma leitura reflexiva, porque, valendo-me de uma expressão de Manuel Correia de Andrade, é "um livro que constitui um chamamento à reflexão".

Assim, é compreensível encontrar alguma afinidade ou algum parentesco intelectual entre esses dois vultos exponenciais, que percebi na concepção do social, pois ambos defenderam e usaram o critério ecológico de análise, modulado pelos referenciais bio-sócio-culturais. E Josué de Castro (1984) foi enfático, declarando que preferiu abordar o fenômeno da alimentação dentro dos princípios geográficos, procurando realizar "uma sondagem de natureza ecológica, para descobrir as causas naturais e as causas sociais, levando na devida conta os fundamentos biológicos".

Acredito que a obra desse insigne nutrólogo, associando harmoniosamente a sua capacidade de argumentar com a segurança científica, pode ser desdobrada em duas fases:

1) na fase preliminar, caracterizada pela análise regional do problema da alimentação com ênfase na elucidação dos hábitos alimentares, construiu tipologias coerentes para uma definição das áreas componentes do mosaico alimentar brasileiro, retratado na Geografia da Fome;

2) na fase complementar, orientada pelo entendimento de que esses resultados poderiam ser estendidos a outras regiões semelhantes do mundo, reconheceu que a generalização das descrições regionais prestava-se para comparações analíticas.

No primeiro caso, a essência das suas conclusões acentuava que "através de gerações sucessivas, cada povo estabelece de tal forma um compromisso orgânico com a sua nutrição que não pode rompê-lo impunemente sem que surjam graves consequências", e que "a experiência nos ensina, e a própria ciência não pode contestar, que não se devem introduzir modificações radicais nos hábitos alimentares de ninguém" (Arruda, 1977).

No segundo, com base nas especificidades regionais, admitia que as contribuições parciais poderiam compor um mapeamento caracterizador da universalidade do problema, talvez conscientizando-se da lógica aristotélica de que universal é "o uno que pode existir em muitos". Este enfoque originou a elaboração de um panorama do mundo em conjunto, com o mesmo método de estudo, consubstanciado na Geopolítica da Fome, livro que alcançou intensa repercussão internacional, no qual correlacionou "a crise biológica da fome mundial com a crise política em que se debatiam os países".

Convém frisar que recorreu sempre ao aporte que oferecem outras áreas de estudo da realidade social, demonstrando uma amplitude de horizonte intelectual que não se deixava enquadrar nos estreitos limites de uma disciplina acadêmica. E notabilizou-se porque, apreciando regionalmente o problema da fome no Brasil, o seu grande laboratório de investigações e de pesquisa social, contribuiu para dimensionar o chamado 'mapa mundial de demografia qualitativa', como um novo elemento de reflexão espacial.

O que pretendia com as suas perquirições era provocar uma mudança de atitude, era incorporar características fundamentais do humanismo nos projetos de desenvolvimento vigentes naquela época. Na condição de observador privilegiado, percebia que as medidas para acelerar o crescimento econômico dos países após a Segunda Guerra Mundial relegavam a plano secundário a questão da eqüidade e estavam promovendo uma crescente desigualdade, o aumento da pobreza e o alastramento da fome, tornando mais vulneráveis e dependentes os países do Terceiro Mundo. Esse clamor por uma mudança radical de atitudes assumiu proporções internacionais, confluindo em depoimentos de representantes de 44 nações na Conferência de Alimentação de Hot Springs (EUA), em 1943, com um posicionamento que deu origem à FAO.

Daí a sua preocupação em estudar globalmente o tema da fome e os múltiplos fatores intervenientes, numa visão panorâmica de conjunto que possibilitasse a estruturação de um plano universal de combate à fome, uma vez que esse problema atingia as regiões deprimidas de todos os continentes.

Então, partindo de uma realidade regional defendeu a concepção da fome coletiva como um fenômeno geograficamente universal, compreensão que teve o sentido de ruptura com as posturas de mascaramento das situações observadas em alguns países.

Esta é a razão de ter utilizado o método geográfico, embora, como menciona Andrade (1981), se mantivesse um pouco à margem da comunidade de geógrafos. E também porque a sua linha de pensamento foi influenciada por especialistas renovadores da ciência geográfica, adeptos da relevância do conhecimento da realidade e conscientes de que se tornava imprescindível avançar na interpretação dessa realidade. Somam-se a essas circunstâncias os seus pendores pelas ciências sociais e a sua inclinação pela política, na qual visualizava o caminho para pôr em ação as suas idéias. Distinguiu-se, na opinião de Andrade (1993), como "o geógrafo que teve uma posição diferente, pioneira, que punha o conhecimento científico a serviço da ação política e da defesa das classes menos favorecidas".

Estas considerações conduzem ao entendimento da opção pela geografia como referencial analítico-crítico, induzindo às seguintes conclusões:

a) desejava realizar uma descrição seletiva, provocadora, compondo uma imagem de mundo demarcada por um discurso científico;

b) objetivava reinterpretar o papel da geografia, revisitando criticamente a geografia clássica, pelo fato de achá-la uma ciência defasada e distante dos reais problemas da sociedade;

c) as suas preocupações humanísticas apontavam novas direções para a pesquisa em geografia, afastando-se de uma conotação de neutralidade tecnocrática para situá-la com o verdadeiro sentido de ciência social;

d) em sendo o seu trabalho o resultado de observações em escala regional e comportando "generalizações até certo ponto válidas para inúmeras outras regiões tropicais do mundo", ensejava incorporar uma das dimensões explicativas mais importantes da geografia, que é a da análise política;

e) enfim, tinha a convicção de que era a melhor diretriz para desvendar a significação e as conseqüências do desenvolvimento espacial desigual.

Todas essas explicitações são pertinentes e, a meu ver, permitiram a construção de uma perspectiva geográfica sedutora, de uma cosmovisão geográfica que acenou com a possibilidade de predizer e de antever fatos.

Por isso, desviando-se da geografia de Vidal de la Blache que, segundo Andrade (1984), estava interessado em despolitizar esta ciência, tirando-lhe toda a inspiração social, e que era mentor da escola clássica francesa, predominante entre os geógrafos pernambucanos, Josué de Castro conseguiu consolidar uma geografia mais crítica, com preocupações eminentemente políticas e histórico-sociais, pelo que o identifico com o terceiro grande corte no pensamento geográfico, de acordo com a estratificação de Claval (1996), que corresponde à transformação da geografia em uma ciência social.

Este é o cerne da mensagem estimuladora e perturbadora de "Geografia da Fome", exibindo um novo quadro contextual e conceitual, inerente à reflexão espacial e integrando natureza, cultura e condicionamentos sócio-políticos dentro de um mesmo campo de interações, que pode ser tomada como exemplo da modernidade geográfica discernível no estudo de Costa Gomes (1996).

A abordagem questionadora de Josué de Castro revela a figura de um verdadeiro cientista social, abrindo novos caminhos para aqueles que buscam a correção de desequilíbrios regionais e a eliminação do subdesenvolvimento. Trata-se de uma análise sem disfarces e chocante da realidade alimentar e nutricional, que coloca todos diante da necessidade de uma apreciação desapaixonada da situação, com vistas a um novo modo de pensar e de agir.

Infelizmente, o brasileiro mantém-se naquele constante oscilar de que se queixava Euclides da Cunha, "do desânimo maior às maiores esperanças". E agora com mais incertezas, frente aos reflexos da globalização da economia, admitindo Touraine (1996b) que "as classes populares se sentem excluídas, marginalizadas ou exploradas pelo triunfo da economia globalizada e o crescente dualismo social por ela desencadeado na maioria dos países", acrescentando ser preciso que se veja "nos novos nacionalismos uma resposta à globalização, ou seja, àquilo que no início do século chamava-se imperialismo".

Outrossim, as repercussões internas são bem mais graves, uma vez que as questões regionais adquirem maior relevo e apreensibilidade com a globalização, e já se discute que, em termos de reconcentração econômica no Sul/Sudeste, essas regiões progressivamente menos se comprometem com o Nordeste e mais se ligam ao mercado internacional. Vale registrar que Benjamin & Bacelar (1996), no intuito de uma reação à proposta neoliberal em curso, apresentaram projeto nacional alternativo para um ciclo de desenvolvimento de conteúdo distinto do atual.

Creio tal iniciativa oportuna porque, conforme observa Gomes (1996), "o país esqueceu o que seja uma política regional adequada", aduzindo que a diminuição das desigualdades brasileiras parou em 1986 e desde então começaram a aumentar os desequilíbrios entre as regiões. As disparidades inter-regionais tornam-se mais sombrias com a evidência da subdivisão do Brasil em três subpaíses, as quais refletem a persistência de um desenvolvimento humano bastante desigual, com os estados do Nordeste ocupando as últimas posições. Esse quadro se agrava pela iniqüidade de distribuição da renda, que continua a ser tão aguda quanto na década de 80, figurando o desemprego como a principal patologia social.

Destarte, o otimismo de Josué de Castro no limiar da 'era do homem social', prevista por Julian Huxley, presentemente inexiste e generalizam-se os receios diante das transformações em curso, prenunciadoras do ressurgimento da "era do homem econômico". Isto porque o atual cenário tende a uma evolução desfavorável e até perversa em virtude do fascínio e expansão do discurso da globalização, com contornos de irreversibilidade e crescentes e dramáticos efeitos, em decorrência principalmente da volatilidade do capital financeiro, da triunfal sofisticação tecnológica, da informatização progressiva, das implicações da desregulamentação oficial magnificada e de estratégias de mercado perniciosas.

Com isso, a sociedade e a cultura se sentem ameaçadas e mais sacrifícios são impostos às populações, convindo, sem dúvida, insistir na interveniência estatal, pois, adverte Touraine (1996a), "na América Latina, o papel do Estado e do sistema político parece ser cada vez mais essencial". Talvez seja animador o fato de o Consenso de Washington (ideário neoliberal) já não se mostrar refratário à adaptação do receituário norteador dos governos latino-americanos para um maior cuidado com o social.

Que lições traz a releitura da Geografia da Fome, na celebração do seu cinqüentenário?

Em princípio, os seus delineamentos conceituais e propositivos continuam vivos e constituem instrumentos indispensáveis para se pensar criticamente a realidade brasileira e, em particular, a nordestina.

Àquela época, Josué de Castro alertava sobre as mudanças que vinham ocorrendo na economia brasileira, as quais nem sempre traduziam um autêntico progresso social, capaz de melhorar as condições de vida do povo. E defendia a formulação de uma nova teoria do desenvolvimento das regiões subdesenvolvidas, todavia sem sacrifício das aspirações da população.

Graças à sua argúcia e coragem vieram à tona, com validade universal, os fatores ocultos da 'conspiração do silêncio em torno da fome', proporcionando não só os conhecimentos, como igualmente os princípios diretivos para enfrentamento do problema. Com a sua geografia, uma imagem diferente do Brasil e, por extensão, do mundo, embora de tonalidades pessimistas, foi trazida à luz. E na comemoração dos cinqüenta anos, a melhor reverência dos seguidores e admiradores da sua obra é a aplicação e replicação dos seus ensinamentos, porque o cenário permanece adverso para que a maioria da população desfrute de uma vida produtiva e útil.

Daí a pertinência da afirmação do sociólogo alemão Kurz (1996): "quem simplesmente se esquece da história em vez de superá-la criticamente, está condenado a senti-la na pele mais uma vez".

 

 

Referências

 

ANDRADE, M. C., 1981. Josué de Castro e uma geografia combatente. Diário de Pernambuco, 27 de março, Caderno Panorama Literário:B7         

ANDRADE, M. C., 1984. Poder Político e Produção do Espaço. Recife: Ed. Massangana.         

ANDRADE, M. C., 1993. Uma Geografia para o Século XXI. IV. Uma Geografia para os Anos 90. Recife: Cia. Editora de Pernambuco.         

ANDRADE, M. C., 1995. Gilberto Freyre: Pensamento e Ação. Recife: Ed. Massangana.         

ARRUDA, B. K. G., 1977. Situação e perspectivas da alimentação no mundo. 1a Jornada Afro-Brasileira de Medicina Tropical e Nutrição. Recife: Universidade Federal de Pernambuco.         

BENJAMIN, C. & BACELAR, T., 1996. Brasil: Reinventar o Futuro. Rio de Janeiro: Ed. Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro.         

CASTRO, J., 1984. Geografia da Fome. 10a ed., Rio de Janeiro: Ed. Antares.         

CLAVAL, P., 1996. I. Os dois pólos epistemológicos da modernidade. In: Geografia e Modernidade (P. C. Costa Gomes, org.), pp. 19-47, Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil S.A.         

COSTA GOMES, P. C., 1996. Geografia e Modernidade. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil S.A.         

GOMES, G. M., 1996. Mais desigualdade entre os Estados? Folha de São Paulo, Opinião Econômica, 2o Caderno, 28 de julho:2.         

KURZ, R., 1996. O curto verão de uma teoria do século 20. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 21 de abril:6         

TOURAINE, A., 1996a. O canto de sereia da globalização. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 14 de julho:6.         

TOURAINE, A., 1996b. Ambigüidades do nacionalismo. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 25 de agosto:11.         

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