Ondina Fachel Leal

Debate sobre o artigo de Everardo Duarte Nunes

Debate on the paper by Everardo Duarte Nunes

Departamento de Antropologia, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.

 

 

 

 

O trabalho de Everardo Duarte Nunes sobre a obra clássica de Durkheim, O Suicídio, marca, de forma oportuna, um século de publicação desta obra. O Suicídio, sem dúvida alguma, não apenas é seminal em termos de importância e constituição do próprio campo da sociologia como ciência, como permanece sendo referência obrigatória e extremamente atual quando consideramos os estudos etnográficos e epidemiológicos mais recentes no tema da morte voluntária. Além disto, faz-se presente como parte de uma discussão, igualmente recente, que apresenta uma reflexão mais teórica sobre uma antropologia do sofrimento. Citemos aqui como exemplares de diferentes abordagens, três obras-chave em três diferentes países: Da Vida Nervosa: Nas Classes Trabalhadoras Urbanas (Duarte, 1986); The Illness Narratives, Suffering, Healing and the Human Condition (Kleinman, 1988) e La Souffrance à Distance: Morales Humanitaire, Médias et Politique (Boltanski, 1993). Por mais radicais que sejam as diferenças de abordagem entre estes três trabalhos, eles não só têm em comum o objeto ­ o sofrimento, a perturbação ­, mas também trata-se de perceber neste objeto manifesto no nível da corporalidade individual o seu conteúdo eminentemente social. Neste ponto, sem dúvida alguma, estas obras são corolárias do trabalho de Durkheim. Outro aspecto, que não poderá ser desenvolvido nas limitações desta resenha, é o quanto, nos três trabalhos referidos, assim como no trabalho de Durkheim, está presente a tensão entre a categoria moral e a social, como forma, categorização e/ou legitimação do sofrimento.

Nunes, resenhando Durkheim e cotejando outras resenhas, sobretudo em língua inglesa, do trabalho de Durkheim (Douglas, Lukes e Giddens), mostra como o estatuto da noção de moral em Durkheim não parece muito claro. Uma suposta distinção entre a noção de moral no século XVIII para um conteúdo social no século XIX como explicação para o fenômeno do suicídio esclarece pouco, uma vez que a transformação não se dá no nível da teoria do suicídio, mas no uso da noção de moral por Durkheim. Ou seja, a noção passa de mores (costumes) para uma noção mais sociológica de instituição social, de regras de condutas coletivamente estabelecidas e compartilhadas, em suma, de contrato, para a qualidade mesmo do que se definia como social, e, portanto, legítimo à investigação sociológica. Mas é mister observar que, quando citando Douglas, Nunes indica que [anterior a Durkheim] "assumia-se que o suicídio era um problema moral". Douglas possivelmente está dando uma conotação a moral exatamente porque a quer diferenciar do social, que não caberia. Para Durkheim, esta descontinuidade entre moral-mores e moral-social inexiste. Basta dizer que o caráter 'imoral' do suicídio indicado por Durkheim repousa no seu caráter "anômico", na falácia, no nível do indivíduo, deste entender, dominar ou integrar-se às regras coletivas, de sentir-se ou não parte de um grupo. Longe está de uma noção, cara à ideologia individualista, de discernimento e livre arbítrio a respeito do certo e do errado.

Ou seja, a questão básica de investigação permanece: o indivíduo tira sua própria vida porque é incapaz de reconhecer o que é certo ou errado ou, na proposta durkheimiana, porque internaliza sentimentos intensos de não-pertencimento, de incompetência para atingir metas socialmente instituídas que o levariam ao sofrimento e à auto-aniquilação?

Ainda a este respeito, quando Nunes interpreta Durkheim em sua análise a respeito da correlação entre protestantismo e taxa mais alta de suicídio, é fundamental ler com atenção: não se trata apenas de o protestantismo ser uma "religião menos fortemente integrada", e, sim, porque na ética protestante há um consenso quanto a "espírito de livre exame [arbítrio]", "se as consciências individuais afirmam de maneira constante a sua autonomia", diz-nos Durkheim, indicando que esta autonomia individual seria socialmente legítima ou moralmente sancionada e resultante igualmente de coerção social que funcionaria, neste caso, no sentido de valorizar menor coesão coletiva e maior autonomia individual, não tornando este fato menos social.

Mas talvez o mais importante e mesmo genial no trabalho de Durkheim seja vê-lo debruçar-se sobre os dados estatísticos e, a partir disto, observando tendências e correlações, levantar questões, desconstruir respostas e chegar a explicações sociológicas. Seguir o seu exemplo, não necessariamente com o evento suicídio, seria estimulante. Velhas questões permanecem, e novas se colocam quando observamos hoje um mapa epidemiológico do suicídio. Os dados nos são apresentados em estatísticas nacionais, agrupados por estado-nação, mas não necessariamente as fronteiras da nação agrupariam as melhores explicações para entender este fato social. Para o Brasil, apresenta-se como média anual uma taxa de 3,5 (por cem mil habitantes), embora o Rio Grande do Sul apresente uma taxa constante que é cerca de três vezes esta média e, em termos de suicídio, acompanha as taxas do Uruguai e da Argentina. Dentro destas regiões, para ficarmos apenas no que nos está muito próximo, estas taxas estão distribuídas de forma desigual, apresentando focos endêmicos em municipalidades rurais. O suicídio nesta região é eminentemente masculino, numa razão de distribuição por sexo (5/1) das mais significativas do mundo. Outra problemática a ser mais estudada são os meios buscados para a realização do suicídio, no caso do Sul do Brasil e do Sul da América Latina. O enforcamento apresenta toda uma peculiaridade cultural a ser ainda mais pensada. Mais recentemente, as taxas de suicídio recordes estão nos antigos países socialistas, suplantando inclusive as históricas taxas dos países nórdicos. Vale ainda mencionar a grande problemática atual da China com um suicídio rural, feminino, que, no grupo etário de 15 a 25 anos, tem uma taxa de quase cinqüenta por cem mil habitantes. A China é o único país onde o suicídio é majoritariamente feminino.

Numericamente falando, o problema que Durkheim estava analisando com dados da Europa do século passado era bastante menor do que o problema dimensionado pelas taxas de suicídio hoje. Ele estava lidando com taxas médias em torno de dez por cem mil habitantes, similares às do Rio Grande do Sul, pelo menos no último meio século. Quando trabalhamos com localidades específicas, tais como Alegrete ou Venâncio Aires, no Rio Grande do Sul, ou com populações indígenas específicas também no Sul do Brasil, o problema toma, sociologicamente e em termos de saúde pública, dimensões assustadoras ­ mesmo que perdendo a relevância estatística na comparação de taxas, já que se está trabalhando com populações relativamente pequenas.

O suicídio, como fenômeno social na sua configuração clássica apresentada por Durkheim que nos leva ao conceito de anomia, é eminentemente urbano, masculino e ocorre em regiões economicamente mais ricas. Resta-nos questionar se, com a intensa globalização, o processo de anomia não é vivenciado antecipadamente, isto é, se o sentido de colapso ou não-conformidade com normas e a consciência de impossibilidades de adaptação e inexistência de meios para tal, mediante um processo de informações massificadas, atingem as populações rurais, potencialmente migrantes, boicotando o projeto mesmo de migração, antecipando o estado anômico? Esta é sem dúvida uma hipótese plausível: a de que, com a intensificação da modernização, deslocou-se o espaço social da anomia e, conseqüentemente, do suicídio. Ou seja, ainda que dados atuais possam apresentar realidades distintas das que permitiram a Durkheim elaborar uma teoria sobre o suicídio, é sua teoria que nos permite discernir estas novas realidades.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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