NOTA RESEARCH NOTE |
Isabela Heineck 1 | Análise da publicidade de medicamentos veiculada em emissoras de rádio do Rio Grande do Sul, Brasil Analysis of non-prescription drug radio advertising in Rio Grande do Sul State, Brazil
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1 Faculdade de Farmácia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Av. Ipiranga 2.752, Porto Alegre, RS 90610-000, Brasil. | Abstract Drug advertisements for non-prescription (over-the-counter) drugs on the main radio stations in the State of Rio Grande do Sul, Brazil, were analyzed as to the information provided about generic names, pharmaceutical company, composition, and dosage. From August 1995 to January 1996, 250 advertisements for 28 products were recorded. More than 80% of these advertisements provided no information on these topics and thus failed to comply with Brazilian legislation. On the contrary, a large number of advertisements (39%) emphasize absence of risks, with claims such as "no contraindications", inducing consumers to use such drugs indiscriminately. The study showed that drugs were advertised like any other merchandise, with no concern over fundamental information such as product identification, precautions, and possible side effects. Key words Drug Publicity; Legislation, Drug; Drug Utilization Resumo As propagandas de medicamentos veiculadas nas principais rádios do Rio Grande do Sul, Brasil, foram analisadas no período de agosto de 1995 a janeiro de 1996. Durante o período de observação foram documentadas 250 peças publicitárias referentes a 28 produtos. A maioria destas propagandas (>80%) não apresenta declarações quanto ao nome genérico, à composição, à posologia e ao laboratório fabricante do produto, infringindo, dessa forma, a legislação vigente no país. Além disso, um número significativo das peças publicitárias (39%) enfatizam a ausência de quaisquer riscos, mediante declarações como "Não tem contra-indicações", caracterizando a indução ao uso indiscriminado. A análise mostra que os medicamentos são promovidos como produtos quaisquer, omitindo-se informações fundamentais a respeito de cuidados, reações adversas e contra-indicações. |
"Estou confuso e difuso, e não sei se jogo pela janela os remédios que médicos, balconistas de farmácia e amigos dedicados me receitam, ou se aumento o sortimento deles com aquisição de outras fórmulas que forem aparecendo, enquanto o Ministério da Saúde não as desaconselhar. E não sei, já agora, se se deve proibir os remédios ou proibir o homem. Este planeta está meio inviável." (ANDRADE, Carlos Drummond de. O Homem e o Remédio: Qual o problema? Jornal do Brasil, 26/07/80.)
Introdução
Carlos Drummond de Andrade, neste pequeno parágrafo, mostra de forma sucinta a situação de leigos frente ao mercado de medicamentos no Brasil. Em primeiro lugar, retrata uma atitude que já faz parte de nossa cultura, o receitar medicamentos. Atitude que também está expressa no dito popular "De cientista, médico e louco todo mundo tem um pouco", a qual pode trazer conseqüências irreversíveis para a saúde, como também perdas econômicas. Ainda na primeira frase, o poeta parece ironizar o exagerado número de medicamentos que são lançados constantemente no mercado com a aprovação do órgão regulador. De fato, não se conhece exatamente o número de medicamentos existentes no mercado brasileiro, mas existem estimativas da ordem de vinte mil especialidades (Rozenfeld, 1989). Esse grande número confunde não só leigos, como profissionais de saúde, que não são capazes de conhecer suficientemente todos os produtos para promover uma utilização segura dos mesmos. O texto termina insinuando que talvez alguns destes produtos não sejam de todo maus, mas sim o uso que o homem faz dos mesmos. Da mesma forma, a preocupação central deste estudo, a propaganda de medicamentos, está relacionada com este questionamento.
A propaganda de medicamentos é um entre os vários problemas relacionados ao mercado farmacêutico. Vem de longa data a discussão sobre o assunto, e profissionais da área da saúde, consumidores e autoridades regulamentadoras de medicamentos defendem uma utilização de medicamentos de acordo com as necessidades da população e não determinada pela interferência da promoção de medicamentos, realizada pelos seus fabricantes (Herxheimer & Collier, 1990; Castelo et al., 1991; Hennke, 1994; Chetley, 1995).
O presente trabalho constitui parte do programa de análise de propaganda de medicamentos criado em 1995 pela Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, que tem por objetivo analisar e tornar pública a qualidade das propagandas sobre medicamentos, veiculadas nos vários canais de comunicação. Nesse momento são apresentados os resultados do monitoramento de emissoras de rádio no Rio Grande do Sul, caracterizando o público-alvo, analisando as indicações, bem como os argumentos das propagandas, a conformidade com a legislação e a possibilidade de intervenção.
Descrição da amostra e metodologia
Durante o segundo semestre de 1995, foi observada e documentada a publicidade de medicamentos em rádio, sendo observadas as principais emissoras do Estado do Rio Grande do Sul. Tendo em vista que nas rádios FM a propaganda de medicamentos foi muito pouco freqüente, optou-se por não monitorá-las. Ao todo foram monitoradas três emissoras de rádio AM conforme segue. A programação da Rádio Farroupilha AM 680 Khz foi gravada durante o período de 16 de agosto a 16 de novembro de 1995. Os horários mais freqüentemente monitorados foram das 7h às 8h e das 12h às 13h. O horário compreendido entre 20h e 21h foi monitorado ao longo da segunda quinzena de agosto e por todo o mês de setembro, não mais tendo sido acompanhado após a constatação da baixa freqüência de publicidade. A programação da Rádio Gaúcha AM 600 Khz foi, da mesma forma, gravada de 27 de novembro a 07 de dezembro de 1995 e nos dias 06 e 07 de janeiro de 1996. Os horários observados foram variados, incluindo os três turnos. Foi observada ainda a Rádio Guaíba AM, constatando-se que medicamentos não foram anunciados nesta emissora no período em questão.
Para a análise, todas as propagandas foram contadas como uma peça publicitária, independentemente se igual ou diferente. Foram coletados dados referentes à propaganda, ao produto e ao laboratório fabricante. As informações sobre composição e laboratório fabricante foram extraídas da própria propaganda, da bula ou da embalagem do medicamento. Dos 28 produtos que fazem parte da amostra, anunciados em 250 peças publicitárias, três Castanha Atalaia®, OH3®, Tratamento Capilar Duplo da Natuflora® não foram encontrados nas farmácias visitadas, ficando, assim, suas fichas incompletas nos itens que dizem respeito ao produto e ao laboratório fabricante. Tais produtos não foram excluídos da amostra, já que o objetivo principal era a análise da propaganda destes.
Para a classificação dos medicamentos segundo a classe e subclasse terapêutica, foi utilizada a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename). A classificação utilizada foi ampliada, criando-se subclasses terapêuticas para enquadrar medicamentos não contemplados nessa classificação. A presença na Rename (Ceme, 1989), bem como na lista de medicamentos essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS, 1995), foi utilizada como indicador da importância dos produtos que fazem parte da amostra.
Resultados
Dados quantitativos
Entre as propagandas de medicamentos apresentadas nas emissoras de rádio, monitoradas durante o período de observação, foram identificados 15 grandes grupos de indicações terapêuticas. Os produtos e o número de peças publicitárias por indicação terapêutica são apresentados na Tabela 1. O total de produtos anunciados na Rádio Farroupilha AM foi de 28, enquanto na rádio Gaúcha AM foram anunciados apenas dois, veiculados também na outra emissora. Dezoito laboratórios foram identificados como os responsáveis pelos anúncios referentes a 25 produtos, e para três destes não foi possível a identificação de fabricante. O número total de peças publicitárias documentadas para esse conjunto de 28 produtos foi de 250. Destas, 143 (57%) foram anunciadas no turno da manhã, 97 (39%) no turno da tarde e apenas dez (4%) no turno da noite. Pôde-se constatar que a freqüência de propaganda de medicamento foi menor durante o final de semana, não se observando diferenciação significativa nos dias da semana.
A Tabela 2 mostra os resultados quanto ao número dos produtos em relação à classe e à subclasse terapêutica.
Apenas um dos produtos anunciados pode ser classificado como monofármaco, ou seja, apresenta uma única substância ativa. Utilizando a lista de medicamentos essenciais da OMS e a Rename (OMS, 1995; Ceme, 1989) como referência, constata-se que somente esse medicamento, cuja substância ativa é o mebendazol, pode ser considerado medicamento essencial.
Conformidade com a legislação
Verificou-se que a maioria das peças publicitárias não apresenta dados quanto ao nome genérico (96%), à composição (89%), à posologia (89%) e ao laboratório fabricante (82%). Nenhuma das 250 propagandas apresenta declarações quanto a contra-indicações, cuidados e advertências, não estando, dessa forma, em conformidade com a legislação (Decreto 79.094 de 05/01/77 e Lei 6.360 de 23/09/76). Além disso, em 97 peças publicitárias (39%), consta a declaração explícita "Sem contra-indicação" ou "Não tem contra-indicação" (Tabela 1).
Público-alvo e argumentos das propagandas
Quanto ao público-alvo, as propagandas eram dirigidas na sua maioria à população em geral (16 produtos); em segundo lugar, às mulheres (seis produtos); outras quatro foram dirigidas às mães em particular. As propagandas dirigidas aos homens foram em menor número, apenas dois produtos. Os argumentos utilizados para atingir o público-alvo são apresentados na Tabela 1.
Discussão
Os produtos anunciados pertencem ao mercado de medicamento popular, que é constituído no Brasil, segundo análise recente (Heineck, 1996), por associações medicamentosas sem valor terapêutico comprovado. As associações a doses fixas são aceitáveis apenas quando apresentam mais vantagens que os monofármacos, sob o ponto de vista da eficácia, segurança ou aderência ao tratamento pelo paciente; de outra forma, acabam aumentando os riscos de reações indesejáveis e geralmente são de maior custo (Heineck, 1996). Em algumas propagandas, o fato de o produto constituir uma associação é explorado como ponto positivo, pois tentam passar a idéia de que quanto mais substâncias o medicamento apresentar, mais completa será sua ação.
A divulgação sem critério de alguns produtos anunciados pode ter conseqüências bastante graves; por exemplo, os produtos Calmador® e Sonrisal®, cuja substância ativa é o ácido acetilsalicílico, podem provocar hemorragias digestivas em pessoas com úlcera, ou malformações congênitas em filhos de gestantes que fizerem uso destes produtos. É de fundamental importância a presença no anúncio de alertas sobre reações adversas e contra-indicações, para que o produto seja utilizado com segurança pela população.
Alguns produtos são anunciados como sendo eficazes em indicações bastante diversas, como, por exemplo, o Alhocard®, indicado como revigorante, bactericida, germicida, para doenças pulmonares, problemas cardíacos e circulatórios, verminoses, diabetes e prevenção do câncer. Resta saber se, no momento do registro destes produtos, todas estas indicações foram declaradas e devidamente comprovadas pelo fabricante ao órgão de registro junto ao Ministério da Saúde.
Como foi possível observar (Tabela 1), as propagandas tentam seduzir o consumidor psicologicamente, tocando nos pontos mais vulneráveis e de maior importância na sua vida, levando em consideração o papel que cada pessoa desempenha, dentro de um contexto de sociedade proposto ou aceito. A propaganda de produtos ligados à saúde deveria ater-se a informações racionais e corretas, no entanto o que se observa no presente estudo é a predominância de apelos emocionais; além disso, a maioria das peças publicitárias não apenas omitem informações fundamentais a respeito de cuidados, reações adversas e contra-indicações, como freqüentemente enfatizam a ausência de riscos, induzindo ao uso indiscriminado de medicamentos.
As características constatadas nesta amostra já foram documentadas anteriormente, em outra análise (Temporão, 1986), indicando a não-observância sistemática dos critérios éticos propostos para a propaganda de medicamentos, sejam aqueles estabelecidos pela legislação, sejam aqueles recomendados pela OMS, ou mesmo aqueles propostos pelas indústrias através de auto-regulamentação. Do ponto de vista de medidas legais, a legislação brasileira (Lei 6.360, de 1976 e Decreto 79.094, de 1977), que previa inclusive o regime de autorização prévia para os casos de infração às normas estabelecidas, não se mostrou efetiva. Mais recentemente, o Código de Defesa do Consumidor criou possibilidades novas de intervenção, ao estabelecer penalizações por "Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva" (Título III Das Infrações Penais Art. 67) e por "Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança" (Título III Das Infrações Penais Art. 68). De forma semelhante, a legislação recente sobre publicidade de produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas (Lei 9.294, de 15.07.1996 e Decreto 2.018, de 01.10.96) estabelece a responsabilidade de quem responde não apenas pelo produto, mas também pela peça publicitária e pelo veículo de comunicação. Espera-se que sejam estabelecidas instâncias de acompanhamento da propaganda, a fim de prevenir os potenciais danos provocados por ela. Caso contrário, a situação permanecerá sem alterações, como vem ocorrendo historicamente.
Cabe destacar, além das medidas legais, a importância de medidas educacionais a fim de tornar a utilização de medicamentos mais racional, já que se observa um verdadeiro bombardeio publicitário apresentando soluções mágicas, na forma de medicamentos, para problemas de ordem alimentar e/ou psicossocial, característicos da sociedade atual, como é o caso das propagandas de produtos para emagrecer, para problemas estomacais ou para esgotamento físico e mental.
Referências
CASTELO, A.; COLOMBO, A. L. & HOLBROOK, A. M., 1991. Production and marketing of drugs in Brazil. Journal of Clinical Epidemiology, 44(suppl. II):21S-28S.
CHETLEY, A., 1995. Auto-regulamentação ou auto-engano. Boletim Sobravime, (março-maio):3-9.
HEINECK, I., 1996. Estudio Cualitativo y Cuantitativo de los Medicamentos del Mercado Popular Más Vendidos en Brasil en el Año del 1993. Dissertação de Mestrado, Barcelona: Departamento de Farmacología, Universidad Autónoma de Barcelona.
HENNKE, G., 1994. Dependencia por Receta Médica. Bielefeld: BUKO Pharma-Kampagne.
HERXHEIMER, A. & COLLIER, J., 1990. Promotion by the British pharmaceutical industry, 1983-8: a critical analysis of self regulation. British Medical Journal, 300:307-311.
CEME (Central de Medicamentos), 1989. Memento Terapêutico CEME 89/90. 2a ed., Brasília: Ministério da Saúde.
OMS (Organização Mundial da Saúde), 1995. The Use of Essencial Drugs. Genebra: WHO (Technical Report Series, 850).
ROZENFELD, S., 1989. Uso de medicamentos no Brasil. In: Epidemiologia do Medicamento, Princípios Gerais (J. R. Laporte & G. Tognoni, orgs.), 1a ed., pp. 22, Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco.
TEMPORÃO, J. G., 1986. A Propaganda de Medicamentos e o Mito da Saúde. Rio de Janeiro: Edições Graal.