RESENHAS REVIEWS
FOME: UMA (RE)LEITURA DE JOSUÉ DE CASTRO. Rosana Magalhães. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1997. 92 pp.
Em 1929, após concluir o curso de Medicina da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), o jovem pernambucano Josué de Castro retornou à cidade do Recife para dar início a uma consagrada trajetória político-intelectual, dedicada, particularmente, à complexa e paradoxal problemática da gênese e reprodução da fome e suas formas de enfrentamento.
Entre 1930 a 1935, dividiu-se entre o exercício da Medicina (Endocrinologia e doenças da nutrição), a docência de Fisiologia na Faculdade de Medicina de Recife e a publicação dos seus primeiros escritos. Assim, em 1932, sob a influência do médico-nutrólogo argentino Pedro Escudero, considerado o pai-fundador do campo da Nutrição na América Latina, realizou a pesquisa: As condições de vida das classes operárias no Recife, uma investigação baseada na metodologia de orçamento e padrão de consumo alimentar entre quinhentas famílias de bairros operários desta cidade. Os resultados deste estudo, considerado o primeiro inquérito dietético-nutricional do País, tiveram ampla divulgação nacional, provocando a realização de estudos similares, inclusive daquele que serviu de base para a regulamentação da lei do salário mínimo e da formulação da chamada "ração essencial mínima", estabelecida por intermédio do Decreto-Lei 399, de 30 de abril de 1938.
Em 1935, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde sua atuação localizou-se ora nos espaços acadêmico-científicos, ora nos da tecnoburocracia estatal e/ou no âmbito de distintas organizações e entidades civis, destacando-se: a idealização do Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps) em 1940; a criação e direção do Serviço Técnico de Alimentação (Stan) no período de 1942 a 1944; a criação da Comissão Nacional de Alimentação (CNA), em 1945; a criação e direção do Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil no período de 1946 a 1954; a criação e direção do periódico científico Arquivos Brasileiros de Nutrição no período de 1944 a 1954; a fundação da Sociedade Brasileira de Nutrição (SBN) em 1942; a presidência do conselho da Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (Fao) entre 1952 a 1955; a fundação, em 1957, da Associação Internacional de Luta contra a Fome (Ascofam); a presidência do I Congresso Camponês de Pernambuco, realizado em setembro de 1955, no Recife, onde foi criada a estrutura orgânica e eleita a primeira diretoria do movimento das Ligas Camponesas; o cargo de deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) pelo Estado de Pernambuco, no período de 1955 a 1963, e o cargo de embaixador brasileiro junto às Nações Unidas, no período de 1963 a março de 1964. Em abril de 1964 teve seus direitos políticos cassados. Exilou-se em Paris, onde morreu em 1973, aos 65 anos de idade.
Em sua trajetória de vida, dos mangues escuros do Capibaribe às margens luminosas do Sena, Josué de Castro nos ensina que não existem fronteiras para a circulação dos homens e de suas idéias, que o mundo é apenas uma 'aldeia global'. A sua vastíssima produção intelectual, construída ao longo de 1930-1973, de abrangência internacional, é composta por mais de duzentos títulos, entre estes, destacamos a edição dos livros: O Problema da Alimentação no Brasil (1934); Alimentação e Raça (1936); Documentário do Nordeste (1937); Alimentação Brasileira à Luz da Geografia Humana (1937); Fisiologia dos Tabus (1938); Geografia Humana (1939); Geografia da Fome (1946); Geopolítica da Fome (1951); Ensaios de Biologia Social (1957); O Livro Negro da Fome (1957); Sete Palmos de Terra e um Caixão (1965) e Homens e Caranguejos (1967).
Como interpretar a fome no pensamento de Josué de Castro? Como proceder à periodização e recorte da sua obra? Foram estas as principais questões explícitas do dilema metodológico que a nutricionista Rosana Magalhães enfrentou no delineamento da investigação que lhe valeu o título de mestre em Saúde Pública pela Ensp/Fiocruz. Seguindo as trilhas deixadas por interpretações anteriores, a autora de Fome: Uma Re(leitura) de Josué de Castro avança por um novo caminho de análise, focalizando seu olhar contemporâneo sobre os textos que marcaram o processo de construção-reconstrução do conceito de fome na obra deste autor. Para garantir inteligibilidade a sua reflexão, o que também lhe confere originalidade, ela estabelece dois recortes na análise da trajetória intelectual do autor, o primeiro correspondente aos anos 30/40 e o segundo ao final dos anos 40 até início dos anos 70, tendo como divisor de águas (melhor dizendo, de idéias) o clássico Geografia da Fome, publicado em 1946. Ao longo deste percurso, a autora quebra a obra de Josué de Castro em pedaços e a reconstrói a sua maneira, reforçando a idéia das "várias alternativas possíveis" ou de que há mais de uma forma de se interpretar uma obra.
Na análise dos primeiros escritos de Josué de Castro (anos 30/40), a autora destaca a formulação da tese do "mal de fome e não de raça" forma de interlocução do autor com os cientistas de outros campos disciplinares que, à época, procuravam desfocar da questão genética para a questão cultural o preconceito de 'meio' e de 'raça' que se tinha sobre o povo brasileiro. Assim, para o autor, por meio do valor eugênico da alimentação racional seria possível construir o homem brasileiro e forjar a nação, tese esta que, a meu ver, tornou-se a principal base para a legitimidade do processo de constituição do campo da Nutrição no Brasil, seja enquanto disciplina, como política social e/ou enquanto profissão.
Na análise dos escritos da segunda fase (anos 50/60), a autora identifica no diálogo entre Josué de Castro e os teóricos do subdesenvolvimento-desenvolvimento a tese da "fome como expressão do subdesenvolvimento" ou da "fome como obstáculo ao desenvolvimento nacional". Ao longo de sua re(leitura), a autora vai mapeando as influências teóricas que foram marcando os escritos de Josué de Castro em sua trajetória político-intelectual, particularmente o positivismo de Comte, a teoria do círculo vicioso da pobreza, a nutrologia de Pedro Escudero, a Geografia Lablachiana, as teorias do subdesenvolvimento, a ideologia do nacional-desenvolvimentismo e alguns conceitos do marxismo e do chamado catolicismo social. Diante deste quadro de pluralidade de orientações teóricas, a autora também alerta para a dialética de continuidades e de rupturas que foi delineando o pensamento do autor em sua trajetória de vida.
Por outro lado, observamos que o livro quase que atropela certas questões contraditórias inerentes à vida do autor enquanto homem público; à distância entre a obra intelectual e a sua prática político-profissional e, portanto, ao processo de construção/desconstrução do mito Josué de Castro. Por exemplo, podemos apontar a questão da organicidade intelectual do autor com a ditadura do Estado Novo e com o populismo do segundo Governo Vargas (dois momentos de 'auge' de sua trajetória). Outro exemplo é a questão do "deslocamento para a esquerda" ou da "tonalidade vermelha" que a prática política do autor assume ao final dos anos 50 (sua aproximação com o movimento camponês e com as propostas nacional-reformistas), o que gerou a cassação dos seus direitos políticos e exílio do País. Estas são algumas das questões 'obscuras' da trajetória do autor que o texto de Rosana Magalhães apenas tangencia e que, a meu ver, possibilitam outras abordagens da obra.
Nesta re(leitura) bastante sucinta e não menos profunda que a autora faz da obra de Josué de Castro, identificamos, ainda, o seu esforço em procurar fugir do tratamento frio que quase sempre a academia reserva aos temas polêmicos como fome, miséria e subdesenvolvimento. Apesar da linguagem clara e direta, o texto acaba tropeçando em outras das armadilhas acadêmicas. Neste sentido, apontamos a falta de uma revisão mais apurada em algumas passagens, particularmente, em relação às referências bibliográficas.
Enfim, nesta (re)leitura apaixonada (e apaixonante), criador e criaturas se (re)encontram neste final do século, quando foi constituído o campo da Nutrição no Brasil, ou, como diz Rosana Magalhães, quando foi instituído o saber sobre fome no País. E em vez de geografia da fome, Josué de Castro falaria de globalização da fome, este processo de uniformização planetária dos hábitos e práticas alimentares, em que a produção e a circulação da mercadoria alimento permanece atrelada às necessidades de acumulação do capital e não às necessidades nutricionais humanas.
Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos
Departamento de Nutrição, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina
A MIRAGEM DA PÓS-MODERNIDADE: DEMOCRACIA E POLÍTICA SOCIAIS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO. Organizadores: Sílvia Gerschman & Maria Lúcia Werneck Vianna. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1997. 226 pp.
A Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz, realizou no mês de julho de 1995 o seminário Globalização, Democracia e Reforma do Estado: Dilemas e Perspectivas das Políticas Públicas de Saúde, objetivando aprofundar discussões e análises do processo de globalização e produzir reflexões quanto às conseqüências das transformações nas políticas públicas sociais, tanto no âmbito internacional, como no nacional. Esse evento teve a participação ativa de professores e pesquisadores de diferentes universidades e instituições de pesquisa. O produto desse seminário se transformou no livro A Miragem da Pós-Modernidade, objeto dessa resenha, coordenado e organizado por Sílvia Gerschman & Maria Lúcia Werneck Vianna. O livro compõe-se de apresentação, introdução e um conjunto de 12 textos apresentados, discutidos e analisados no decorrer do evento. Enquanto a apresentação expõe o objetivo da publicação, a introdução é um texto amplo que contextualiza e tematiza as profundas mudanças em curso no planeta terra, resgatando e buscando reconceituações de democracia, em face do processo de globalização, costuradas em reflexões sobre incertezas, contingências e consenso. O conteúdo é ainda enriquecido pelas discussões engendradas na "natureza desse novo sistema internacional ...", resgatando análises sobre a situação da Europa Oriental, assim como a dimensão política da atuação das organizações não governamentais. É ainda sinalizado, como relevante, o papel "da revolução tecnológica dos meios de comunicação e, principalmente a informática", considerando os cenários da centralização e massificação das redes interativas (infovias) e televisivas.
Os 12 artigos que seguem depois da introdução estão agregados em três partes:
Parte I Globalização, democracia e questão social
Compõem a primeira parte quatro artigos cujos conteúdos procuramos sintetizar abaixo.
1) Perspectivas da Democracia no Mundo Contemporâneo: Mais Liberal, Pré-Liberal ou Pós-Liberal? Philippe Schmitter (Departamento de Ciências Políticas/Universidade de Stanford Califórnia, USA).
Neste artigo, Schmitter centraliza o debate na discussão de diferentes concepções e práticas de democracia no mundo. O autor sinaliza que nas próximas décadas "a democracia terá que enfrentar desafios imprecedentes ..." e que seu futuro "será incrivelmente tumultuado, incerto e muito acidentado". Explica também que a maioria desses desafios virá das democracias liberais consolidadas (DLCs) e não das democracias recentes (NDRs), ressaltando que estas "enfrentarão uma boa parcela de desencanto ..." diante das realizações não correspondidas. Conclui que todas "as alternativas à democracia liberal são atormentadas por um sério problema de agência (...) não importando o quão intelectualmente atraentes sejam ...". O autor destaca ainda que "a transição nas DLCs é muito mais difícil do que nas NDR's", pois existem inimigos não declarados "que atualmente sabotam o desempenho e eventualmente a viabilidade", e ainda imputa aos extremistas de direita e de esquerda os imperramentos das tarefas da reformas necessárias no mundo contemporâneo.
2) O Nacional e o Social em Tempos Globais. Fábio Wanderley Reis (Departamento de Ciências Políticas/Universidade Federal de Minas Gerais).
Sucintamente, Reis descreve seu artigo sob uma perspectiva pessimista e fatalista, destacando a pressão para a redução do Estado Nacional, norteada pela ideologia neoliberal, por meio de forças tendenciosas do processo de globalização do mundo. O autor põe em pauta a questão da governabilidade e ingovernabilidade, estado e projeto nacional, nacionalismo e antinacionalismo, resgatando criticamente o ideário do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). Articulando a questão de desenvolvimento nacional e projeto social, pontua também a problemática da tensão "entre eficiência e democracia", quando esta se torna a força maior que dá sentido ao projeto nacional como sinônimo de projeto social.
3) Democracia, Políticas Sociais e Globalização: Relações em Revisão. Sílvia Gerschman (Departamento de Administração e Planejamento em Saúde/Escola Nacional de Saúde Pública Fiocruz-RJ).
Gerschman retoma a discussão sobre democracia e globalização, inserindo-a no contexto de países da Europa Ocidental conduzidos pela social democracia, no Japão, nos Estados Unidos, assim como na América Latina, principalmente no Brasil, na Argentina e no México. As suas análises mostram que "para tentar repensar e recriar a democracia" é "necessário despojar-nos da ideologia global" e ressaltam que já vivemos em um mundo globalizado que retira a soberania e a identidade dos Estados, reforçando a exclusão social e dicotomizando-a entre duas categorias: aqueles que são consumidores e os que não são consumidores. A autora destaca também que os desafios à democracia diante do processo de globalização são de grande complexidade, tanto para os países de democracia recente, como para aqueles de longa existência, os quais podem se transformar em democracias formais de caráter meramente eletivo. Por outro lado, destaca ainda o fato de que os movimentos sociais, no seu conjunto, não têm cooperado de forma significativa e impactante no tensionamento das crises em curso.
4) Reflexões sobre as Dimensões da Globalização, as Novas Forças Sócio-Políticas Transnacionais e a Redefinição do Horizonte da Democracia. Eduardo Viola (Departamento de Relações Internacionais/Universidade de Brasília).
O artigo de Viola é complexo, porém bastante provocativo e estimulante ao debate, pela abordagem analítica multifacetada e multidimensional no processo de globalização. Ele descreve e analisa as principais características e dimensões deste processo, em relação à natureza da realidade social, das forças sociopolíticas transnacionais, e a erosão da democracia como ideário do sistema nacional em face das perspectivas de governabilidade global. Conclui o trabalho elaborando quatro cenários alternativos dessa governabilidade com probabilidades de médio e longo prazos.
Parte II Ajuste e reforma do Estado
Os artigos que compõem a segunda parte e que tratam de reformas e ajustamentos do Estado têm como objetivo maior a questão de políticas públicas, sendo novamente a democracia o fio condutor das discussões.
5) Ajuste Estrutural, Governabilidade e Democracia. Maria Alícia Dominguez Ugá (Ensp/Fiocruz).
A autora inicia seu texto elaborando fundamentos teóricos sobre políticas de ajuste em face das reformas, alicerçados em teses que dão base ao pensamento neoliberal, provenientes das escolas da Áustria, de Chicago, e da Public Choice. Ao analisar as políticas do ajuste neoliberal, retoma os anos 80 como ponto de partida da "disseminação do paradigma neoliberal ...", pontuando as rupturas ocorridas em relação ao modo de produção, organização e divisão do trabalho, cujos resultados refletem na redistribuição de renda e do emprego e nas relações de classe. Nesse plano, analisa criticamente o modelo do Bem-Estar Social, diante do saneamento de finanças públicas, e as contradições e descompassos. A questão da governabilidade vista no contexto de ajuste estrutural do neoliberalismo é analisada pela autora tomando como base de apoio principalmente o artigo de Acuña & Smith (Latin American Political Economy in the Age of Neoliberal Reform: Theoretical and Comparative Perpectives for the 1990's. New Bruswick: Transation Publishers, 1994).
6) Notas sobre Estado, Políticas Públicas e Saúde. Amélia Cohn (Centro de Estudos Contemporâneos e Departamento de Medicina Preventiva/Universidade de São Paulo).
Cohn, ao puxar o debate sobre o Estado e finanças públicas, procura dar "uma dimensão mais imediata" no que "diz respeito à pluralidade e abrangência das ações do Estado e padrões de bem-estar social" e à articulação por ele geridas na atual conjuntura histórica. Com esse objetivo, analisa diversos autores, cujas teses estão principalmente centradas no contexto latino-americano e fazem seu percurso discursivo alinhavando democracia, reformas e os ajustes necessários às novas regulamentações do Estado. Finaliza explicitando textualmente que "se a busca da modernidade não exclui, ao contrário pressupõe a presença ativa do Estado, de um estado democrático que incorpore os cidadãos, ela pressupõe também uma política científica e tecnológica na área de saúde que se assente simultaneamente no pilar da regulação e no pilar da emancipação, pilares fundamentais do projeto sociocultural da modernidade".
7) Crise, Governabilidade e Reforma do Estado: Em Busca de um Novo Paradigma. Eli Diniz (Instituto Universitário de Pesquisas/Rio de Janeiro).
O texto de Diniz, escrito de forma bem didática, debate a crise internacional de 80 e seu impacto sobre a América Latina, centralizando, no entanto, como estudo de caso o Brasil. Crise, reforma, governabilidade e nova ordem mundial são tratados em razão de fatores determinantes externos e internos. A autora aponta o descompasso de Estado e sociedade civil, imputando-o, em parte, ao crescimento da organização social, que expõe as mazelas da ineficácia, assim como outras adjetivações, do poder público em crise. Ao concluir, sugere que "... estratégias de enfrentamentos de crises desta natureza, ... não podem perder de vista a meta da consolidação democrática". Por outro lado, salienta que a necessidade de reforma do Estado é patente e deve ser caracterizada na sua dimensão política e técnica, e também conduzida mediante "acordos e alianças, articulando arenas de negociação ...". O artigo é concluído com a proposta de um novo paradigma, "com enfoques tecnocrático e neoliberal, ... como também do modelo de gestão pública associado àquele conceito".
8) O Mito de Descentralização como Indutor de Maior Democratização e Eficiência das Políticas Públicas. Martha Arretche (Núcleo de Estudos e Políticas Públicas/Universidade de Campinas).
Arretche também retoma no seu artigo a década de 80, para o ponto de partida de seu objetivo maior de estudo descentralização da reforma do Estado, considerando-a como "instrumento necessário de democratização das relações políticas ..." e explicitando que essa "nova forma de gestão dos assuntos do Estado, é defendida tanto por aqueles que acreditam nos velhos preceitos liberais, como também por aqueles que acreditam ainda no ideário libertário". A autora faz uma análise geral, aprofundando e problematizando o assunto, descentralização e democracia, em relação à situação da França, Espanha e principalmente do Brasil, por meio de três argumentos básicos: descentralização como condição necessária à democratização do processo decisório; expectativa de esvaziamento das funções do governo central e a redução do clientelismo, mediante formas de controle que impliquem a redução do emprego de recursos públicos.
Parte III O Estado de Bem-Estar no contexto atual
Esta última parte é composta por quatro artigos, que procuraram analisar o sistema do Bem-Estar Social e suas reformas e transformações, sob o impacto do neoliberalismo em curso.
9) Política versus Economia: Notas (Menos Pessimistas) sobre Globalização e Estado de Bem-Estar. Maria Lucia Werneck Vianna (Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Vianna analisa e discute várias referências bibliográficas, principalmente sobre a Grã-Bretanha, França, Alemanha, Suécia e Dinamarca, voltadas para análises de políticas sociais e o Estado de Bem-Estar, considerando tanto os elementos político-econômicos e suas performances impactantes, quanto o papel dos atores sociais e das instituições públicas. Defende que emergência, expansão e crise das políticas de Bem-Estar, são mais bem espelhadas e explicitadas, por intermédio de fatores políticos, embora estes devam ser cruzados obviamente, com fatores econômicos. A autora chama atenção para o fato de que "os dados fornecidos por organismos internacionais abalizados não autorizam os vaticínios alarmantes...", do desmonte do Bem-Estar. Finalizando o artigo com breve comentário sobre o Brasil e seu incipiente e imaturo contexto do sistema de proteção social, Vianna conclui que, embora na constituição brasileira estejam contidos princípios para as políticas sociais, de concepção semelhante à dos países de Bem-Estar, o modelo que vem sendo assumido, no entanto, é mais de concepção americana.
10) Crise Econômica, Crise Welfare State e Reforma Sanitária. Célia Almeida (Departamento de Administração/Ensp/Fiocruz).
Almeida introduz seu artigo resgatando, à exemplo de Vianna, a discussão da crise geral e o Estado de Bem-Estar a partir da década de 80. Centraliza sua análise na reforma sanitária, abordando cinco dimensões: a hegemonia americana e a expansão dos sistemas de assistência médica; a natureza e dimensão da crise sanitária dos anos 60-70; o diagnóstico neoliberal da problemática setorial com as propostas de reformas nos anos 80; os principais resultados dessas reformas e o movimento das tendências das reformas sanitárias nos países centrais. Conclui que, em todos os processos das reformas sanitárias, houve a introdução de "mudanças gerenciais e de mecanismos de mercado, dirigidas especificamente à busca de maior eficiência na produção de serviços através da recomposição do setor, seja a nível público ou privado". Chama atenção para o paradoxo da presença de um estado regulador e a intervenção nas políticas sociais neoliberais, destacando a grande distância "entre o discurso reformista (teórico e ideológico) e as políticas implementadas", embora os desmontes "que vêm sendo realizados" estejam colaborando para disseminar a idéia da ineficiência do setor público "fabricando a insatisfação do usuário e fortalecendo as propostas privatizadoras". A posição da autora, principalmente no último parágrafo do artigo, expõe análises otimistas em relação ao setor saúde e o paradigma neoliberal, destacando que é preciso levar em consideração o fato de que há especificidades próprias e distintas neste setor, que são peculiares a cada sociedade.
11) As Políticas Sociais e as Políticas de Saúde no Contexto do Processo de Globalização. Ana Luíza Viana (Instituto de Medicina Social/Universidade Estadual do Rio de Janeiro).
Viana faz seu caminho discursivo e analítico, na linha do trabalho das duas autoras anteriores, isto é, resgatando a história dinâmica do Estado de Bem-Estar, até o início dos anos 90. Especificamente, no que diz respeito ao setor saúde e suas políticas, a autora trilha por discussões sobre os Estados Unidos da América e a Inglaterra, países que considerou como "símbolos da aplicação das políticas neoliberais...". Enfatiza, ao finalizar, que: "Qualquer movimento que desagüe em propostas exclusivamente locais para a saúde, é passível de imensas distorções, irracionalidades e desperdícios de recursos, como bem demonstram trabalhos recentes de análises do processo de descentralização das políticas de saúde na América Latina (casos chileno, argentino e brasileiro)".
12) A Proteção Social e as Transformações do Mundo do Trabalho: Garantia de Mínimos ou Direito de Cidadania. Rosa Maria Marques (Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
Marques direciona seu texto "sobre a incompatibilidade crescente entre o modelo de proteção social construído particularmente após a Segunda Guerra Mundial e o atual projeto de acumulação...", procurando analisar quatro aspectos básicos: sistemas de proteção aos trabalhadores do mercado formal; processos de universalização e integração à gestão do trabalho (anos 50-60); crise do Welfare State e os impactos sobre a proteção social; e as alterações ocorridas no mundo do trabalho e as possibilidades de transformações dos atuais modelos de proteção social. No decorrer das análises sobre os caminhos da construção do Welfare State, Marques discute a relevância do papel de atuação que tiveram os sindicatos e partidos da classe trabalhadora, reconhecidos estes, quer pelo Estado, quer pelos representantes do capital, como os canais de competência e legitimação, nos processos de negociações. Problematiza, por outro lado, a questão de custo financeiro da proteção social universalizada, levando em consideração fatores diversos a exemplo de: ampliação de cobertura e crescente demanda; a aposentadoria e envelhecimento da população; gastos com o setor saúde e seguro-desemprego e a diminuição das contribuições financeiras de empregados e empregadores. A esse conjunto de fatores é imputada a fragilização do sistema do Welfare State no que se refere ao financiamento da proteção e políticas sociais. A questão do desemprego é inserida no artigo, tendo como pano de fundo a adoção de novas tecnologias pelo sistema produtivo, que desenham uma nova facie de modernização e reorganização racionalizada no campo gerencial e de produção, promovendo a segmentação da classe trabalhadora entre aqueles "...que têm emprego ..." e os desempregados que vicejam "...totalmente à parte da sociedade".
Dalva A. Mello
Núcleo de Estudos de Saúde Pública, CEAM, Universidade de Brasília, Brasília