Maúrício Gomes Pereira

Debate sobre o artigo de Suely Rozenfeld

Debate on the paper by Suely Rozenfeld

Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.

 

 

 

 

O artigo em tela, sobre farmacologia, mostra, com muita propriedade, o estado da arte sobre o assunto (Rozenfeld, 1998). Numerosos pontos nele contidos são dignos de nota, embora somente alguns poucos possam ser aqui comentados.

Em primeiro lugar, é sempre bom ter em mente que a terapêutica e a medicina, de maneira geral, não são matemática. Não são ciências exatas. O homem tem um complexo sistema regulador, profundamente influenciado pelo meio ambiente físico, biológico e social que o cerca. As reações do organismo aos medicamentos podem variar de pessoa a pessoa, embora, em termos populacionais, elas possam ser reconhecidas, desde que um acompanhamento adequado tenha sido feito. É aí que reside a grande dificuldade.

Os temas, em geral, só podem ser investigados parcialmente, e os homens de ciência sabem disso. A realidade é sempre muito complexa. Os investigadores, para pesquisar um dado assunto e na impossibilidade prática de analisá-lo em suas múltiplas relações e interações, isolam uma situação para estudo e simplificam as condições de observação. Por meio de critérios de inclusão e exclusão de participantes, e de decisões quanto ao tamanho da amostra e do conteúdo dos instrumentos de coleta de dados, são afetados determinados grupos de pacientes e não são levados em consideração alguns indicadores ou efeitos, o que limita a generalização dos resultados da investigação e até mesmo a utilidade de sua conclusão. Isso é muito nítido nas pesquisas sobre medicamentos. Nelas, após os estudos laboratoriais básicos e os preliminares, de natureza clínica, chega o momento de realização dos ensaios clínicos controlados, para determinar a eficácia e a segurança do produto (Pereira, 1995). Com os tamanhos usuais de amostra utilizados para determinar a eficácia de um produto, que se situam, no máximo, na casa de algumas poucas centenas de pessoas, muitas reações adversas não serão jamais detectadas nessa fase de investigação, seja porque elas se constituem em eventos da incidência rara (por exemplo, uma reação em cinqüenta mil usuários), seja porque só ocorrem após um longo período de tempo, quando a investigação já terminou e o seguimento dos participantes não está mais ocorrendo. Daí, as críticas que se fazem, com razão, aos ensaios clínicos controlados. Eles, quando bem realizados, dão resposta precisa somente a um número restrito de questões (Block, 1995). Mas, ao lado de suas limitações, os ensaios clínicos controlados têm aspectos positivos e um importante papel a desempenhar, evitando armadilhas dos estudos não controlados, sendo mesmo eventos que, considerados indispensáveis, em muitas situações, como elo final na cadeia de têm como resultado a liberação do produto para comercialização. Porém, isso ainda não é tudo.

Quando um produto é finalmente aprovado, e rotulado como eficaz e seguro para ser consumido pela população, começa uma outra fase, a da vigilância pós-comercialização. Para que esse processo atinja seus objetivos, tem-se que construir um banco de dados sobre a saúde dos usuários, incluindo as reações adversas por eles apresentadas. Todo banco de dados, por sua vez, é avaliado em termos, pelo menos, da cobertura populacional que alcança e da precisão das informações que contém. É difícil construir um banco de dados com essas características, em uma sociedade em transição, relativamente pobre, com as cidades inchadas e muito desemprego, na qual os recursos raramente existem para montar e fazer funcionar tal estrutura. Mas o esforço para instituir uma vigilância pós-comercialização, de alto nível, não deve ser descurado. E necessita sair do terreno apenas das intenções para a sua aplicação rigorosa. Precisamos de soluções criativas, práticas e apropriadas para as nossas condições; temos também de testá-las para verificar se realmente funcionam e divulgar amplamente os seus resultados. Esse é um grande desafio para a nossa intelectualidade, para os nossos profissionais de saúde. Um desafio que precisa ser aceito.

 

ROZENFELD, S., 1998. Farmacovigilância: elementos para a discussão e perspectivas. Cadernos de Saúde Pública, 14:237-263.

PEREIRA, M. G., 1995. Epidemiologia: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Editora Guanabara-Koogan: 316.

BLOCK, G., 1995. Are clinical trials really the answer? American Journal of Clinical Nutrition, 62(Suppl.): 15.117S-15.120S.

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