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Maria Lúcia Magalhães Bosi 1 | Cidadania, participação popular e saúde: com a palavra, os usuários da Rede Pública de Serviços Citizenship, people's participation, and health: beneficiaries of the Public Health Services Network have their say
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1 Departamento de Saúde Comunitária, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará. Rua Prof. Costa Mendes 1608, 5o andar, Fortaleza, CE 60431-970, Brasil. malubosi@agevir.com.br 2 Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva, Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Brigadeiro Trompowisky s/no, 5o andar, Rio de Janeiro, RJ 21949-900, Brasil. | Abstract This paper deals with issues of citizenship and people's participation in health services, based on an analysis of concepts displayed by a specific group, i.e., users of Primary Care Clinics in Program Area 3.1 in the city of Rio de Janeiro, Brazil. The paper analyzes health care users' ideas as the ones most heavily influencing the chapter on health in the Brazilian Constitution. The historical context is the discussion underway on the role of patients in the relationship to professional health care providers, who in turn face the challenge of building a "health and hygiene mentality" among the people. Data were gathered through a field study using a qualitative social research methodology and identify salient points among the ideas of people receiving care. There was a gap (or distortion) in their concept of citizenship alongside aspects which, if analyzed according to the subjective plane of these social agents, show that they expect channels to be created by which they can express their opinions, particularly at the practical level. The analysis thus points to the strategic role of day-to-day relationships in the social change process and the acquisition of rights, meanwhile seeking to shed light on the feasibility of this process in view of the subjectivity of the agents giving it life. Key words Consumer Participation; Health Services Research; Public Health Resumo Este trabalho aborda a questão da cidadania e da participação popular em saúde, tendo por base a análise das concepções de um grupo específico: os usuários que freqüentam as Unidades de Cuidados Básicos da Área Programática 3.1 do Município do Rio de Janeiro, Brasil. Analisa-se suas concepções referentes ao tema em estudo, confrontando-as com as que orientam o texto constitucional no capítulo referente à saúde, ao mesmo tempo em que se discute o papel dos usuários em sua relação com os profissionais que os assistem, em face do desafio da construção de uma 'consciência sanitária'. As informações foram obtidas a partir da aplicação de técnicas qualitativas e apontam importantes elementos nas concepções dos usuários; se por um lado, constata-se um distanciamento da condição de cidadãos, por outro, indica-se a existência de aspectos que, situados no plano subjetivo, aguardam a construção de canais que possibilitem a sua expressão, sobretudo no nível das práticas. Neste sentido, a análise aponta, ainda, para o papel estratégico desempenhado pelas relações cotidianas no processo de mudança social e construção dos direitos, buscando simultaneamente elucidar a viabilidade deste processo tendo em vista a subjetividade dos agentes que lhe dão vida. |
Introdução
Este estudo versa sobre o tema da cidadania e da participação popular no campo da saúde, enfocando as concepções de um grupo social específico os usuários das Unidades de Cuidados Básicos de Saúde da Área Programática 3.1 do Município do Rio de Janeiro , dando continuidade à discussão que iniciamos em outro número deste periódico (Bosi, 1994), em que abordamos a questão baseando-nos na subjetividade dos profissionais de saúde atuantes nessas mesmas Unidades.
Retomando os principais pressupostos que fundamentam esta investigação, partimos do princípio de que a declaração de direitos que compõe a Constituição Brasileira (promulgada em 1988) caracteriza-a como um dos textos constitucionais mais avançados do mundo, em especial no que se refere aos direitos no campo da saúde.
Contudo, é oportuno lembrarmos que "é função prática da linguagem dos direitos, a de emprestar força particular às reivindicações dos movimentos que demandam para si e para os outros satisfação de novas carências materiais e morais, ao mesmo tempo em que a torna enganadora e obscurece a diferença entre o direito reivindicado e o direito reconhecido e protegido" (Bobbio, 1992:10).
No caso brasileiro, o desafio que se coloca é o de materializar em práticas as conquistas estabelecidas no plano legal. Toda reflexão que será aqui desenvolvida sobre a questão do direito à saúde, a exemplo dos demais direitos sociais, pressupõe que sua conceituação deriva de "um processo dinâmico e histórico onde estes direitos emergem gradualmente de lutas que o homem trava por sua própria emancipação e das transformações das condições de vida que estas lutas produzem" (Bobbio, 1992:32).
Dentro do que aqui denominamos processo de construção dos direitos em saúde, destacamos dois aspectos como fundamentais: o primeiro deles, a construção de uma consciência sanitária entendida no contexto deste estudo como "a tomada de consciência de que a saúde é um direito da pessoa" (Berlinguer, 1978:50); o segundo aspecto, intrinsecamente associado ao primeiro, a participação popular como mecanismo fundamental no referido processo.
Dentro do tema Cidadania e Saúde, a questão da participação popular não pode ser, portanto, negligenciada, daí seu destaque dentro deste estudo, especialmente por se constituir também em direito garantido no texto constitucional, compondo uma das principais diretrizes do atual sistema de saúde.
Por outro lado, para que a relação dialética conscientização/participação se desenvolva, parece-nos estratégico, no caso do setor saúde, o espaço micro da participação representado por relações cotidianas, como as que se estabelecem nos serviços de saúde. O cotidiano enquanto experiência de vida torna-se fundamental à localização de elementos através dos quais os atores sociais constroem suas percepções, ao mesmo tempo em que representa um espaço de luta, de exercício de poder, poder aqui entendido "não como um objeto natural, uma coisa" (Machado, 1981:XII), mas como prática social e como tal constituída historicamente podendo-se (nele) distinguir uma situação central e (outra) periférica, um nível macro e (um) micro de exercício (Foucault, 1981).
A construção gradual de uma consciência sanitária alimenta-se de práticas vivenciadas na realidade cotidiana e, neste plano, as explicações voltadas ao plano macroestrutural não parecem dar conta da complexidade das relações (sobretudo na esfera da subjetividade) aí presentes. Falar em construção da cidadania e em participação popular no campo da saúde portanto, em exercício de direitos pede uma reflexão sobre estas noções tal como se apresentam na subjetividade que se associa à prática dos usuários do setor.
O papel dos usuários de saúde na relação cotidiana que estabelecem com a rede dos serviços e com os profissionais que nela atuam, longe de significar a mera busca de assistência, inscreve-se numa prática pluridimensional, dentre as quais se pode destacar a dimensão política.
Contribuir para o desvendamento da subjetividade deste grupo foi o que objetivamos valendo-nos da análise da questão da cidadania, participação popular e saúde no interior deste espaço.
Percurso metodológico
Nosso estudo desenvolveu-se junto aos usuários que freqüentam as Unidades de Saúde pertencentes à Área Programática 3.1 (AP-3.1) do Município do Rio de Janeiro. Esta área envolve a região da Ilha do Governador e Leopoldina, abrangendo, à época do estudo, um total de 38 bairros e 84 favelas população que representa 14,5% da população total do Município do Rio de Janeiro, sendo a terceira área em densidade demográfica no município (Carvalho, 1991).
Dados sobre esta região atestam que nela residem 865.754 habitantes, sendo 23,1% constituídos por favelados, que representam 20,8% da população favelada do Rio de Janeiro (Iplanrio, 1990).
Nosso espaço de observação correspondeu, portanto, às unidades públicas de serviços básicos, localizadas na área programática em que se insere a Universidade Federal do Rio de Janeiro (AP-3.1), o que significa dizer que trabalhamos com um universo de cinco unidades: algumas ligadas a instituições formadoras Germano Sinval Faria (Ensp), Vila do João (UFRJ) , e as não vinculadas centros municipais de saúde de Ramos, Penha e Ilha do Governador. Sendo, fundamentalmente, a dimensão subjetiva o plano no qual se situa nosso objeto, o material básico com que trabalhamos foi o discurso dos agentes. A natureza do objeto impôs a metodologia qualitativa como concepção teórica de abordagem, na medida em que se apresenta como "aquela capaz de incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais" (Minayo, 1992:10).
Bakhtin (1986), apud Minayo (1992:110), considera a palavra "o fenômeno ideológico por excelência" e define o "caráter histórico e social da fala como campo de expressão das relações e das lutas sociais que ao mesmo tempo sofre os efeitos da luta e serve de instrumento e de material para a sua comunicação". É a partir da palavra que se pode, portanto, aprender o conteúdo simbólico das práticas.
As ciências sociais empregam o termo Representações Sociais para nomear as categorias de pensamento, de ação e de sentimento que expressa a realidade, no sentido de afirmá-la ou negá-la (Minayo, 1992). Deste modo, desvendar um dado aspecto da realidade impõe o conhecimento não só do fato objetivo, como também da sua representação. Qualquer conhecimento que pretenda informar um fenômeno social, exatamente por ser social necessita considerar estas duas dimensões.
No caso específico deste trabalho, falar em direito, cidadania e controle social em saúde, conceitos fortemente vinculados ao processo de conscientização da saúde como um direito, implica o conhecimento da dimensão subjetiva representações, idéias, pensamentos dos sujeitos envolvidos. O resgate dessa subjetividade vem constituindo um alvo de reflexão cada vez mais ressaltado na literatura recente (Minayo & Coimbra Jr., 1993; Alves & Minayo, 1994).
No que se refere à consciência sanitária, e considerando estratégico o espaço da assistência, nosso ponto de partida foi o estudo das manifestações desta consciência expressas sob forma da linguagem e, deste modo, apreensível no discurso dos usuários do setor.
Partindo dessas premissas, realizamos nosso estudo junto à população usuária das unidades de saúde já citadas. Optamos por entrevistar pessoas que há mais tempo freqüentavam as unidades e que mantinham uma certa regularidade dentro desta prática. Buscávamos com isto usuários que já tivessem estabelecido um vínculo com as instituições e, conseqüentemente, com seus profissionais. Outro critério, este de ordem mais prática, foi o de escolher os entrevistados dentre os usuários que aguardavam atendimento no interior das unidades e, portanto, dispunham de tempo para nos oferecer seus depoimentos.
Já que partimos de uma perspectiva qualitativa, no que se refere à amostragem, não se colocaram para nós questões como representatividade, verificabilidade ou generalização nos termos em que estas questões, dentre outras, impõem-se à tradição quantitativa. Aqui, nossa preocupação foi "menos com a generalização e mais com o aprofundamento e abrangência da compreensão"....Um critério não numérico, portanto a amostra ideal sendo "aquela capaz de refletir a totalidade nas suas múltiplas dimensões" (Minayo, 1992:102).
A questão da validade dessa amostra foi por nós assumida pela sua capacidade de responder às questões que nos colocávamos, considerando-se suficiente o número de entrevistas no momento em que observávamos a reiteração e esgotamento das categorias nos discursos dos entrevistados.
Dentre as técnicas disponíveis, optamos pela entrevista, elegendo, na medida do possível, o procedimento não diretivo, por entendê-lo como um meio que possibilitaria ao entrevistado discorrer sobre o tema em questão, sob uma lógica própria. Entretanto, optar por esta técnica não implica destituí-la de problemas, a começar pelo que se entende por não diretividade (Michelat, 1975; Thiollent, 1987).
Ainda assim, e sem desconhecer as questões sócio-epistemológicas aí envolvidas, cuja complexidade não pode ser aqui analisada, adotamos a perspectiva de Michelat (1975), quando sugere a entrevista não diretiva como uma técnica que oferece vantagens para apreensão do conteúdo simbólico, permitindo ao entrevistado uma 'atitude de exploração', na medida em que não estrutura completamente o campo de investigação.
Cidadania, participação popular e saúde: a visão dos usuários
A análise do material obtido das entrevistas levantou um grande volume de informações que, após sucessivas leituras e classificações, foram organizadas em torno do que se poderia considerar quatro grandes temas, por meio dos quais procuramos apreender nosso objeto: o conceito de saúde, a consciência sanitária, o cotidiano do atendimento, a transformação do quadro atual.
O Conceito de Saúde
No discurso da população, a saúde aparece como um conceito pluridimensional, ultrapassando, em muito, a dimensão biológica.
Nosso estudo reforça as conclusões de outros autores que, trabalhando com a visão popular referente à saúde, apontam diferentes níveis que se integram na concepção do grupo.
Ngokwey (1988) apud Minayo (1988:357), pesquisando o sistema etiológico popular baseado em um estudo com famílias na região de Feira de Santana, na Bahia, aponta vários domínios que se integram nas explicações formuladas pelos entrevistados:
a) natural;
b) psicossocial;
c) sócio-econômico;
d) sobrenatural.
No modelo acima, a causação natural refere-se à relação entre a saúde e os fenômenos da natureza; a sócio-econômica, às condições materiais de existência (salário, alimentação, as relações no trabalho etc.); a psicossocial, aos sentimentos e emoções e, finalmente, a sobrenatural ao domínio metafísico, espiritual (Minayo, 1988).
Estas mesmas dimensões foram identificadas na fala dos usuários da rede pública de serviços por nós estudados. A pluridimensionalidade do fenômeno saúde emergiu no discurso, a partir das referências feitas ora à etiologia das doenças, ora à conceituação mais direta daquilo que o grupo entende por saúde. Nas transcrições abaixo, podemos constatar, respectivamente, as quatro dimensões apontadas por Ngokwey (1988) apud Minayo (1988).
"Em primeiro lugar, pra ter saúde é preciso ter uma boa alimentação, né?"
" Eu acho que o que deixa as pessoas mais doentes hoje em dia é o custo de vida. Tem gente que às vezes não tem alimentação direito porque ganha só o salário; muito desemprego também..."
"Porque eu quando, assim, me aborreço, uma das primeiras coisas que me dá é dor de cabeça. Eu fico assim xôxo, encabulado. Eu perco até o apetite... Aí muda o funcionamento do corpo todo."
"Pra que é que eu vou tomar isto? Se eu tiver que pegar, quem sabe é Deus."
Para este grupo, saúde é um estado que depende da natureza, das relações sociais, das relações afetivas e de Deus (ou outros 'seres superiores', entidades do domínio espiritual).É portanto, uma concepção que, apesar de incorporar o discurso médico (biológico), ultrapassa-o revelando (e, em certos momentos, colocando em questão), por meio da análise da gênese da doença, a própria ordem social (Herzlich, 1991).
Assim, por meio dos discursos emitidos sobre a doença, evidenciam-se as vivências, o cotidiano das pessoas aspecto que, em vários pontos, insinua-se na fala dos usuários.
"Uma pessoa saudável é igual eu, tenho saúde, graças a Deus. Disposição que Deus me dá prá trabalhar."
"Estar doente é não dar pra fazer nada, me dá uma moleza, aí eu falo pra mim: Eu tô doente."
"Quando eu estou bem? Quando estou sempre trabalhando."
Por outro lado, a manifestação fundamental da doença é a dor.
"Ah! Quando eu não estou sentindo nenhuma dor, né? Aí estou bem, com saúde."
"Quando não estou sentindo nada... não sentindo nada, não tem problema."
"Uma pessoa saudável é uma pessoa que não sente nada."
Em um estudo desenvolvido junto aos profissionais de saúde (Bosi, 1994), verificamos que, de modo unânime, eles indicaram que, para a população, a saúde se reduz à ausência de dor, fato que, segundo estes profissionais, liga-se à ausência de uma 'postura preventiva' por parte dos usuários.
Entretanto, tomando como base os depoimentos anteriores, podemos relativizar esta constatação se considerarmos alguns outros ângulos, a partir dos quais se pode pensar a questão. Inevitavelmente nos vem à lembrança o pensamento de Lèriche (1936) apud Canguilhem (1990:73) que "ao definir a doença não achou outro meio de defini-la a não ser por seus efeitos". Do ponto de vista do doente, a saúde, afirma Lèriche, "é a vida no silêncio dos órgãos" e "a doença (...) aquilo que perturba os homens no exercício da sua vida e em suas ocupações" (Lèriche, 1936 apud Canguilhem, 1990:68).
Com efeito, Lèriche reconhece que "o silêncio dos órgãos" não equivale à inexistência da doença, mas acaba por concluir que se de outro modo "quisermos definir a doença será preciso desumanizá-la" (Lèriche, 1936 apud Canguilhem, 1990:22-23).
Um fato bastante recorrente na literatura e nas discussões no campo da saúde coletiva é a redução que o conceito de saúde sofre quando se iguala à ausência de dor (indicativo da ausência de doença). Se estamos de acordo com o fato de que saúde é muito mais do que isto, não podemos discordar de que também seja fundamentalmente isto. E aí retomamos Lèriche, quando nos fala que a dor é "um fenômeno individual monstruoso e não uma lei da espécie". Se esse autor não toma a dor por doença, não nega que a dor seja um fato da doença.
Por outro lado, lembra-nos Canguilhem (1990:69): "...é unicamente por serem herdeiros de uma cultura médica transmitida pelos clínicos do passado que os médicos de hoje podem se adiantar em perspicácia clínica seus clientes habituais ou ocasionais".
Deste modo, indagamos-nos: na ausência da mediação de um saber científico abstrato, como um indivíduo, ou um grupo, poderá encontrar outro critério para definir saúde que não a experiência concreta expressa pela ausência de dor ou outro desconforto?
Assim, a chamada "consciência preventiva", não deveria ser tão esperada pelos profissionais de saúde, já que esta postura decorre de uma experiência mediatizada pela teoria, o que não corresponde à experiência existencial da maioria da nossa população.
Lembremos, aqui, as dimensões tão bem delimitadas por Berlinguer (1984:44) referentes ao estar doente, sentir-se doente, identificar a doença e poder estar doente, respectivamente caracterizando as alterações estruturais ou funcionais, as percepções orgânicas, a identificação do quadro e a possibilidade material de assumir a doença. A consideração dessas distintas dimensões ajuda-nos a elucidar a gênese dos obstáculos à conformação de uma consciência preventivista entre a população usuária da rede pública.
Obviamente que estas questões que alinhavamos brevemente apresentam muitas implicações, podendo levar a vários outros desdobramentos. Entretanto, não sendo possível aprofundar a temática nos limites que aqui se impõem, procuramos, ao menos, não fugir à sua indicação, por entendê-la como um aspecto importante a ser considerado no âmbito das ações preventivas.
Como última observação dentro deste primeiro tema, cabe destacar a autoridade delegada ao médico para definir o que é estar ou não doente.
"Os outros fica assim: 'Ah! tá muito magra', aí eu fico assim! 'Pôxa'. Aí eu me olho no espelho... Ah! Eu vou lá no médico".
"Eu tenho que ir no médico pra ver o que é."
"Mas assim mesmo com saúde é sempre bom a gente vir ao médico, para ver se realmente a gente está com saúde, né?
As falas acima transcritas reforçam, em parte, algumas das conseqüências atribuídas por autores, dentre eles, Capra, ao modelo dominante da ciência: "De acordo com o modelo biomédico, somente o médico sabe o que é importante para a saúde do indivíduo, e só ele pode fazer qualquer coisa a respeito disso, porque todo o conhecimento acerca da saúde é racional, científico, baseado na observação objetiva de dados clínicos(...) a tendência para manter-se saudável não é comunicada, não sendo valorizada a confiança do indivíduo no seu próprio organismo" (Capra, 1986:150).
De fato, a população confere autoridade aos profissionais (particularmente ao médico) para definir, em grande parte, seu estado de saúde, o que expressa o caráter de classe da relação. Conforme assinala Boltanski (1984:29;37), "os membros das classes populares, conscientes de sua ignorância, não são livres para desenvolver um discurso sobre a doença, sendo suas tentativas de explicação freqüentemente seguidas de uma constatação de ignorância ou do apelo ao único especialista autorizado a falar da doença: o médico (...) ao mesmo tempo, o principal agente de difusão dos conhecimentos médicos e aquele que limita sua reprodução".
Por outro lado, nossos dados discordam da radicalidade com que Capra (1986:154) afirma que "...o modelo biomédico é geralmente aceito, estando seus princípios tão enraizados na nossa cultura que ele se tornou até o modelo popular dominante da doença".
Com efeito, a população usuária parece adotar muitos dos elementos do modelo biomédico, entretanto não afirmaríamos que este modelo se tornou o modelo popular da doença. Isto se evidencia no modo mesmo como as categorias do discurso médico se apresentam na fala dos usuários. Retomando Boltanski (1984:30), constata-se que "a utilização pelos membros das classes populares de termos médicos tomados ao discurso do médico nunca está livre de subentendidos ou de reticências. O termo tomado da linguagem médica permanece então uma palavra estranha que não se integra na fala vulgar" e, acrescentamos, ao seu sistema de representações, de modo análogo ao lugar dessas categorias no discurso médico.
Também Herzlich (1991:26) assinala que "qualquer que seja a importância da Medicina Moderna, a doença (e a saúde, diríamos) é um fenômeno que a ultrapassa e que a representação não é apenas esforço de formulação mais ou menos coerente de um saber, mas também questão de sentido". Conforme vimos, pelo menos para a população usuária investigada (e sem querer generalizar os achados), há outras dimensões que se apresentam no estar doente. Estas, ausentes do discurso médico, são procuradas em outras racionalidades terapêuticas.
É fato amplamente reconhecido por aqueles que atuam no cotidiano de assistência a questão da automedicação, da busca de terapias fora do espaço oficial (a exemplo das, assim chamadas, terapias alternativas fenômeno que ganha relevo na nossa sociedade). Não seriam estes indícios de uma resistência às imposições do modelo biomédico?
Ainda assim, não podemos desmerecer o poder médico em nossa sociedade e o monopólio de competência desta corporação no que tange à determinação do que é estar ou não doente (Freidson, 1978).
A consciência sanitária
Em inúmeros trechos dos depoimentos recolhidos, fica clara a fragilidade desta consciência, no que tange tanto aos direitos como um todo, quanto ao direito à saúde. Entretanto, o interessante é perceber que mais do que propriamente a ausência de uma consciência de direitos, nota-se a percepção nítida de que os direitos não existem para a massa da população. A falta da concretização dos direitos que não saem do papel fica clara na fala dos usuários, assim como a percepção da marcante divisão de poder presente na sociedade:
"Infelizmente a vida é essa aí. Tem que ser o que eles querem, não o que a gente quer. É ou não é? Querer não é poder."
"...a gente é mais baixo, a gente tem que ficar por baixo mesmo. As classes baixas não têm muito poder que nem o alto."
"A gente não pode fazer nada. A gente é baixo... Quem pode fazer é os grande lá..."
Portanto, mais do que um desconhecimento dos direitos, a população apresenta uma sensação de resignação, de submissão, embora se possa identificar na sua fala a percepção de que a realidade deveria ser diferente, tendo em vista alguns direitos:
"Falei assim: 'Doutor, eu sinto muito, mas esse remédio eu não vou comprar'. Afinal, ele não tinha nem me examinado. Ele disse: Por que é que você não vai comprar? Ninguém tem obrigação de dar remédio aqui não'. ' Tem! Se tiver o remédio na farmácia, vocês têm obrigação de dar. Acontece que mesmo que tivesse o remédio eu não queria'. Aí ele perguntou por que é que eu não queria. Porque o senhor não me examinou".
"Eles não escutam. Se for pedir ao médico o dia, ele não escuta a gente. ' Ah! não posso fazer nada!...' A gente paga INPS, a gente tá pagando pra eles... ."
"(...) saber o motivo por que o médico não veio... às vezes a gente pode entender. Aqui não dá satisfação não e eu acho que eles deveriam dar sim. Você acha isto justo? Um desgraçado que vem lá da Paraíba com a família morar na favela. Vê se você acha isto justo... constrói um prédio e ganha meio salário!"
E quanto à participação? O que é participar para o grupo?
Pelas várias alusões à questão da participação da população no enfrentamento das questões relativas à saúde, dentre outras esferas, torna-se claro que participar tem como principal objetivo ser ajudado. Nos depoimentos em que a questão da participação merece um destaque, este é um mecanismo útil para expor os problemas a fim que obter ajuda dos que 'estão lá em cima', ou então, um método de resolução de problemas que passam a ser responsabilidade da população.
"Se a gente não se reunir pra expor os problemas que nós temos, as pessoas que podem nos ajudar nunca sabem."
"Se tem uma pessoa que te orienta, já é tudo. Já tá participando. Já tá ajudando."
"Participar no sindicato é bom... você tem advogado de graça."
"Por exemplo, se mora num prédio, reunir os moradores todos pra limpeza, consertar algo, conservar."
Pelo que indicam estes trechos que destacamos dentre os vários exemplos que poderíamos citar, a concepção de participação que orienta o grupo, longe de significar um mecanismo fundamental no processo de transformação social, é por ele concebida fora de sua dimensão política, configurando uma prática perpetuadora das atuais relações.
Dentro desta mesma linha, a população não participa de associações ou movimentos populares. Mas por que não participa?
"As pessoas não vão à Associação de Moradores porque não acreditam. Aquela gente?... É aquele negócio... vai fazer e não faz."
"Tá por fora esta Associação daqui. Isso aí é tudo safado... Todo mundo quer tirar o dele."
"Fazer reunião não resolve. Só faz dizer que vai melhorar e a gente nunca vê melhora nenhuma!"
"A gente perde tempo, sabe? Fica lá esse tempo todinho, mas você não vê nada... É por isso que não me interesso."
Podemos dizer que, ao lado de problemas relacionados ao cotidiano das pessoas entrevistadas (cansaço, falta de tempo etc.), há uma forte descrença nos seus representantes. A baixa representatividade das lideranças revela-se, portanto, um elemento essencial para a compreensão da fragilidade de certas instâncias. No entanto, caberia explorar o papel que a participação nesses, dentre outros mecanismos, pode desempenhar no processo de capacitação desses atores para a negociação, junto a outros (particularmente, gerentes e profissionais das unidades), do atendimento de suas demandas.
Além disso, cabe destacar o crescimento da violência e de novas formas de dominação presentes nos centros urbanos, destacando-se, dentre estas, o narcotráfico, com seus desdobramentos no nível da organização popular.
Nos relatos, pudemos perceber o medo de um envolvimento efetivo com as associações nas alusões a tumultos, brigas, medo de sair de casa etc. Este elemento encontra respaldo na opinião de Duarte et al. (1992): "Na periferia das grandes cidades aparentemente, de modo acentuado no Rio de Janeiro veio crescendo ao longo da última década o poder de quadrilhas inicialmente ligadas aos jogos e loterias ilegais e agora, cada vez mais, à rede do narcotráfico". O autor acrescenta, ainda, que: "O poder jurisdicional do crime organizado é conhecido em diversas partes do mundo metropolitano mas o que distingue sua ação nos contextos periféricos como o brasileiro, é o grau de penetrabilidade e a capacidade de obtenção de legitimidade para certos efeitos e níveis constrangendo as formas e limites muito singulares as possibilidades de consolidação da cidadania nesses meios populares".
Vemos assim que a afirmação da cidadania é um processo que encontra dificuldades não só no plano da subjetividade, como também, ou mais, no nível das práticas nas quais se constrói. Ao que parece, para os usuários da rede pública de serviços, o processo de afirmação dos direitos terá que passar pelo seu reconhecimento e conscientização, tendo ainda que ultrapassar barreiras seja no plano das relações que se estabelecem na sociedade mais ampla, seja dentro do próprio modelo assistencial. E então, cabe indagar: o que se passa neste espaço?
O cotidiano do atendimento
Uma afirmação bastante comum, ratificada inclusive pelo estudo que realizamos junto a profissionais de saúde (Bosi, 1994), é que, para os usuários, sem dúvida, o importante é ser atendido.
Com efeito, podemos dizer que esta expectativa esteve presente em todos os depoimentos obtidos. A população não suporta a negação do atendimento, apesar de demonstrar até uma boa dose de tolerância com os serviços, conforme veremos adiante.
"Assim, certas coisas eu não aceito, como por exemplo, eu vir pra cá porque a minha filha tava muito doente, cheguei aqui às sete e meia ... não tinha mais número. Chegou uma moça, pegou número. Então, tem certas coisas que a gente não consegue entender."
"A doutora mandou eu trazer ela quinta-feira. Eu trouxe. Cheguei aqui seis horas, não tinha mais número."
"Agora, se eu não consegui pegar número e a outra conseguiu, eu não entendo."
"Se a gente chegar aqui às seis horas, já não pega número, tem que tá aqui às cinco horas? Sair de casa às quatro e meia, ou antes, é cedo demais, está escuro."
"Devia ter mais número porque, por exemplo, para a gente trazer uma criança... cinco horas da manhã, com a fila... e ser atendida às 10 da manhã... Pôxa! Desgasta a criança... ."
"Tá com um ano marcando a consulta. Ainda não consegui. Um ano!"
"A pessoa entra com um caso gravíssimo e não é atendida. E outra que não tem problema é atendida. Eu não entendo."
Poderíamos continuar destacando dezenas de trechos nos quais se torna patente que a população sente como uma violência a lógica do atendimento. Distante do cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde, para quem, muitas vezes, esta lógica representa uma importante carga de trabalho (Bosi, 1994), os usuários interpretam como uma injustiça os critérios utilizados na organização da assistência e, em particular, na distribuição dos números.
Dentre outros aspectos a destacar, evidenciam-se as dificuldades encontradas pelo grupo na compreensão de prioridades técnicas. Sem questionar se a ordem de prioridade é ou não observada nos serviços, aspecto que não foi objeto desta investigação, o que importa é que a população se sente injustiçada. Na hipótese de que as prioridades sejam de fato respeitadas, a sensação de injustiça, com todo o sofrimento que acarreta, advém em grande parte do fato de que a população não tem acesso nem mesmo ao que se passa na organização interna do serviço. Que dirá ao conhecimento médico apontado como base para os critérios técnicos!
Ao lado disto, problemas como o acesso aos serviços, a demora dos exames, muitas vezes superando a possibilidade de o usuário suportar o incômodo, além da incapacidade do setor em responder a uma série de outras demandas, acarretam conseqüências importantes na saúde da população, cuja resposta é a automedicação, abandono do tratamento, entre outras medidas:
"Tirei uma ficha para a clínica médica e aí expliquei o meu caso para ele (o médico) e ele disse: 'Vai para o Hospital do Fundão.' E eu lá sei onde é esse Fundão... ."
"Os exames... o que eu acho ruim é isso. Os exames, demoram muito pra vir. Eu tô com um exame, sem poder tomar remédio... esperando há dois meses!"
"Eu não concordo com esta demora, devia ter um médico às 7:00h, outro às 11:00h..."
"Acho que devia ter mais especialistas aqui, no posto, assim: médico de coluna, ortopedista..."
Ao longo dos depoimentos, pode-se notar um total desconhecimento, por parte dos usuários, do alcance e dos limites dos serviços a que recorrem. Para eles, os postos são estruturas incompletas que precisam ser complementadas com unidades de emergência, ambulatórios para diversas especialidades, com médicos em número suficiente, laboratórios equipados para fornecer diagnósticos a curto prazo e também precisam dispor de ambulância.
A população não distingue unidades de cuidados básicos de hospitais, ou outras estruturas mais complexas. Esta total desinformação leva as pessoas a uma verdadeira peregrinação em busca do atendimento causando, por outro lado, um verdadeiro caos nos serviços cujos profissionais, a todo momento, vêem-se na obrigação de referir os usuários para outros locais, fato percebido por estes últimos como negação do atendimento.
No contexto deste estudo, constatamos que a atual organização dos serviços, cuja lógica se mostra bastante racional para boa parte dos profissionais e planejadores do setor, encontra impasses de várias naturezas em seu funcionamento. Impasses que, como nos diz Valla (1993:91) decorrem, em parte, "de suas formações universitárias (que) revelam lacunas justamente nas áreas que se relacionam com os problemas agudos da população trabalhadora (...). Nesse sentido, a ótica elitista dos currículos universitários faz com que assuntos tratados nas universidades, freqüentemente, passem ao largo de questões de educação e saúde ligadas às necessidades da população". Tomando, a título de exemplo, a questão da proximidade da moradia como critério de escolha do serviço ou a necessidade de emergência e ambulâncias nas unidades tantas vezes citadas pelos usuários , longe de serem irracionalidades da população, resultam de suas próprias condições materiais que lhes impossibilitam o deslocamento em busca de auxílio nos casos em que necessitem de atendimento imediato.
Para os que já vivenciaram trabalho de parto no período da madrugada, convulsões e outros quadros que a população relata, passando por estas situações numa região onde a violência alcança níveis assustadores e sem qualquer possibilidade de obter transporte (público ou particular), sem acesso a telefones e outros recursos para buscar ajuda, parece-nos mais do que racional desejar/esperar que as unidades locais possam responder a qualquer problema.
Se estes aspectos de natureza mais objetiva conformam necessidades verbalizadas pelos usuários, a qualidade do atendimento também foi bastante destacada.
Coerentemente com a concepção de saúde que, conforme vimos, engloba a dimensão psicoafetiva, os usuários esperam dos serviços muito mais do que um conjunto de cuidados dirigidos a um corpo biológico. Os serviços de saúde parecem cumprir muitas funções, e a relação médico-paciente sobressai como o elemento mais destacado no julgamento da qualidade do atendimento, superando, até mesmo, critérios tradicionalmente valorizados como, por exemplo, a competência dos profissionais:
"Aqui eu, graças a Deus encontrei aquilo que estava procurando. Aquela atenção..."
"Lá é uma burocracia incrível. Aqui, não. Aqui a gente já tem um conhecimento."
"O de lá seria mais perto para mim, mas eu prefiro o daqui. Eu tenho conhecimento, entendeu? Eu acho o pessoal daqui legal."
"Os médicos daqui são bons, as pessoas tratam a gente como gente... atenção... atenção, sabe?"
"Os médicos aqui não são assim iguais aos outros hospitais... Eles tranqüilizam a gente."
"O médico conversa com a gente... explica... Isso me animou bastante e me ajudou muito."
"Ele (o médico) é carinhoso, é meigo."
É interessante destacar a recorrência de algumas categorias empíricas como: atenção, carinho, bondade nos discursos analisados. Bastante curioso foi o fato de, na maior parte das entrevistas, não ter sido possível saber se as pessoas "se curaram" ou não. Mas, com certeza, era fácil detectar se foram bem atendidas, se receberam afeto.
Apenas secundariamente apareceram alusões à competência técnica:
"Ele é um bom médico. Pelo menos nunca errou em nada."
"Um médico bom vê o problema da gente assim de cara."
Ao lado da importância da dimensão afetiva, há que ressaltar que a população, não possuindo critérios técnicos para avaliar a competência do médico, lança mão de outros parâmetros usados "cotidianamente na apreciação de outrem: amabilidade, a boa vontade, a complacência" (Boltanski, 1984:38).
É importante destacar o quanto a população reverencia as opiniões dos médicos considerados "bons". A figura do médico e não a de outros profissionais da equipe e a relação que mantém com os usuários é um elemento central e de grande valor estratégico no espaço do atendimento; sua opinião tem grande influência até mesmo na esfera privada da vida das pessoas:
"Qualquer problema que eu sinto, até familiar, eu converso com ele. Além de médico, ele é um amigo."
"Sabe, ele não vê esse negócio de paciente, ele vê o que é melhor para mim. O que vai acontecer de bom (...) pra mim, ele é assim, 'super pai'."
"É o seguinte: ele sabe conversar com a gente, dizer pra gente o que deve fazer, o que não deve fazer."
"Porque a gente, quando chega perto do médico pra conversar, a gente nunca diz aquilo tudo que sente. Sempre fica faltando alguma coisa. Então ele me deixou bem à vontade. Eu pude falar boa parte dos problemas."
Como se vê, a relação médico-paciente se baseia no duo afeto/confiança, o que confere ao médico uma grande parcela de poder exercido no cotidiano de tal relação, ainda que os dois pólos nem sempre tenham consciência disto. Poder que poderá influenciar não só na conduta das pessoas diante das ações desenvolvidas pelos serviços, como também na família, no trabalho, na comunidade.
E aí também se recoloca a tensão muitas vezes verbalizada pela parcela dos profissionais de saúde que reconhecem a importância central dos aspectos qualitativos do atendimento. Podemos perceber a dificuldade que encontram para conciliar a continuidade de um atendimento que seja bom para o usuário com o crescimento acelerado da demanda.
A tensão quantitativo/qualitativo vivida pelos profissionais parece encontrar suporte quando se analisa a subjetividade dos usuários. Também retorna aqui a fala de uma parcela dos profissionais das unidades por nós estudadas, quando apontavam o potencial estratégico da relação que estabelecem com os usuários (Bosi, 1994). Cientes da dimensão política presente na sua prática, que para o grupo não é só um fazer técnico, estes profissionais se dão conta de que o "incêndio que todos os dias lhes é dado apagar", impossibilita-lhes contribuir para o processo de conscientização no sentido de uma transformação para melhor da situação atual.
Enquanto isto, o que pensam os usuários sobre a possibilidade de alteração deste quadro?
A transformação do quadro atual
Aqui, o sentimento predominante que emana dos depoimentos é a sensação de desânimo e desamparo; de não ter como reclamar e nem para quem:
"A gente vai reclamar com quem? Vai falar com quem? E com quem a gente reclama, será que vai tomar alguma atitude?"
"Porque muita gente já reclamou e não adiantou nada. Continua a mesma coisa..."
"A gente não pode fazer nada. A gente vai reclamar com quem? Acho que não tem ninguém pra gente chegar e falar."
Estes depoimentos (e, particularmente, o estado de ânimo percebido nos relatos) apontam para uma reflexão, a nosso ver, digna de destaque no que se refere ao tema em análise: os elementos que possibilitam a superação da situação atual.
Se uma reivindicação tem sempre por trás algo que está faltando, não basta, como destacam Cohn & Jacob (1991), a presença de uma carência para que se tenha uma reivindicação. Segundo afirmam esses autores, torna-se necessário que a sociedade também tenha se colocado claramente a possibilidade de solucionar o problema e que, por sua vez, a solução seja eticamente aceitável.
Pelo que verificamos, muito mais do que um diagnóstico do que lhe é devido, falta à população a crença de que a situação pode mudar. Os usuários acreditam que a realidade só pode ser transformada por outros segmentos; se alguém pode transformar esta realidade, certamente não são eles, já que se percebem claramente excluídos do poder. Mais do que isto: não percebem em si qualquer possibilidade de exercer poder.
Com a crise ética que vem se agravando em vários setores (Berlinguer, 1993; Rouanet, 1993; Costa, 1994) em face do descompromisso continuado dos dirigentes com a saúde, torna-se compreensível, assim, que esta seja a visão dos usuários.
Por outro lado, na ausência de canais de participação efetiva, mesmo que a população queira, torna-se muito difícil reivindicar, sobretudo num contexto em que mesmo segmentos sociais mais fortemente organizados defrontam-se com obstáculos excepcionais para levar à frente sua demandas. Desta forma, simples reclamações são, muitas vezes, evitadas e substituídas por outras formas de expressão desta insatisfação, como, por exemplo, o abandono aos serviços. Os trechos abaixo retirados das falas dos usuários são claros:
"Eu não reclamo. Eu vou embora. A gente é mais baixo..."
"Eu sou do tipo de pessoa que tem vergonha, não reclamo, eu procuro me calar."
Conclusão
Por meio deste estudo, constatamos, mais uma vez, a falta de correspondência entre o discurso legal e a realidade concreta a que se referem. No caso específico do setor saúde, há ainda um longo caminho a ser percorrido até que se conquiste a eqüidade. A despeito dos avanços obtidos no plano legal, a realidade dos serviços oferecidos à população em muito se distancia da garantia do direito à saúde, tão almejada em nosso País.
Para tanto, há que se considerar o papel dos usuários em sua relação com os profissionais e serviços, diante do desafio de construção de uma consciência sanitária; por outro lado, reafirma-se aqui a necessidade de estudos fundamentados na abordagem qualitativa, a fim de inserir a subjetividade dos atores dimensão, em geral, esquecida nos planos e programas do setor.
Em relação às concepções dos usuários, a presente investigação apontou importantes elementos, os quais se, por um lado, constatam o distanciamento do grupo da condição de cidadãos, por outro, identificam aspectos fundamentais que, embora presentes na subjetividade do grupo, não encontram canais de expressão, principalmente no plano concreto das práticas.
Por último, cabe ressaltar o papel estratégico das relações estabelecidas no cotidiano dos serviços para o processo de mudança social e construção dos direitos, em especial, no campo da saúde.
Agradecimentos
As autoras agradecem a Rosa Maria Magalhães de Oliveira, pelo auxílio na realização do trabalho de campo; à direção e às chefias das instituições participantes e, em especial, aos usuários, pelos depoimentos que nos confiaram. Esta pesquisa foi desenvolvida com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
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