ARTIGO ARTICLE
Victor Vincent Valla1,2,3 | Sobre participação popular: uma questão de perspectiva On popular participation: a matter of perspective
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1 Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil. 2 Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina (CEPEL). Rua Uranos 1496, sala 401, Rio de Janeiro, RJ 21060-070, Brasil. 3 Curso de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense. Campus Universitário Gragoatá, Bloco D, sala 512, Niterói, RJ, 24210-200, Brasil. | Abstract The idea of popular participation is related to the distribution of public funds by government agencies and the popular classes' needs. Although the history of popular participation dates back to the late 19th century, it was during the 1980s that popular manifestations reached their peak in Brazil. The present context of globalization and neoliberalism have led to changes in the relationships between authorities and civil society, and an impasse has been created in negotiations. This context of impasse has fostered a reflection on the different forces acting within civil society and the various demands raised by them. The author's hypothesis is that the mediators in this process (middle-class and technical professionals), working together in popular participation with the popular classes, experience difficulties in perceiving the latter's interests and evaluations of reality. The popular classes' disbelief in Brazilian politics encourages them to solve their problems by forms of participation different than those practiced historically. Key words Consumer Participation; Community Participation; Social Policy; Health Policy Resumo O conceito de participação popular está relacionado com a distribuição da verba pública pelos governantes e as necessidades básicas das classes populares. Embora sua história date do fim do século XIX, foi durante a década dos anos 80 que as manifestações populares chegaram ao ápice no Brasil. A conjuntura atual de globalização e neoliberalismo tem modificado as relações entre os governantes e a sociedade civil, criando assim um impasse nas negociações. Este momento de impasse permite uma reflexão sobre as distintas forças no interior da sociedade civil e as diferentes reivindicações anunciadas por elas. O autor levanta a hipótese de que os mediadores (profissionais e técnicos da classe média) que trabalham com a participação popular têm dificuldades em perceber os interesses e avaliações de realidade das classes populares. Uma descrença quanto à política praticada no Brasil faz com que as classes populares procurem resolver seus problemas por vias de participação diferentes das já estabelecidas. |
Introdução
A discussão sobre participação popular no Brasil remonta a, pelo menos, até a última década do século XIX (Pinheiro & Hall, 1979). Independentemente das posições teóricas assumidas pelos estudiosos do tema, é consensual que o termo participação popular se refere a uma concepção populacional mais ampla do que apenas o movimento sindical ou a política partidária. Neste sentido, o termo geralmente se refere às classes populares, embora possa incluir também a participação da classe média.
É possível situar o início da discussão mais sistemática sobre participação popular nos anos 30 e 40 deste século, em relação estreita com o surgimento das políticas públicas. O termo políticas públicas se refere à participação do Estado na montagem da infra-estrutura necessária à superconcentração de atividades produtivas nas grandes metrópoles brasileiras (Moisés, 1985). Neste processo, surgiram contradições urbanas, isto é, a necessidade da intervenção do poder estatal para garantir a constante e crescente reprodução capitalista e para suprir os serviços de infra-estrutura para as enormes massas de população que fizeram aumentar a "urbanização por expansão de periferias". Talvez uma das principais contradições fosse a pouca capacidade ou interesse do capital de investir naquilo que julgava oferecer pouco lucro imediato. Assim, surge a noção do "Estado como 'provedor' de toda a população (...) e assim, [capaz de] resolver a problemática urbana, que parecia crescer sempre mais" (Moisés, 1985:18). Poder-se-ia dizer que a noção de participação popular tem sido vista como parte integrante desse processo.
Embora o termo participação popular seja hoje utilizado universalmente, sua aplicação tem um significado especial para a América Latina. A própria idéia de uma participação popular surge, justamente, para se distinguir de uma outra concepção de sociedade, onde quem tem estudo e recursos aponta o caminho 'correto' para as classes populares. A ambigüidade do termo não vem somente das várias interpretações que poderiam resultar do seu uso, mas também do fato de que a tradição autoritária da América Latina, e do Brasil, contamina tanto os grupos conservadores, como também, freqüentemente, os progressistas. Há uma busca de controle das populações que moram nas periferias dos grandes centros e trabalham e moram nas áreas rurais. Controle com a finalidade de pôr em prática as suas concepções de como deve ser a sociedade brasileira.
Como este processo tem sido interpretado: a questão da verba pública
O Estado moderno é um prestador de serviços e não apenas um garantidor das situações conquistadas pelos particulares. E para prestar os serviços, que devem ser da melhor qualidade possível, é necessária a cobrança de impostos e taxas; o resultado dessa cobrança é a verba pública. Entende-se que os gastos da verba pública vão em duas direções: para o consumo coletivo e para a infra-estrutura industrial. Quando se fala em consumo coletivo, refere-se geralmente, mas não apenas, aos serviços básicos fornecidos pelo Estado e necessários para a reprodução da força de trabalho da população: saúde, educação, saneamento básico, transporte público etc. Como exemplo, basta citar o transporte público. A velocidade, o conforto e o preço do transporte público em qualquer cidade grande do mundo determinam, em grande parte, a qualidade da reposição de energias dispendidas pelos trabalhadores durante um dia de trabalho (Valla, 1997a).
Mas, por outro lado, o desenvolvimento de uma economia capitalista, dependente, requer pesados investimentos, feitos com o mesmo dinheiro que o Estado arrecada para atender ao consumo coletivo da população. Assim, como há uma infra-estrutura de que a população necessita para se refazer de um dia para o outro, há também uma infra-estrutura necessária para as indústrias poderem funcionar: rodovias, ferrovias, barragens, usinas etc.
Como o mesmo dinheiro público tem dois sentidos, nos países de economias periféricas, grandes lobbies capitalistas, nacionais e internacionais, pressionam os governantes a investirem em obras de infra-estrutura industrial segundo interesses das pequenas parcelas da população abastada (Linha Vermelha, do Rio de Janeiro, versus investimentos em ferrovias e metrô, por exemplo). Tais investimentos acabam prejudicando a quantidade e a qualidade dos serviços do consumo coletivo, afetando dessa forma, de maneira dramática, a qualidade de vida de grandes parcelas das classes populares (Valla et al., 1993).
Sabe-se que praticamente todos os investimentos públicos para o consumo coletivo são necessários. Questiona-se, por isso, a necessidade e o montante de recursos destinados à infra-estrutura industrial, havendo, no Brasil, outros exemplos de gastos questionáveis neste caso. Basta lembrar a construção das usinas nucleares em Angra dos Reis. Apesar de muitos protestos de quem entende do assunto, o governo militar gastou milhões de dólares na construção de usinas que hoje são vistas como perigosas para a saúde coletiva. Outros exemplos incluem a isenção de impostos, por décadas, para indústrias multinacionais a se instalarem no Brasil (Valla & Stotz, 1989), como também a política, mais recente, de utilizar o dinheiro público para evitar e/ou compensar a falência de bancos particulares.
Tratando de definir a participação popular
No conjunto de discussões que há alguns anos se vêm intensificando sobre os rumos técnicos e políticos do sistema nacional de saúde, a questão da participação popular tem merecido destaque, sendo esta, entretanto, uma discussão marcada por ambigüidades que expressam as diferentes perspectivas com que se utiliza o termo.
O tom vago e difuso em que a proposta de participação popular aparece em textos oficiais, ao lado de sua frágil normatização, tende a torná-la, como conseqüência, algo centralizado nas mãos dos técnicos e na burocracia governamental.
Para se ter uma melhor compreensão do sentido da participação popular, é interessante situar algumas definições de 'participação social'. De forma geral, participação popular compreende as múltiplas ações que diferentes forças sociais desenvolvem para influenciar as formulação, execução, fiscalização e avaliação das políticas públicas e/ou serviços básicos na área social (saúde, educação, habitação, transporte, saneamento básico etc.). Outros sentidos mais correntes de participação são a modernização, a integração dos grupos 'marginalizados' e o mutirão (Valla et al., 1993).
O termo modernização tem o sentido de superar atrasos tecnológicos e culturais de uma determinada sociedade. Equivale ao desenvolvimento de novas formas de produzir e consumir, de inovações tecnológicas (por exemplo, DDD, robôs industriais, caixa automática nos bancos, TV a cabo) e culturais (por exemplo, divórcio, hábito de lanches rápidos, aquisição de eletrodomésticos), que estariam introduzindo profundas mudanças na sociedade, das quais a população, como um todo, deveria participar. Um exemplo atual de modernização foi o enorme gasto do dinheiro público pela prefeitura para produzir uma melhoria visual da cidade do Rio de Janeiro, através do Projeto Rio Cidade. Tal empreendimento não contemplou o saneamento básico de grande parte das favelas, nem as causas das freqüentes enchentes ou o transporte público. Assim, é possível que esta modalidade da participação social vise também fazer com que a população tenha a sensação de participar de algo de que nem sempre usufrui ou controla; a melhoria de vida da população seria uma decorrência dessa modernização. A realidade brasileira, no entanto, não confirmou esse pressuposto. Não há indicações de que as inovações tenham permitido uma maior participação da população. E tampouco o padrão de vida da maioria da população melhorou.
A proposta da integração dos grupos 'marginalizados' parte do princípio de que a maioria da população, em razão da sua pobreza, encontra-se 'fora' da sociedade. É como se a dificuldade de acesso aos produtos e serviços básicos fosse uma decorrência da ignorância e passividade dessas populações 'marginais', ou para utilizar um termo mais atualizado, os excluídos, isto é, aqueles que estão 'fora', por sua própria culpa, precisando ser animados, incentivados, esclarecidos, para poderem participar dos benefícios do progresso econômico e cultural.
Essa concepção tem raízes fortes em nossa sociedade, inspirando inúmeros programas governamentais e religiosos que há muitos anos vêm se desenvolvendo com vistas a integrar os chamados marginalizados.
Esse tipo de participação obscurece o fato de que estes grupos marginalizados sempre estiveram dentro da sociedade, mas participando da riqueza de forma bastante desigual. A integração deveria, então, passar necessariamente pela garantia de empregos, melhores salários e serviços básicos.
Uma das formas de participação popular mais utilizada é a do mutirão. Trata-se de um apelo, de um convite à população, principalmente a que mora nos bairros periféricos e favelas, para que realize, com seus próprios trabalhos, tempo de lazer e, às vezes, dinheiro, ações e obras da responsabilidade do governo. Em grande parte, os governos brasileiros, tanto o federal, como os estaduais e municipais, agem com a população de uma forma bastante autoritária, decidindo unilateralmente sobre a qualidade e quantidade dos serviços básicos. Quando, no entanto, percebem que não dão conta de um determinado problema (como o dengue ou a cólera, por exemplo), então conclamam a população a participar do combate e erradicação do mal através do mutirão.
Ao conclamar a população a combater o mosquito do dengue, por exemplo, os governos individualizam a questão: o culpado direto pela doença seria o mosquito transmissor e o indireto, a população; se a população vier a contrair a doença, será por não ter seguido corretamente os conselhos de prevenção e combate ao mosquito. É o que se chama culpabilização da vítima, uma prática que permite esconder o mau funcionamento dos serviços públicos e o descompromisso dos governos (Valla et al., 1993).
Merece mais atenção dos estudiosos das classes populares, no entanto, a insistência dessas em praticar o mutirão, principalmente na construção de habitações, escadarias e equipamentos de saneamento básico. Há anos os mediadores da classe média assinalam as perdas de dinheiro e energia nesta prática, mas as populações pobres continuam produzindo aquilo que um salário mais digno ou um governo mais popular deveriam estar facilitando. É possível estar presente na lógica e na experiência dos pobres brasileiros a idéia de que não dá para confiar nas promessas dos governos. É possível também que o mutirão nos locais de moradia esteja espelhando valores comuns de solidariedade e reciprocidade.
A participação popular diferencia-se da modernização, do mutirão etc., por ser uma participação política das entidades representativas da sociedade civil em órgãos, agências ou serviços do Estado responsáveis pelas políticas públicas na área social.
Esta participação, se de um lado legitima a política do Estado diante da população, também abre um canal para as entidades populares disputarem o controle e o destino da verba pública.
No caso específico da saúde, a participação popular assumiu um papel importante nas formulações da 8a Conferência Nacional de Saúde, redigida em 1988, no sentido de construção e fortalecimento das propostas progressivas de reorientação da política do setor. As discussões acumuladas neste processo resultaram na consagração institucional da saúde como "direito de todos e dever do Estado", e, mais tarde, deram origem à Lei Orgânica da Saúde, de 1990. Essa lei constitui, apesar dos vetos presidenciais, um importante instrumento na configuração jurídico-política de um novo modelo assistencial, capaz de ter impacto sobre a saúde da população (Valla et al., 1993).
Os avanços legais, incluindo os dos Conselhos Municipais de Saúde, no entanto, não têm levado a transformações efetivas na realidade dos serviços, a não ser em alguns casos isolados, como os dos municípios de governos populares. Assiste-se, ao contrário, a uma grande crise no setor público da saúde.
A participação popular, neste contexto, significa uma força social imprescindível para fazer sair do papel as conquistas e impulsionar as mudanças necessárias. Como se sabe, o interesse de muitos grupos é exatamente o contrário, ou seja, que o serviço público permaneça sempre deficitário, impotente, desacreditado pela própria população que o mantém. É assim que os seguros-saúde (Amil, Golden Cross etc.) conseguem crescer, aparecendo como a melhor saída diante do caos da rede pública (Valla et al., 1993).
Um dos efeitos mais perniciosos do mau funcionamento dos serviços públicos no Brasil é o do que se chama a culpabilização da vítima. É possível detectar uma imagem construída em torno das condições de vida e de trabalho da população trabalhadora. Pode-se dizer que a precariedade dos serviços públicos para essas parcelas da sociedade tem, em parte, sua justificativa a partir dessa imagem construída. Acusam-se os pais de uma criança desidratada por não se preocuparem com o filho, culpa-se a criança da classe popular que não aprende na escola por não se esforçar, ou explica-se o acidente sofrido pelo operário como resultado de sua falta de atenção. Assim, a individualização da culpa é a explicação de uma prática coletiva (Valla & Stotz, 1989).
A inoperância, a ausência ou a irresponsabilidade das instituições sociais (que resultam em acidentes de trabalho, doenças infectocontagiosas e fracasso escolar, entre outras ocorrências) acabam sendo justificadas pelo local de moradia, o baixo salário, o nível de escolaridade.
Uma das justificativas para se culpar as vítimas é a desqualificação do saber popular. Assim, o monopólio do saber técnico, seja médico ou de outro tipo, põe em segundo plano o saber acumulado da população trabalhadora, ao lançar mão da escolaridade como parâmetro da competência. Mas a desqualificação da classe trabalhadora também passa pela construção de uma imagem do bruto, do carente, do nulo, afirmando, aliás, que família pobre é 'igual a doença'. Essa imagem propagada do trabalhador tem, de um lado, o resultado de apagar as diversidades do interior das classes populares e de infantilizar os mesmos trabalhadores; chama-os de mentirosos quando alegam problemas de saúde, de apáticos quando demonstram desinteresse na sala de aula, ou acusa-os de não compreender os conselhos de prevenção contra dengue ou meningite (Valla et al., 1993).
O fenômeno da culpabilização da vítima é freqüentemente agravado pela chamada 'ditadura da urgência'. A falta de investimentos na infra-estrutura do consumo coletivo leva grandes parcelas da população a viver num estado de emergência permanente, onde as emergências, a urgência, suscitam conselhos preventivos das autoridades num ritmo contínuo. E o 'não-cumprimento' dos conselhos acaba colocando o peso da responsabilidade sobre as vítimas das emergências. Exemplos incluem os casos das epidemias de dengue e cólera. Quando as epidemias já se fazem presente, as autoridades aconselham a manter tampados os receptáculos de água ou a pingar na água gotas de cloro. Qualquer protesto sobre o sistema de abastecimento de água é rechaçado com a questão de urgência. A discussão sobre o tratamento e a distribuição da água é adiada para depois.
O impasse que modifica nossos olhares
A partir dos anos 80, ganharam nitidez os sinais de uma mudança na conjuntura mundial, denominada globalização ou nova ordem mundial. Os grupos dominantes do Primeiro Mundo (multinacionais, Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial) já desenvolvem políticas que apontam para uma crescente desindustrialização dos países periféricos, cujos resultados mais aparentes seriam uma queda quantitativa na produção e uma crescente obsolescência tecnológica destes parques industriais. Os países do chamado Terceiro Mundo perderiam as vantagens comparativas para atrair capitais externos, pois as novas tecnologias apontariam para uma substituição das matérias-primas tradicionais. Ao mesmo tempo, haveria uma degradação crescente dos termos de intercâmbio e de valor da força de trabalho desses países do Terceiro Mundo (Valla, 1994a; Garcia, 1991). Dentro deste quadro, aponta-se para uma intensificação da retirada do Estado, não somente da economia, mas também das suas responsabilidades sociais.
Parece importante situar este processo dentro de um quadro histórico da América Latina, onde a defesa dos pobres quase nunca foi uma política governamental, e hoje esta capacidade é quase inexistente nestes países. A dificuldade crônica de os governos latino-americanos recolherem impostos e usarem bem os recursos arrecadados acaba por contaminar as atividades sociais, como educação e saúde.
A tendência desta nova ordem mundial é o deslocamento da produção para zonas de alta repressão e baixos salários, produção dirigida aos setores privilegiados na economia global. Assim, uma grande parte da população mundial poderia tornar-se supérflua para a produção, e até para o mercado (Weffort, 1991).
A proposta hegemônica entre os que se preocupam com a qualidade e quantidade dos serviços básicos, e, portanto, com o destino do dinheiro público, é a de fazer reivindicação e pressão sobre os governantes (Valla, 1994b). Embora se julgue que tal proposta continua sendo necessária, e que todo governo somente atua sendo 'empurrado', o que se observa em quase toda a América Latina é uma certa perplexidade quanto aos resultados obtidos. O rígido controle fiscal exercido pelo Governo Federal, e conseqüentemente pelos estados e municípios, ao lado do forte monitoramento do FMI e do Banco Mundial sobre as contas brasileiras, geram um ambiente de penúria. E os governantes contam com estes limites para ignorar as reivindicações dos setores organizados da sociedade civil de caráter popular.
Outra fonte de perplexidade de políticos, intelectuais e profissionais de educação e saúde é a natureza do Estado provedor (Moisés, 1985). A baixíssima qualidade de vida de uma grande parte da população brasileira justifica em grande medida a noção do Estado provedor. Nada mais justo do que exigir serem os impostos devolvidos à sociedade, sob a forma de serviços públicos de qualidade. Propor que o poder público ofereça menos do que isso é propor que as condições mínimas de vida não sejam garantidas para toda a população. Mas é possível também questionar se a maneira de o Estado oferecer os seus serviços ao público é sempre benéfica ao mesmo. A medicalização do fracasso escolar é um exemplo que ilustra bem este ponto (Collares & Moysés, 1985; Moysés et al., 1986; Valla & Hollanda, 1989).
A recente epidemia de cólera no Peru, por exemplo, teve como desfecho uma surpreendentemente baixa taxa de mortalidade, mas muito mais em função da iniciativa dos grupos populares do que dos investimentos do governo. Simbolicamente denominado 'duplo caminho peruano', este movimento cobrou do governo sua responsabilidade, e, ao perceber que o governo não respondia com os recursos necessários para combater adequadamente a epidemia, implementou uma política própria de mutirão para salvar os atingidos (Valla, 1994b; Valla, 1997b; Renya & Zapata, 1991). O 'duplo caminho' não abre mão da reivindicação como política, mas questiona essa 'via única' nesta conjuntura de globalização.
Em última instância, discute-se a possibilidade de um caminho complementar ao das reivindicações e demandas por uma melhor distribuição do dinheiro público. Não porque tal política não seja justa e legítima, mas porque pode não ser a única estratégia. A contradição posta pela crise do Estado provedor é justamente a de que enquanto alguns estados não contam com recursos suficientes para garantir serviços de qualidade para suas populações (alguns países africanos, por exemplo), outros, como o Estado brasileiro, embora contando com os recursos, não se dispõe a gastá-los suficientemente na direção das políticas públicas (Fernandes, 1994).
O sacrifício que está sendo imposto a milhões de pessoas reabre a discussão acerca de não serem os problemas sociais apenas questões do Estado. A crescente oposição no mundo a uma intervenção maior do Estado indica não ser mais possível confiar apenas ao governo a tarefa de solucionar os problemas sociais. E o crescente interesse no fortalecimento da sociedade civil passa pela crença e pela experiência de ser a sociedade mais flexível, disponível e aberta às pessoas comuns, à vida cotidiana, do que o Estado (Wolfe, 1991).
Necessariamente, a formação do mundo neoliberal excludente "cria novas 'autonomias' na base da sociedade e remete para a construção de um outro mundo, com um novo tipo de consciência social, estimulada pela solidariedade, que se traduza em atos concretos vivenciados pelas pessoas no seu cotidiano" (Genro, 1997: 3).
Independentemente da conjuntura atual de políticas neoliberais no Brasil e da conseqüente crise na área de saúde, há uma questão anterior, comum a alguns países da América Latina. Trata-se do compromisso formal dos governos de garantirem assistência médica universal e gratuita às populações. Em havendo condições mínimas de higiene e alimentação, a tendência é menos crianças morrerem antes de completarem um ano, e mais adultos ultrapassarem a idade de 65 anos. E, justamente por serem mínimas as condições de higiene e alimentação, os problemas de saúde consomem ainda mais os recursos disponíveis da área de saúde pública. No caso do Brasil, tal quadro se agrava pelos baixos salários e as precárias condições de trabalho dos profissionais de saúde, que os levam a deixar o serviço público. As longas filas que se formam, tanto nos centros de saúde, nas madrugadas, como as de toda hora nos hospitais públicos, criam uma situação onde a 'escolha de Sofia' passa a ser freqüente.
Um problema que atinge milhões de brasileiros, por exemplo, são as múltiplas expressões de saúde mental, desde a 'ansiedade' da classe média até o que as classes populares chamam de 'problema de nervos'. Dados recentes da Argentina indicam que mais de 50% dos medicamentos consumidos pela população são psicofármacos (Bermann, 1995). É de perguntar se, mesmo o sistema de saúde no Brasil funcionando bem, seria possível atender todos esses de maneira adequada.
Em face desse quadro, é necessário trabalhar para que setores da sociedade civil, preocupados com a saúde no Brasil, organizem-se e demandem mais investimentos dos governantes.
Essa profunda crise deve estimular reflexões e proposições capazes de redimensionar as relações entre Estado e sociedade, particularmente para favorecer a ampla maioria excluída dos benefícios da riqueza e do bem-estar. Stotz chama atenção para a urgência de superar a mera defesa do papel do Estado em prover diretamente ou em regular a oferta privada (contratada ou autônoma) de serviços. Para que tais serviços contemplem de fato as necessidades sociais das populações, precisam levar em conta, obrigatoriamente, o que as pessoas pensam sobre seus próprios problemas e que soluções espontaneamente buscam. A história nunca começa com o contato dos profissionais dos serviços com as suas clientelas. A história é anterior: há um passado que ainda vive, em sua virtualidade, no presente e está referido às experiências acumuladas em uma gama amplamente diversificada de alternativas, bem como às lutas moleculares ou coletivas que enraízam formas de pensar e agir. É esta experiência que precisa ser resgatada pelos serviços, pelos profissionais, técnicos e planejadores (Valla & Stotz, 1997).
Neste sentido, qual seria o procedimento dos profissionais nas suas idas à população trabalhadora dentro de uma proposta de 'construção desigual do conhecimento'? Como garantir a lógica do resgate da dívida social juntamente com as medidas a serem seguidas no combate ao dengue, por exemplo?
Com certeza, haveria a necessidade de um tipo de investigação a envolver profissionais e classes populares, pois trata-se de descobrir a 'ponte' que permite chegar à construção desigual do conhecimento, desigual significando as histórias de vida e condições materiais de existência de cada participante.
Um dos eixos desse questionamento é o do repasse de informações às classes populares. Há um acúmulo de conhecimentos resultante da pesquisa científica, de um lado; e há um acúmulo de conhecimentos resultantes das experiências de vida, escolarização e luta políticas dos setores organizados da sociedade civil, do outro. É possível um repasse? É como se o profissional estivesse dizendo: Dos meus conhecimentos científicos, que parcelas interessam àqueles sem proteção contra as doenças que eu estudo? E não seria necessário eu saber como estes setores constroem seu conhecimento para assim poder fazer uma seleção dos conhecimentos com os quais eu trabalho?
Onde estaria a ponte entre o transmissor e o receptor? Há apenas transmissor e receptor em mão única, ou a mão é dupla? Qual é a finalidade dessa discussão? É conhecer a realidade das classes populares para poder facilitar a transmissão, ou é mais do que isso? A questão é a de facilitar, simplificar a mensagem, ou é a de permitir a construção de um outro conhecimento, resultado de uma relação desigual das duas partes? A resposta parece ser: é necessário completar uma equação capenga que, freqüentemente, inclui apenas uma das partes do conhecimento, a do mediador (Valla, 1997c).
Na realidade, a conjuntura atual assinala para o que parece ser um impasse. Impasse do ponto de vista do processo de globalização e impasse do ponto de vista dos setores organizados da sociedade civil de caráter popular lograr avanços através da participação popular nos moldes acima. A perplexidade inclui uma preocupação com a dimensão gigantesca do problema, e também o reconhecimento do compromisso de fazer algo, apesar da debilidade da sociedade civil. Talvez esta sensação de estar 'batendo em ponta de faca' seja o sinal de que a discussão chegou a um certo impasse. Reivindicar uma política mais coerente dos governantes é necessário, mas talvez haja outras dimensões do problema. É possível, também, que as categorias utilizadas para discutir os trabalhos de educação popular, saúde comunitária e participação popular sejam inadequadas, pois "é comum confundir a questão que nós elaboramos com o método que utilizamos para obter a resposta...(e) a maneira em que se formula uma questão determina em que direção se busca a resposta" (Cassell, 1976: 46).
Será que o impasse ocasionado pela conjuntura de globalização e os parcos ganhos dos movimentos sociais é que motivam a busca de uma nova discussão teórica? Será que novos olhares sobre a mediação entre profissionais e as classes populares incentivam novas buscas? Toda crise, porém, permite que janelas até agora fechadas sejam abertas, e que, uma vez aberta a janela, seja possível ver o que antes não se enxergava.
Revendo as relações entre os mediadores e as classes populares: a crise de interpretação é dos mediadores
Vários estudiosos vêem muitas contradições nas relações entre profissionais e classes populares, mesmo quando o profisssional é um mediador aliado (Nunes, 1989; Chauí, 1990; Martins, 1989; Cunha, 1995; Rodrigues, 1992). Há uma premissa de que os mediadores de formação universitária e técnica costumam ter dificuldade em interpretar a fala e o fazer das classes populares de maneira apropriada.
A questão parece ser importante, pois a própria composição da participação popular com muita freqüência inclui as classes populares e os mediadores. Ou seja, a própria idéia implícita de participação popular é posta em questão, uma vez que as reivindicações a nortear as manifestações não são necessariamente iguais entre os participantes. Tais questionamentos, juntamente com os da conjuntura de nova ordem mundial, contribuem para se considerarem problemáticas as relações entre os profissionais, mediadores, educadores - geralmente progressistas - e as classes populares, em virtude de dificuldades de compreensão por parte dos primeiros.
A abordagem de participação popular apresentada no início deste trabalho continua servindo para se compreenderem as desigualdades da sociedade brasileira. Mas, do ponto de vista de quem se preocupa em desenvolver trabalhos com as classes populares, esse é um assunto, nas palavras de Nunes (1989:77) freqüentemente "resolvido de antemão", já que torna-se "ocioso (...) perguntar-se sobre a gênese e o significado do conteúdo das reivindicações sociais, porque já sabemos, a priori, que elas são o resultado inelutável da dinâmica global da cidade capitalista e que expressam equipamentos necessários à reprodução da força de trabalho e, portanto, à reprodução do capital (...). Deste ponto de vista, quem sofre as necessidades não tem papel ativo em determiná-las como tal (..). Respostas a essas questões não podem sair de 'conceitos sem vida'. Têm de ser pesquisadas (...). Tornam-se, praticamente pontos de partida absolutos para os processos de reivindicação urbana das classes populares, às quais são compelidos a responder" (Nunes, 1989:78).
Na compreensão da Cunha (1995), é como se as classes populares se organizassem e reivindicassem a solução dos seus problemas apenas se houvesse 'um vácuo do Estado'. Assim, as classes populares não teriam autonomia, seus movimentos estariam presos a um Estado que não cumpre com suas obrigações e a mediadores que percebem quais são as reivindicações 'corretas'.
Juntamente com Cunha, é necessário questionar a idéia de que as classes populares se organizam, em grande parte, desde o chamado vácuo do Estado, pois isso implicaria aceitar a premissa de que os pobres confiam nos governantes, acreditam em suas promessas.
Para alguns estudiosos, há uma tendência, ou por formação acadêmica, ou por orientação política, de lhes ler as falas e as ações segundo a categoria carência. Se a pobreza e a miséria se prestam a reforçar o uso desta categoria, outros intelectuais pensam que tal leitura pode freqüentemente empobrecer as análises. Chamam atenção para uma outra categoria - a de intensidade - que traz em si a idéia de iniciativa, de lúdico, de autonomia (Saidón, 1991; Almeida, 1995).
Rodrigues (1992) dá como exemplo de intensidade, o caso dos 'surfistas' dos trens no Rio de Janeiro. Pela categoria carência, o passageiro estaria em cima do trem, ou por falta de dinheiro, ou porque o trem está lotado. Entrevistas posteriores têm demonstrado que o 'surfista' pode pagar a passagem e que havia vagas no trem escolhido. Carência ou intensidade?
Na mesma linha de raciocínio, Nunes (1989: 79) salienta que "a elevação da taxa de mortalidade infantil, por exemplo, ocasionada pela contaminação do lençol freático das periferias e da presença de esgotos a céu aberto, não determinaria, por si, a elaboração subjetiva da carência de equipamentos de saúde e saneamento, ainda que esta taxa viesse a chocar profundamente os técnicos da Organização Mundial de Saúde ou de uma secretaria de estado (...) é necessário que haja uma atividade do sujeito no sentido de elaborar seu sentimento originado dessa vivência, sem o que não existirá carência alguma".
A dificuldade dos mediadores (profissionais, técnicos, políticos) de compreender o que os membros das chamadas classes subalternas estão lhes dizendo se relaciona mais com a postura do que com questões técnicas como, por exemplo, lingüísticas. Relaciona-se mais com a dificuldade em aceitar que pessoas humildes, pobres, moradoras da periferia sejam capazes de produzir conhecimento, sejam capazes de organizar e sistematizar pensamentos sobre a sociedade, de fazer uma interpretação capaz de contribuir para a avaliação dos mediadores sobre a mesma sociedade.
Parte da compreensão do que está sendo dito também decorre da capacidade dos mediadores de entender quem está falando. Com isso, quer-se dizer que dentro das classes subalternas há uma diversidade de grupos (Martins, 1989), e a compreensão deste fato passa pela compreensão das raízes culturais, dos locais de moradia e das relações desses grupos que acumulam capital.
Na realidade, essa discussão - que não é nova no campo de educação popular - trata das dificuldades de profissionais e políticos interpretarem as classes subalternas. A crise de interpretação é nossa, assim como também é o enfoque da idéia de iniciativa. Muitos profissionais trabalham com a idéia de que iniciativa é parte da tradição dos mediadores, e que a população falha neste aspecto, fazendo com que ela seja vista como passiva e apática.
Os profissionais e a população pobre não vivem a mesma experiência da mesma maneira. A forma de trabalhar dos profissionais (nos serviços de saúde, no partido político, na associação de moradores, nas igrejas) pode não estar levando isso em conta, principalmente porque o projeto dos profissionais costuma ser anterior ao contato com a população.
O trabalho de que o profissional de saúde pública desenvolve com a população das favelas e bairros periféricos serve como exemplo. Toda proposta dos sanitaristas pressupõe a previsão como categoria principal, pois a própria idéia de prevenção implica um olhar para o futuro. Mas poderia ser levantada a hipótese de que estes setores da população conduzem suas vidas com a categoria principal de provisão. Com isso quer-se dizer que a lembrança da fome e das dificuldades de sobrevivência já enfrentadas leva seu olhar principal a se voltar para o passado e se preocupar em prover o dia de hoje. Uma idéia de acumulação, portanto. Assim, a proposta da previsão estaria em conflito direto com a da provisão (Valla, 1996).
Talvez a concepção de igualdade dos saberes dos profissionais e da população contenha a idéia de que o saber popular copia o dos profissionais. Se a referência para o saber é o do profissional, isso dificulta a chegada ao saber do outro. Os saberes da população são elaborados sobre a experiência concreta, sobre vivências, distintas daquelas do profissional. O profissional oferece seu saber porque julga o da população insuficiente, e, por esta razão, inferior, quando, na realidade, é apenas diferente.
Uma moradora de favela carioca declara: "Quem visse o que eu já tive em Minas...minha vida está boa sim" (Cunha, 1995:3). Numa outra favela do Rio de Janeiro, um líder comunitário comenta: "Não tem mais problema, pois nossa favela já recebe água duas a três vezes por semana". Ao ouvir essas falas, a tendência dos profissionais é de as considerar conformistas. Cabe destacar aqui a necessidade de entender melhor as "falas como a da moradora e as alternativas de condução de vida", que têm seu ponto de partida na "leitura e representação de uma história, referenciada em sua experiência de vida e que...oriente sua forma de estar no mundo" (Cunha, 1995:8).
O que, freqüentemente, para o profissional é conformismo, pode ser para a população uma avaliação rigorosa dos limites de melhoria. Nesse mesmo sentido, há estudiosos da questão de participação popular que entendem que, embora haja profissionais preocupados com a necessidade de a população organizar-se e reivindicar seus direitos e serviços básicos de qualidade, na realidade a tradição dominante no Brasil é a do convite das autoridades para que a população tenha uma participação mais freqüente, pois querem a participação da população para poder solucionar problemas dos quais não dão conta. Nesta concepção está incluída a idéia de que a aceitação do convite de participar seria uma forma de legimitação dos governos. Justamente a descrença da população, tal como manifestada acima pela liderança da favela, faz com que sua forma de participar seja diferente do que a suposta pelo convite dos governantes. E embora muitos profissionais sejam sinceros na intenção de colaborar para uma participação mais efetiva e de acordo com os interesses populares, é possível a população encarar estes profissionais como sendo submissos às propostas das autoridades, em quem freqüentemente não crê. Daí sua aparente falta de interesse em participar.
É necessário que o esforço de compreender as condições e experiências de vida, como também a ação política da população, seja acompanhado por uma maior clareza das suas representações e visões de mundo. Se não, corre-se o risco de procurar (e não achar) uma suposta identidade, consciência de classe e organização que, na realidade, é uma fantasia do mediador (Martins, 1989).
Quantas vezes os mediadores pedem para a população se manifestar numa reunião, como uma prova de seu compromisso com a 'democracia de classe média'. Mas, uma vez passada a fala popular, procuram voltar 'ao assunto em pauta', entendendo que a fala popular foi uma interrupção necessária, mas sem conteúdo e sem valor.
Segundo Martins (1989), as muitas dificuldades de pesquisadores, políticos, militantes e profissionais compreenderem a fala da população têm como uma das explicações a percepção que se tem do tempo. E o reconhecimento de percepção do tempo das classes subalternas permite explicar, em parte, sua diversidade. O desconhecimento desta diversidade é que faz com que a compreensão das suas lutas e seus limites não sejam apreciados (Martins, 1989). Não é o desejo, nem o incentivo verbal, que garantem a suposta unidade das classes subalternas, mas a maneira de compreenderem o mundo: "...a prática de cada classe subalterna e de cada grupo subalterno, desvenda apenas um aspecto essencial do processo do capital (....). Há coisas que um camponês, que está sendo expropriado, pode ver, e que um operário não vê. E vice-versa" (Martins, 1989:110).
A atribuição da identidade, da consciência e da organização da classe operária às demais classes subalternas produz uma forte distorção. Quando se utiliza este tipo de avaliação para outros grupos sociais, como, por exemplo, para os camponeses, a impressão que se tem é de que o processo histórico anda mais rápido para os demais do que para o camponês. Essa visão foi o que levou Lenin a declarar durante a primeira fase da Revolução Russa que "o real (...) não é o que os camponeses pensam (...) e sim o que depreendem das relações econômicas da atual sociedade" (Lenin, 1980:83). Nesta perspectiva, o agente ativo da História acaba sendo o capital e não o trabalhador. Em outros termos, a "História está necessariamente em conflito com a consciência que dela têm os seus participantes" (Martins, 1989: 103).
Neste sentido, pode-se levantar a hipótese de que, tal como Martins nos alerta para perceber como a relação do camponês com o capital é diferente da relação deste com o operário, também é diferente a relação do capital com o morador de favela ou bairro periférico da grande metrópole (biscateiro, desempregado, subempregado, empregado de serviços).
Está implícita nessa discussão a percepção de que a forma de o trabalhador exprimir sua visão de mundo e sua concepção da história e da sociedade em que vive está relacionada com a sua maneira de se relacionar com o capital: de forma dinâmica, ou de forma indireta e oscilante.
Esta maneira de colocar a questão temporal parece fundamental, pois quando a percepção de tempo for baseada na relação do operário com o grande capital, pode-se ter o resultado de ver o camponês, ou o morador da periferia, como sendo 'incapaz' e 'necessitado' de ajuda para tornar-se capaz. É necessário tomar como premissa "o pensamento radical e simples das classes exploradas, meio e instrumento (ao invés de instrumentalizá-las), para desvendar o lado oculto das relações sociais com os olhos deles, revelando-lhe aquilo que ele enxerga mas não vê, completando, com ele, a produção do conhecimento crítico que nasce da revelação do subalterno como sujeito" (Martins, 1989:125).
Com o seu grande poder de síntese, Gramsci indicou esta questão quando escreveu "...o elemento intelectual 'sabe', mas nem sempre compreende, e muito menos 'sente' " (Gramsci, 1978:243).
É possível que um dos grandes problemas para os profissionais, pesquisadores e militantes seja a forma com que as classes subalternas encaram sua vida, sua existência cercada de pobreza e sofrimento. É bem provável que estes setores da população tenham enorme lucidez sobre sua situação social, e enorme clareza de que a esperança de uma melhoria significativa seja ilusão. A crença em melhorias e soluções mais efetivas pode ser apenas um desejo, embora importante, da classe média comprometida. Isso significaria que a percepção da população seria mais lúcida e realista, a não ser que se configure uma conjuntura com indicações de possibilidades reais de mudança que favoreça as classes subalternas.
Se a argumentação acima procede, então é possível que a relação que os profissionais estabelecem freqüentemente com a população seja de cobrança de uma sobrevivência mais racional e eficiente (Evers et al., 1985). No entanto, a frase tão conhecida dos Titãs pode estar indicando, uma outra visão: "A gente não quer só comer. A gente quer prazer para aliviar a dor". Assim, a construção de aparências, que pode ser entendida como a construção de sonhos, não deve ser vista apenas como uma forma de escapar da realidade, podendo ser sinal de uma concepção mais ampla de vida.
"Prazer para aliviar a dor", então, pode tomar vários sentidos para a população, distintos daqueles da classe média. Um dos sentidos é o de que a vida vale a pena de ser vivida, mesmo sob uma perspectiva em que não se pode vislumbrar uma saída no futuro para o sofrimento e a pobreza diários. Se, de um lado, este enfoque pode ajudar a compreender por que é possível "passar fome para comprar uma TV (...) o êxtase com o futebol (...) com o alcoolismo (...) os jogos de azar", e também ajuda a entender por que "as religiões se oferecem muitas vezes como perspectivas substitutivas (compensação no além (...) os eleitos do Senhor=consciência substitutiva de elite (...) acesso a um mundo de protetores, transferência estática a um outro cosmo)" (Evers et al., 1985:129-130).
A cultura das classes subalternas é uma tentativa de explicar esse mundo em que se vive. Se, no entanto, não dá conta de explicar tudo (e daí a razão de se recorrer à mágica), tampouco a ciência explica tudo (Martins, 1989). Como expressão dos vencidos, a cultura popular é também a "memória da alternativa (...) uma exigência, sempre postergada e longínqua, da realização de justiça" (Chauí, 1990:63). Satriani oferece a idéia de que a cultura popular, para poder se afirmar neste mundo do vencedor, utiliza a duplicidade, o duplo código: "...o afirmar e o negar, o obedecer e o desobedecer" (Martins, 1989:115), "o ajustamento aos valores dominantes e a sua rejeição; interpretações lúcidas combinam-se com ilusões aparentemente alienadas" (Evers et al., 1985:130); "...um inconformismo profundo (...) sob a capa do fatalismo" (Chauí, 1990:70). Um estilo de vida que "se manifesta na linguagem metafórica, na teatralização que põe na boca do outro o que é palavra do sujeito emudecido" (Martins, 1989:115-116).
Martins (1989:111) sugere que a cultura popular "deve ser pensada como (...) conhecimento acumulado, sistematizado, interpretativo e explicativo (...) teoria imediata". Neste sentido, o aparente absurdo para o profissional tem uma lógica clara para a população. Numa sociedade onde a concepção dominante é a de que cada um é exclusivamente responsável por sua saúde e a dos seus filhos, mas onde também se aprende que Deus é quem decide sobre a morte das crianças, o suposto conformismo da mãe pode estar representando uma elaboração de um conhecimento mais complexo. Se, por exemplo, o nascimento de um filho representa um dos bens mais preciosos, aceitar a culpa por sua morte pode ser uma experiência insuportável. Mas, já que Deus quer assim, a culpa, que é então partilhada com alguém, não é responsabilidade exclusiva da mãe.
Chauí (1990:116) observa, no mesmo espírito, o desespero do arquiteto do bairro operário, em face do "caos espacial" onde ficou "a horta no lugar do jardim, pelas cores espevitadas das fachadas, pela confusão entre calçada e quintal". Como observou José Carlos Rodriguez, não há interesse em aceitar o convite de participar dessa forma. Assim, a destruição do planejado seria uma forma de recusá-lo.
Talvez seja muito difícil os profissionais/ mediadores admitirem a cultura popular como uma teoria imediata, isto é, um conhecimento acumulado e sistematizado, a interpretar e explicar a realidade. A formação escolarizada da classe média, e mesmo daqueles profissionais que agem como mediadores entre os grupos populares e a sociedade (através de partidos políticos, ONGs, igrejas, sindicatos) freqüentemente os leva a negar conhecimento produzido, também, pelas classes subalternas. Assim, mesmo que alguns mediadores sejam mais atenciosos e mais respeitosos com as pessoas pobres da periferia, os muitos anos de uma educação de classe, preconceituosa, fazem com que o papel de tutor predomine nas suas relações com as classes populares.
Conclusão
O aparente impasse entre os movimentos populares e as autoridades pode servir como uma oportunidade de reflexão sobre o próprio termo participação popular. Na atual conjuntura, é como se não houvesse o que negociar, pois, para a maioria dos governantes, decide-se o orçamento segundo linhas alheias ao dia-a-dia do brasileiro comum: dívidas externa e interna, manutenção de inflação baixa e juros altos. Os Conselhos Municipais de Saúde, com poucas exceções, estão incluídos nesta avaliação.
A relação dos mediadores com as classes populares levanta a seguinte discussão: será que as reivindicações, contidas em muitas manifestações populares, correspondem ao desejo das classes populares? Diante da franca possibilidade de haver uma crise de interpretação dos mediadores, é necessário rever a própria conceituação de participação popular.
Se, na perspectiva popular, a política e os políticos merecem pouca confiança, não seria surpreendente constatar que grandes parcelas das classes populares não acreditam em mudanças através do caminho parlamentar ou através de negociação com as autoridades.
Tal constatação parece corresponder à realidade brasileira. E se significa, de um lado, que as manifestações populares como já se conheciam na década de 80 não se desenvolvem mais, de outro, pode também significar que a participação popular possa desenvolver-se de outra forma.
Na atual conjuntura, entre as várias propostas de participação popular, duas tendências parecem despontar, e ambas tendem a rejeitar a definição clássica de participação popular: uma mobilização de cidadãos que procuram obrigar os governantes a sentar na mesa para negociar as reivindicações populares. Uma tendência seria a de insistir no trabalho popular segundo a idéia de mutirão, de apoio mútuo, de solidariedade. Muitas vezes desenvolvida em torno de igrejas, ONGs e associações de moradores, essa tendência representa a pouca esperança de que os políticos brasileiros venham a levar em conta as necessidades das populações pobres.
A outra tendência, que tem no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) a liderança, abre uma nova perspectiva de canal de negociação. Tanto o MST, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, trabalham com a concepção de que somente acontecimentos consumados - ocupações de terras particulares ou públicas, mas em desuso para fins de agricultura, ou a ocupação para fins de moradia de prédios públicos desativados - representam uma negociação de fato.
Num certo sentido, as duas tendências representam propostas de mutirão, tendo a segunda um projeto político explícito. Mas as iniciativas populares das duas tendências indicam, como o afirma Starn (1991), que não há apatia na parte das classes populares, mesmo em tempos de calma.
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