RESENHAS REVIEWS
POLÍTICAS PÚBLICAS, JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E INOVAÇÃO: SAÚDE E SANEAMENTO NA AGENDA SOCIAL. Nilson do Rosário Costa. São Paulo: Editora Hucitec, 1998, 173 pp.
ISBN 85-271.0446-6
Tendo como objeto de trabalho as políticas nacionais de saúde e saneamento, Costa analisa o desenvolvimento institucional e o impacto das políticas públicas na oferta de serviços sociais para as cidades brasileiras durante as décadas de 70 a 90, buscando compreender como os arranjos institucionais e as comunidades de especialistas contribuem para a definição de agendas políticas específicas.
O autor assume a hipótese de que a "emergência de certas posições intelectuais nem sempre está referida a disputas na distribuição de poder na arena científica, mas motivada pela busca de argumentos eficientes para alterar o julgamento da sociedade (ou das elites) sobre instituições e crenças" e "induzir mudanças na forma de ação coletiva" (Costa, 1998:15). Neste sentido propõe-se a fazer uma releitura dos estudos relativos à política social brasileira dos anos 70, analisando as formas organizacionais, os arranjos decisórios e as comunidades de especialistas. Enfatiza a acentuada expansão dos programas sociais e a capacidade de a ação governamental oferecer alternativas aos mecanismos de mercado. O estudo não ratifica as conclusões disponíveis - que alimentam o senso comum do pensamento conservador contemporâneo - sobre a inefetividade e a natureza residual e improdutiva das políticas sociais brasileiras. Segundo o autor, a aceitação destas crenças cognitivas, ampliada pela assimilação da agenda da reforma do Estado definida por organismos internacionais, tem-se corporificado em propostas de dissolução das estruturas institucionais criadas nas décadas de 70 e 80.
A análise das políticas públicas de saneamento e de saúde adota, como base teórica, o enfoque neo-institucionalista. Sua contribuição para a análise das políticas públicas, assim como para a crítica ao Estado-instrumental, é trabalhada no primeiro capítulo. Este enfoque ressalta as interações entre interesses e instituições de modo diverso do pluralista, segundo o qual escolhas e decisões políticas resultariam apenas da disputa e negociação entre grupos competitivos. A estrutura institucional define canais e mecanismos por meio dos quais novas idéias são incorporadas à agenda e concretizadas em políticas.
Nesta abordagem, a institucionalidade - as tradições políticas, as regras estabelecidas para a ação dos atores - conforma um contexto estimulante, restritivo ou de possibilidades de mudanças. Desta maneira, os interesses sociais dominantes não são diretamente traduzidos nos resultados dos processos políticos. Eles são modificados, filtrados pela maquinaria do sistema político que cunha as ações dos atores (Mayntz & Scharpf, 1995; Windhof-Héritier, 1996).
Sem negar os aspectos de dominação do Estado, Costa sintetiza as contribuições de autores neo-institucionalistas: "A configuração institucional do Estado, junto com as normas subjacentes às suas atividades, afetam a cultura política, encorajam a ação de grupos e ações coletivas e possibilitam que certos issues apareçam na agenda pública" (Costa, 1998:23).
Por sua vez, ao analisar teoricamente as possibilidades de intervenção efetiva do Estado em áreas específicas, assinala a importância de considerar o Estado também como ator corporativo. Políticas públicas efetivas seriam dependentes: da constituição de aparatos burocráticos estatais com suficiente coerência corporativa, do grau de autonomia aos interesses dominantes e da capacidade de insulamento diante dos interesses em competição. Deste modo, o Estado é visto também como organização por meio da qual "comunidades de especialistas podem perseguir metas específicas, realizando com alguma efetividade certos recursos estatais" (Costa, 1998:24).
Para o autor, as orientações das comunidades de especialistas - cuja principal fonte de poder é sua autoridade na aplicação de conhecimento técnico científico para a formulação de políticas - tendem a maximizar sua influência quando sustentadas por organizações internacionais. Esta influência deu-se de forma diferenciada para as políticas de saúde e saneamento. Na saúde, uma série de inovações institucionais apoiou-se em propostas difundidas por organismos internacionais. Tal desenho teórico embasa a crítica do autor aos estudos realizados no pós-64 (em particular, o período de 1964 a 1973) - os quais trabalharam o papel do Estado na produção de políticas governamentais como condicionado pelas preferências das classes dominantes - e leva-o a relativizar a idéia de que as políticas sociais no Brasil ter-se-iam desenvolvido exclusivamente como decorrência dos interesses da acumulação.
Costa sugere diferentes motivações para o desenvolvimento das políticas sociais - entre estas, a difusão de paradigmas internacionais, a ação coletiva de classes e grupos sociais - e variações no trato da questão social durante o período de instauração e crise do regime autoritário. Diferencia três conjunturas no tocante às políticas sociais: a de 1964-1973, período de normalização econômica e de regressão social, quando foram impostas grandes perdas às populações assalariadas urbanas; a de 1974-1985, de redefinição e expansão dos investimentos sociais, visando ampliar as bases de apoio e contrapor-se à anunciada crise de legitimação do regime; e a de 1986-1990, quando foram feitas tentativas de democratização dos processos de tomada de decisão e de reinstitucionalização das políticas de proteção no contexto do "resgate da dívida social" (Costa, 1998:30).
A literatura sobre as políticas sociais do regime autoritário ter-se-ia restringido ao exame das variáveis presentes na primeira das três conjunturas, argumento que o autor desenvolve no segundo capítulo e orienta a sua releitura do período. As análises sobre os rumos das políticas sociais no pós-64 não teriam tomado em conta os aspectos de exclusão da cidadania social construída no período populista: cidadania corporativa, a qual determinou por longo tempo que a "noção de público ficasse confundida com as instituições sociais de acesso restrito às categorias profissionais participantes do pacto populista" (Costa, 1998:38).
Os estudos efetuados no período privilegiaram a crítica ao processo decisório autoritário, o que teria obscurecido a apreensão da ampliação da agenda social, refeita em meados dos anos 70 pelo regime autoritário em razão de pressões externas e repercussões domésticas. Para o autor, o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento - PND respondeu às críticas ao processo de concentração de renda e, embora articulada à provisão privada, ampliou a cidadania social.
O autor alinha-se à produção teórica mais recente (anos 90), a qual mostra que, na 'década perdida' dos anos 80, o quadro de agravamento da pobreza foi contrabalançado pelo gasto social. Busca afirmar e demonstrar os aspectos de efetividade das políticas sociais e seu caráter não residual. Costa assevera que a ação pública não ocorreu de forma homogênea; dinâmicas institucionais diferenciadas de políticas setoriais específicas tiveram seu lugar. E é isto que procura demonstrar ao analisar a política de saneamento, em especial, durante os anos 80, apresentada no capítulo III.
Ao examinar os estudos realizados sobre o Plano Nacional de Saneamento Básico - Planasa (1970-1986), Costa chama a atenção para a pouca ênfase na análise e visualização dos arranjos complexos que possibilitaram certa capacidade resolutiva da política pública de saneamento durante os anos 80. O autor concorda com Jacobi quanto à política de expansão da infra-estrutura de água e esgoto ter sido movimento de resposta do Estado à deterioração das condições de vida da população. Costa vai mais além: tais políticas não tiveram caráter residual; constituíram-se "no mais dinâmico mecanismo de massificação do consumo de serviços sociais e combate à pobreza" (Costa, 1998:58). Nestes arranjos complexos, preponderou a comunidade epistêmica do saneamento. Esta teria traduzido o contexto favorável ao insulamento burocrático e à centralização da capacidade decisória do período autoritário, para expansão em larga escala das ações no campo do saneamento, dando ênfase aos aspectos de viabilidade financeira e racionalidade administrativa.
Contrapõe-se ainda, o autor, aos trabalhos que centraram sua crítica na política de auto-sustentação financeira dos sistemas de saneamento baseada no lucro. Salienta que apesar de à época ter havido consenso na comunidade de especialistas quanto à necessidade de auto-suficiência financeira, a definição de tarifas não obedeceu a uma lógica microeconômica de contabilidade, tendo sido fixadas normas federais que premiram os sistemas estaduais por definirem reajustes freqüentemente abaixo da inflação. Além disso, as tarifas foram diferenciadas segundo usuários e faixas de consumo, assegurando-se subsídios dos pequenos para os grandes consumidores. Este subsídios cruzados teriam ampliado a equidade do sistema ao transferir recursos dos municípios mais ricos para aqueles que não poderiam sustentar seu abastecimento.
Deste modo, não seria possível afirmar que os serviços de água e esgoto foram tratados como bens privados no mercado nem que, no caso do saneamento, a provisão de serviços de natureza social foi transferida para a empresa privada. A forte expansão da cobertura do abastecimento de água, por um lado, e o impacto positivo sobre alguns indicadores do estado de saúde, por outro lado, permitem contrabalançar as conclusões relativas à particularização das políticas sociais, sumaria o autor. Evidenciam como esta política pública foi resolutiva, embora centrada no abastecimento de água, apresentando desempenho medíocre na expansão das instalações sanitárias domiciliares e fracassando na equalização das assimetrias regionais e na incorporação dos grupos periféricos à comunidade de usuários.
Costa enriquece os estudos das políticas públicas brasileiras das últimas décadas agregando complexidade à análise. Contudo, por vezes analisa períodos longos, englobando conjunturas diferenciadas - a década de 80 como um todo ou as décadas de 70 e 80 juntas - o que lhe permite mostrar a eficácia e abrangência das políticas estudadas, mas enfraquece as críticas que direciona às análises de outros autores destas políticas no período do regime autoritário. Estudos realizados durante essa época ou logo após centraram seu foco no autoritarismo do regime e no fracasso à incorporação dos grupos sociais mais pobres.
O autor problematiza a atuação da Nova República ao analisar a política setorial no período. Concordando com Arretche (1995) em sua análise da política de saneamento, discute como as teses de inefetividade e perversidade das políticas sociais do regime autoritário levaram à fragmentação do processo decisório e à implosão de competências técnicas consolidadas desde os anos 70, tornando estas políticas dependentes de clivagens patrimonialistas e clientelistas. O diagnóstico da futilidade e baixa efetividade do gastos sociais era ratificado por organizações internacionais como o Banco Mundial.
Para os anos 90, Costa discute como a política de saneamento vai estar acoplada à discussão da 'reforma do Estado', tendo-se difundido a norma de mercado uma vez que o Estado não mais deveria estar ocupado na provisão direta de serviços, cabendo lhe o papel de regulação. A política de saneamento para os anos 90 assumiria assim "os itens usuais de orientação normativa para o mercado na área social (dos organismos internacionais) como a privatização, a descentralização e a flexibilização do modelo de gestão (e...) definiu uma oferta essencial (a ser universalizada), esfera da ação pública dentro da preocupação de preservar a dimensão de política social do saneamento" (Costa, 1998:84). Neste sentido, o autor mostra com propriedade como a formulação desta agenda para o setor corresponde a crenças técnicas difundidas por organismos internacionais em que "as especificidades setoriais ou institucionais são subsumidas à proposição lógica sobre a maior eficiência alocativa do mercado vis a vis-à-vis ao setor público" (Costa, 1998:85). A nova agenda corresponde ainda a um deslocamento da comunidade técnica do saneamento, passando a ser conduzida pelo horizonte da comunidade de economistas.
No capítulo IV são analisadas as mudanças de arranjo institucional e de agenda da política de saúde brasileira nos anos 80 e 90. Discussão esta iluminada pela releitura dos anos 70. Costa polemiza com Malloy (1985), cuja tese central defende que o caminho tomado pelo regime militar - implodindo o arranjo corporativo - seria o único possível para garantir a universalização. Esta tese teria implícita a crença "que os interesses organizados que mais acumulam recursos decisórios são por si só perversos" (Costa, 1998:93). Assim, a viabilidade da universalização estaria condicionada à destruição de tais recursos institucionais das corporações. Costa refuta esta concepção, lembrando que a experiência européia de concertação política - que forneceu precondições para sistemas de proteção social universalizantes - baseou-se essencialmente nas organizações de interesses corporativos.
Em sua análise, Costa trabalha com a hipótese de que a ampliação dos beneficiários da Previdência Social no pós-64, com a conformação de um universo pulverizado, teria levado a resultados inesperados de instabilidade dos arranjos institucionais. As clientelas incluídas através da extensão dos benefícios passaram a estabelecer relações difusas com os programas por não terem capacidade de intermediação de interesses, sendo incapazes de operar como base de legitimação da política.
Costa sugere que a perda de titularidade decorrente da incorporação da 'comunidade nacional' ao mercado consumidor do cuidado médico levou à fragilização institucional, tendo o setor perdido suas bases de sustentação: clientelas organizadas, burocracias especializadas, titularidade do financiamento. Assim, a ênfase com que os gastos com assistência médica foram responsabilizados pelo desequilíbrio financeiro do sistema durante a 'crise' previdenciária de 1981-83 seria reflexo das tensões entre os contribuintes do sistema previdenciário, as agências governamentais que velavam por estes vínculos e a expansão de assistência médica previdenciária para grupos que não contribuíam para a mesma. Igualmente, a crise estrutural do setor no início dos anos 90 poderia ser atribuída aos déficits de legitimação produzidos pelo desmantelamento dos arranjos institucionais anteriores.
Com base nesta matriz de análise, Costa indica que as propostas explicitadas pelo movimento da reforma sanitária desconsideraram os custos institucionais implícitos em tentativas de inovações políticas e a exigência de complexo jogo de negociações com os afetados para evitar o poder de veto.
Estes aspectos teriam sido pouco trabalhados nas análises das políticas de saúde do período autoritário, que centram sua crítica nos diagnósticos de privatismo, mercantilização e inutilidade da política social. Reforçando a sua tese da efetividade da política social brasileira, Costa enfatiza os aspectos de expansão de cobertura e universalização de clientelas por meio da incorporação de novos grupos populacionais à Previdência Social. Questão bem desenvolvida no estudo clássico de Oliveira & Teixeira (1986) sobre a Previdência Social brasileira. Assim, a agenda da universalização da proteção à saúde da década de 80 - transitando de um modelo de 'seguro de saúde' para o desenho da seguridade social - foi antecipada pelas mudanças nos critérios de elegibilidade da Previdência Social levadas a cabo no período autoritário.
O autor descreve a trajetória e examina em detalhe a política de saúde no período, ressaltando novos aspectos. Problematiza o processo de reforma setorial e salienta a grande inventividade da inovação política da reforma setorial dos anos 80 e 90, ao mesmo tempo em que aponta aspectos da fragilidade institucional da atenção pública à saúde.
Por um lado, destaca os avanços. Nos anos 80, diretrizes políticas eficazes para o setor foram apresentadas, tendo ocorrido a expansão do financiamento e a oferta de serviços de saúde pública e de mercado, o que não correspondeu aos efeitos das políticas de ajuste. O Sistema Único de Saúde corporificou a institucionalidade de novo padrão de proteção social. Por outro lado, discute problemas relacionados: às crenças normativas que embasaram a reforma sanitária; ao caráter propositivo das agências que conformaram o pólo da reforma; e às características das políticas distributivas, complexificando a análise do período.
A Reforma Sanitária teria sido fundamentada em frágeis crenças cognitivas normativas, relativas: i) à capitalização da medicina previdenciária; ii) ao juízo de que o modelo hospitalocêntrico não se adequava às necessidades de saúde da população e que estas poderiam ser satisfeitas por estratégias preventivas e simplificadas - reduzindo-se o entendimento das demandas sociais em saúde ao desconsiderar que estas incluem o cuidado hospitalar e de alta complexidade; iii) às virtudes democráticas de tudo o que estivesse relacionado à instância local, descentralizada, esquecendo-se que a "localização preferencialmente municipal de instituição de políticas de saúde representava, naquele contexto, uma enunciação de crença normativa sem referência à experiência concreta" (Costa, 1998:99).
O pólo de oposição conformado pela 'reforma sanitária' era constituído principalmente por 'organizações propositivas' - agências não executivas que "difundem novas idéias sobre políticas mas que pouco usufruem dos resultados diretos das mudanças de percepção normativa que provocam" (Costa, 1998:102). Estas agências apresentavam relação apenas tangencial com os benefícios substantivos que poderiam ser vetados em uma reestruturação da Previdência Social.
O autor salienta efeitos disruptivos dos processos de transição e problemas próprios de políticas distributivas ainda pouco trabalhados. No caso de políticas distributivas, a competição entre órgãos das três esferas governamentais é aguçada, os processos decisórios são pulverizados e a fluidez do universo de clientelas que tem acesso aos benefícios públicos sem custo torna frágil as bases de sustentação da institucionalidade destas políticas. Mostra como foram criadas condições consensuais para que agências públicas (hospitais universitários) e representações derivadas do sistema partidário (secretários municipais e estaduais de saúde) entrassem a custo zero no jogo setorial, usufruindo benefícios da redefinição dos gastos federais sem custo adicional para tais demandantes. Estes novos participantes entraram na arena setorial como free-riders, ampliando a oferta de benefícios para seus eleitores com custos institucionais muito baixos. Por sua vez, a opção de beneficiar todos os participantes, característica de política distributiva, explicaria a manutenção de incentivos fiscais aos gastos em saúde por pessoas físicas e empresas. Estes subsídios aos gastos privados sustentaram a ampliação do subsistema de mercado de atenção à saúde, pulverizando benefícios e levando a que, ao final dos anos 80, estivessem constituídos dois subsistemas de atenção à saúde no país.
Outrossim, Costa salienta que a expansão da cobertura de atenção à saúde e o salto quantitativo na oferta de serviços em todos os níveis de complexidade, desde os anos 70, fragilizam os argumentos de quem define a política de saúde como residual.
Ao discutir o problema do financiamento da saúde até hoje não equacionado e os fundamentos da crise financeira do setor, o autor aponta os equívocos de se considerar que a nova Constituição seria responsável por déficits incontroláveis nas contas do Tesouro. Costa lembra que, no processo de formulação de políticas, perdas e ganhos estão presentes no cálculo dos atores. Assim, organizações que representam grupos para os quais os custos substancialmente excedem os benefícios irão se opor à extensão do programa a outros grupos. Este é o caso do financiamento da saúde, que acabou por perder a fonte de recursos provenientes das contribuições sobre a folha de salários. Observa que a discussão sobre a falência da Seguridade Social no início dos anos 90, "explicitou as contradições do subsistema de saúde organizado para uma clientela difusa com custos concentrados na população contribuinte da arrecadação previdenciária" (Costa, 1998:114). E, embora os dados sobre a ameaça da Seguridade Social para o equilíbrio financeiro da Previdência Social fossem inconsistentes, o veto foi efetivado; as fontes da previdência foram especializadas. Deste modo, as demandas interburocráticas do setor saúde foram transferidas da arena previdenciária para a área econômica - Tesouro Nacional - fragilizando ainda mais o setor, e impondo, ao núcleo decisório do Ministério da Saúde, o papel de grupo de pressão em defesa de sua titularidade orçamentária.
Fechando a análise das políticas públicas de saúde e saneamento, Costa põe em foco a agenda do Banco Mundial para o setor saúde no Brasil. Observa que as agências supranacionais influem na definição de agendas políticas nacionais não apenas pela manipulação de 'incentivos materiais' (em geral coercitivos), mas, principalmente, pela "alteração das crenças substantivas das elites domésticas", de modo especial sobre "as funções do Estado ou meios e fins da economia". Expõe como o debate sobre as políticas governamentais tem sido condicionado pela difusão da pauta do 'ajuste estrutural' e que "durante os anos 80 a orientação para o mercado tornou-se a referência cognitiva das comunidades de especialistas e a base de legitimação discursiva das agências internacionais, especialmente para o tema da Reforma do Estado" (Costa, 1998:127). Em apoio a sua análise, emprega a noção de 'comunidade epistêmica' para referir-se ao papel assumido pelos especialistas nos processos de produção e difusão de crenças científicas. Esta, além da base de conhecimento comum, apresenta também comunalidades no plano normativo.
Na saúde, em meados dos anos 80, o Banco Mundial assumiu a liderança no desenvolvimento de uma agenda internacional e passou a aprovar projetos que pudessem apoiar seus interesses instrumentais ao ajuste estrutural. Seus especialistas apelam para a diminuição do papel do Estado e para o fortalecimento do mercado para financiar e oferecer cuidados de saúde.
As respostas nacionais às pressões para o ajuste estrutural, assim como para o setor saúde, são diversas. Dadas as especificidades dos diferentes países, Costa lembra não ser possível produzir interpretação única das repercussões do ajuste, o que é evidente para a América Latina nos anos 90. No Brasil, o Banco Mundial acompanhou a reforma do setor saúde centrando o seu diagnóstico na falta de focalização das políticas públicas de corte social - que não alcançariam atingir os mais pobres e cobrir a atenção básica - e na ineficiência da aplicação dos recursos setoriais. Costa alerta que afirmações arbitrárias tornaram-se orientações normativas eficazes. Conquanto esta avaliação do Banco Mundial não tenha sido fundamentada em pesquisas que comprovassem ineficiência das políticas sociais brasileiras em atingir os mais pobres, foi tomada como orientadora de políticas.
Embora os relatórios mais recentes do Banco Mundial - BM considerem a complexidade dos arranjos institucionais originados nos anos 80 e reconheçam avanços na universalização do acesso e no processo de descentralização, as proposições para os anos 90 ratificam "idéias força da cultura técnica do Banco tais como as clivagens saúde pública e serviços clínicos básicos versus serviços terciários; e pobres/classes médias/ricos" (Costa, 1998:138). Estas crenças teriam por pressuposto que as necessidades de cuidados clínicos dos mais pobres poderiam ser satisfeitas com cesta simplificada, porque agravos de maior complexidade e doenças crônicas seriam típicas das camadas mais ricas e médias, enquanto os mais pobres permaneceriam expostos às doenças infecciosas e parasitárias. Elucidando os frágeis fundamentos de semelhantes crenças, Costa as desmistifica, pois inúmeros estudos epidemiológicos demonstram que as doenças crônicas atingem os estratos sociais mais pobres de forma mais contundente e precoce.
Mais do que imposição "estas crenças têm sido assimiladas e tomadas como base cognitiva para a diferenciação entre o falso e o verdadeiro pelas comunidades de especialistas em políticas"; alerta Costa (1998: 141). Salienta, assim, o rápido processo de difusão e de assimilação dessas orientações normativas pelas elites nacionais e mostra como a inserção destas comunidades de especialistas em nichos institucionais estratégicos faz com que entrem facilmente na agenda as interpretações de organismos internacionais a respeito do Estado e da ameaça dos gastos sociais para o equilíbrio fiscal. Produz-se consenso acerca de orientações políticas que implicam restrições da ação dos Estados nacionais e perdas para as camadas desfavorecidas da população. Crítico contundente, conclui: "A novidade deste consenso é a sua articulação, como recurso discursivo, à defesa dos pobres ao rotular de inúteis e injustas as estruturas institucionais de proteção social presentes e futuras" (Costa, 1998:144). Assim, se uma das mais importantes conquistas no processo de ampliação da proteção foi a eleição de clientela na condição de cidadão e não na de 'pobres', a orientação normativa dos anos 90 parece ser o abandono deste pressuposto, o que dificultará a construção de um projeto de cidadania para o país.
Em suma, para além da novidade das análises das políticas recentes de saúde e saneamento, a releitura das políticas sociais durante o regime autoritário efetuada por Costa confere atualidade ao tema. Baseada em textos clássicos de análise do período e alicerçada na revisão teórica do neo-institucionalismo, a interpretação inova e dá originalidade ao trabalho, ainda que seja polêmica em determinados aspectos. Ao iluminar seu campo de estudo abordando novos aspectos, o autor desvela a dinâmica própria das políticas públicas de saúde e saneamento. Mostra a importância e efetividade de políticas públicas específicas, não as reduzindo a meros subprodutos de diretrizes econômicas. Ao discutir a influência das agências internacionais na formulação das agendas das políticas nacionais, elucida interpretações sobre a realidade e entra firme no jogo conjuntural, no embate de interpretações que disputam o lugar hegemônico entre especialistas e no senso comum.
Esta foi uma leitura e interpretação; outras são possíveis e necessárias. É um texto para ler e debater, apreender e empregar no cotidiano do ensino, análise e formulação das políticas públicas de corte social.
Lígia Giovanella
Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde
Departamento de Admnistração e Planejamento em Saúde
Escola Nacional de Saúde Pública
Fundação Oswaldo Cruz
ANTROPOLOGIA DA SAÚDE: TRAÇANDO IDENTIDADE E EXPLORANDO FRONTEIRAS. Paulo César Alves & Miriam Cristina Rabelo (org.). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Editora Relume Dumará, 1998. 248 pp.
ISBN 85-7316-151-5
A antropologia da saúde (ou antropologia médica) é, no Brasil, um campo de reflexão e de pesquisa ainda incipiente, ou "adolescente" nos termos de Minayo, um dos autores dessa coletânea, e não é inútil estabelecer o estado atual da arte e discutir do seu potencial para o campo da saúde. É com esses objetivos que Alves & Rabelo empreenderam a organização do material, o qual, em vez de oferecer uma visão única, procura, pelo contrário, resgatar e explorar as múltiplas e variadas tendências recentes dessa disciplina no Brasil.
A coletânea abrange 11 contribuições, sendo as seis primeiras de cunho mais teórico, e as cinco últimas, mais etnográficas. Várias delas examinam as relações entre a antropologia médica e disciplinas afins no campo da saúde.
O primeiro artigo (Alves & Rabelo, pp. 13-28) procura estabelecer o status das ciências sociais em saúde no Brasil, examinando, em particular, o processo de formação e o perfil do profissional nessa área de conhecimento, revistando brevemente as influências teóricas e metodológicas sobre o seu desenvolvimento até o início desta década (particularmente o materialismo histórico, o estruturalismo e o pós-estruturalismo), e sublinhando o deslocamento atual da análise para o nível metateórico. O segundo artigo (Minayo, pp. 29-46), que examina o desenvolvimento, bem como o estado atual da arte da antropologia da saúde no Brasil, salientando particularmente a dependência antiga dos estudos brasileiros em relação às correntes estrangeiras de pensamento, apela para a necessidade de se criar uma antropologia da saúde propriamente e verdadeiramente brasileira.
Os três artigos seguintes discutem, sob enfoques variados, a questão das possíveis colaborações entre a antropologia médica e a epidemiologia. Partindo da história da constituição da epidemiologia como ciência e da análise de seus objetivos, Savalho & Castiel (pp. 47-69) examinam as potencialidades e as dificuldades de diálogo entre as duas disciplinas e avaliam as possibilidades de uma abordagem verdadeiramente interdisciplinar. A relação entre as duas é também o tema do artigo seguinte, embora de um ponto de vista distinto. Após revistar os pontos de convergência aparentes entre as duas (o enfoque sobre conjuntos sociais, a identificação da multicausalidade da doença, a visão da saúde/enfermidade como processo, o reconhecimento do impacto das condições de vida sobre a questão da saúde e a concepção preventivista da doença), Menéndez (pp. 71-93) sublinha as discrepâncias nas concepções subjacentes que podem dificultar e até impossibilitar qualquer tentativa de diálogo. Por fim, o artigo de Grimberg (Grimberg, pp. 95-106) retoma o mesmo tema a partir da questão das reificações conceituais e metodólogicas dessas duas disciplinas (por exemplo, reificação da doença como entidade e do corpo enfermo, do conhecimento e de sua metodologia; por parte da epidemiologia versus reificação da cultura e dos sujeitos; por parte da antropologia), prosseguindo com algumas propostas visando a uma melhor articulação entre as duas.
A sexta contribuição, assinada pelos organizadores da coletânea (Alves & Rabelo, pp. 107-121), examina as tendências mais recentes dos estudos sobre representações e práticas ligadas à saúde e à doença. Salienta a necessidade da desconstrução das dicotomias clássicas das ciências sociais (entre ação e estrutura, subjetividade e objetividade, indivíduo e sociedade, corpo e mente) e discute a especificidade da perspectiva antropológica nas questões de saúde e doença.
Os quatro textos seguintes procuram estabelecer uma interlocução entre a antropologia médica e disciplinas afins no campo da saúde, como a biomedicina, a psicologia, a psicanálise e/ou a psiquiatria. Caprara (pp. 123-138) examina, assim, a figura do "médico ferido", conceito forjado em 1994 pelo filósofo Hans-Georg Gadamer, a fim de tornar a medicina ocidental mais humana, à luz da visão sobre a doença e a cura inerente ao candomblé, centrando-se em particular sobre a análise do papel de Omulu, o orixá das "doenças que pegam". Knauth (pp. 139-156) confronta o discurso psicológico e/ou psiquiátrico sobre as associações entre depressão, morte e AIDS à perspectiva das mulheres portadoras do vírus HIV pertencentes à classe trabalhadora da região de Porto Alegre. A autora mostra, em particular, que a categoria psicológica/psiquiátrica da depressão é vista por essas mulheres como uma categoria moral, que coloca em jogo o status social do indivíduo, e que a letalidade da doença, geralmente interpretada pelo discurso especializado como um dos principais fatores de depressão, é percebida pelas mesmas sob o prisma de uma concepção peculiar de tempo e de morte, impossibilitando qualquer predeterminação do futuro. É, por isso, uma concepção de morte futura, sendo o tempo presente "o único tempo sobre o qual é possível dispor de algum tipo de controle" (Knauth, pp. 151). Carvalho (pp. 157-177), por sua vez, examina o conceito de mecanismo de defesa constituído culturalmente (MDCC), forjado simultaneamente por Georges Devereux e Melford Spiro, na década de 60, para referir-se a um mecanismo psicológico de defesa baseado "em crenças, práticas, e papéis e outras partes constituintes de sistemas socioculturais", e não em idéias e comportamentos idiossincráticos (pp. 158), à luz da história e experiência de possessão de um indivíduo de uma comunidade rural no interior do Pará, que fora vítima de espíritos malignos durante a sua vida por nunca ter aceito o papel de curador em sua comunidade. O artigo evidencia as relações complexas entre sistemas sócio-culturais e saúde mental, revelando a potencialidade de uma abordagem situada na interface entre a antropologia e a psicologia em lançar luz sobre as motivações que podem conduzir os indivíduos a internalizar, de modo diferencial, os modelos culturais. Por fim, Hita (pp. 179-213) estabelece um diálogo entre a sócio-antropologia da saúde, a epidemiologia, a psicanálise e a psiquiatria na sua análise das questões relativas à saúde mental das mulheres. Distanciando-se da abordagem epidemiológica dos fatores sociais de risco que reduz processos e contextos sociais complexos a simples fatores isolados e/ou isoláveis, a autora adota os conceitos de experiências e processos de fragilização à saúde mental. Retomando a discussão célebre sobre a associação entre gênero feminino e distúrbios psico-afetivos e neuroses, ela mostra, com base na trajetória de vida de 14 mulheres da classe trabalhadora de Salvador, auto-referidas como nervosas, a necessidade de levar em consideração várias dimensões da experiência feminina, particularmente no que diz respeito às questões de classe e de cultura.
A coletânea termina com um artigo de McCallum (pp. 215-245), versão revisada e ampliada de um artigo publicado em inglês na revista Medical Anthropological Quarterly (MAQ, September 1996, vol. 10, n. 3, pp. 347-372), que examina a concepção da doença e da cura entre os Kaxinawá, salientando a interdependência estreita entre conhecimento e corpo no pensamento e na prática desses índios da Amazônia brasileira. Numa perspectiva mais geral de antropologia médica e/ou de antropologia do corpo, a autora argumenta sobre a necessária desconstrução das dicotomias ocidentais freqüentemente operadas entre natureza/cultura, mente/matéria, matéria/espírito, corpo biológico/pessoa social, para poder apreender e entender as questões relativas ao corpo, à saúde e à doença.
Para finalizar, todas as contribuições são interessantes e fornecem ajuda valiosa a uma disciplina científica ainda em processo de busca de si no Brasil. Testemunham, além disso, a especificidade do olhar antropológico, bem como a importância do papel da antropologia médica no entendimento das questões sobre saúde e doença.
Dominique Buchillet
IRD (ex-ORSTOM)
Instituto Socioambiental/ISA