ARTIGO ARTICLE
Edgar Merchán-Hamann 1 | Os ensinos da educação para a saúde na prevenção de HIV-Aids: subsídios teóricos para a construção de uma práxis integral Lessons from health education for HIV/Aids prevention: theoretical elements for the construction of a new integrated praxis
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1 Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte, Brasília, D.F., 70910-900, Brasil. | Abstract There is an evident contrast between health education practices and theoretical reflection concerning them as models. Health education practices have undergone considerable development in terms of strategies, methods, and modalities, while theoretical models have remained deficient, reductionist, fragmentary, and focused on behavior rather than social practices. Major problems include individualism, asymmetrical "teacher-student" relationships, students as passive objects of practices, lack of social and cultural contextualism, and excessive focus on factual behavior. We propose a praxis based on ten levels of integration regarding different human dimensions: 1) complexity requires interdisciplinarity; 2) holism; 3) combined perceptual and expressive dimensions in an integrated language; 4) framing of practices in real contexts; 5) realization of the continuity between the individual and collective realms; 6) symmetrical, dialogic, and active educational practice; 7) integration of both intellectual-cognitive and affective-volitional processes; 8) risks as vulnerabilities of social groups that are capable of organization; 9) use of imagination in role-playing games; and 10) recognition of others and diversity. Political aspects of education are emphasized as promoting citizenship and social change. Key words Health Education; HIV; Acquired Immunodeficiency Syndrome; Sex Behavior Resumo Foi constatado um contraste entre as práticas de educação em saúde e a reflexão teórica sobre as mesmas (modelos). Enquanto as primeiras têm tido um desenvolvimento considerável em estratégias, metodologias e modalidades, a segunda permanece reducionista, fragmentadora e atrelada à psicologia comportamentalista. Apontam-se como maiores problemas de tais modelos o individualismo, a alteridade nas relações educador-educando, a passividade do educando, a falta de contextualidade macrossocial e cultural, bem como a ênfase em comportamentos. Propõe-se uma práxis baseada em dez níveis de integração de dimensões múltiplas do ser humano: 1) a complexidade dos objetos requer interdisciplinaridade; 2) concepção holística; 3) integração das duas dimensões de percepção (vivência) e expressão (ação) em uma linguagem integral; 4) inserção da prática em contextos reais; 5) constatação do continuum indivíduo-coletivo; 6) educação simétrica, dialogal e ativa; 7) integração de processos intelectuais-cognitivos e afetivo-volitivos; 8) visão de riscos como vulnerabilidades de coletivos capazes de iniciativa e organização; 9) visão lúdica que inclui o real imaginado nos jogos de papéis; 10) contemplação do outro e da diversidade. Enfatiza-se o aspecto político da educação como promotora de cidadania e de mudança social. |
Introdução
É reconhecida a importância das práticas sociais de informação, educação e comunicação com o objetivo da promoção da saúde, articuladas com formas de apoio social e com serviços de assistência de qualidade e resolutividade aceitáveis. Ao se fazer um exame crítico sobre as práticas de educação para a saúde - particularmente aquelas destinadas à prevenção contra a infecção com o vírus HIV -, nota-se uma dissociação paradoxal entre a teoria e a prática. Por um lado, houve, nos últimos dez anos, um desenvolvimento surpreendente de metodologias da educação, de estratégias de aproximação a populações específicas e de modalidades de intervenção. Este desenvolvimento se deu principalmente no âmbito das Organizações Não Governamentais (ONGs). Por outro lado, os modelos teóricos e a reflexão conceitual, que deveriam orientar as práticas, permaneceram sujeitos a algumas das premissas deterministas e reducionistas da psicologia behaviorista ou comportamentalista. É comum, particularmente no campo da prevenção de HIV-Aids, a utilização do termo intervenção comportamental quando, na realidade, os comportamentos estão imersos em um oceano mais profundo, vasto e complexo, que envolve percepções, valores, sentimentos, representações simbólicas e relações de poder.
Dizemos que os resultados dessa análise são paradoxais porque o desenvolvimento de estratégias e modalidades metodológicas partem das necessidades dos próprios destinatários das medidas, isto é, da perspectiva 'leiga', enquanto a teorização tem permanecido mais restrita a âmbitos acadêmicos e ao campo de técnicos e experts, executores da saúde pública.
Ao definir a prática da educação em saúde, quando o mundo ainda não despertava para o advento da epidemia de AIDS, a Organização Mundial da Saúde, influenciada pelo espírito da declaração de Alma Ata, enfatizava elementos pertencentes ao domínio profissional - "qualquer combinação de informação e educação" -, bem como fatores dependentes da vontade dos destinatários da prática: "que as pessoas queiram ser saudáveis, saibam como manter-se em tal estado, que façam o possível - individual e coletivamente - para permanecerem saudáveis, e que procurem ajuda quando seja necessário" (WHO-GPHC, 1981). Pensamos que os modelos de educação em saúde, constructos teórico-práticos idealizados em instituições acadêmicas e instituições de saúde governamentais desde a década de 50 nos Estados Unidos, e posteriormente prescritos como receitas, não têm atendido às necessidades dos destinatários.
Para chegar a um melhor entendimento da relatividade e historicidade de conceitos relacionados com o processo saúde-doença, tais como os comportamentos saudáveis ou as condutas para a saúde, é necessária uma reflexão antropológica. No passado, a ênfase em aspectos comportamentais levou à utilização de recursos teóricos e metodológicos da psicologia do comportamento (behaviorismo) na estruturação de modelos de educação em saúde. Apesar das críticas que já desde a primeira metade do século se apontavam com respeito à abordagem comportamentalista da psicologia norte-americana (Harrell & Harrison, 1938; Homans, 1987), esta colaboração enriqueceu determinados aspectos metodológicos do trabalho pragmático e da pesquisa empírica na disciplina da educação em saúde. Entretanto, à medida que o desenho de estudos e a determinação de prioridades tornaram-se patrimônios de uma vertente hegemônica profundamente influenciada pelo behaviorismo, o alcance teórico e as possibilidades derivadas de uma visão mais integral do ser humano viram-se frustradas.
Pensamos que os modelos de reflexão teórica sobre a educação em saúde têm falhado em decorrência dos seguintes fatores:
1) pelo enfoque individualista que converte os sujeitos em entidades alienadas de seu contexto social;
2) pela manutenção de diferenças de poder material e simbólico entre as figuras do educador e educando na cena educativa; definimos esta condição pelo nome alteridade (do latim alter = outro), ou 'outridade'; o processo educativo estruturado nesses moldes torna-se unidirecional, e a comunidade, atomizada e passiva, converte-se em objeto e alvo de intervenções nas quais não toma parte;
3) pela visão institucional dos sujeitos sociais como entidades carentes de subjetividade própria, de capacidade de significação e de troca intersubjetiva de emoções e sentimentos, resultante da excessiva busca da objetividade na prática institucionalizada;
4) pela falta de preocupação com o ambiente macrossocial, compreendendo tanto as estruturas objetivas e as relações materiais derivadas dos processos econômicos e sociais, quanto as estruturas simbólicas construídas pela cultura;
5) pela ênfase dada aos comportamentos observáveis, que ignora o pano de fundo subjetivo e interacional do ato volitivo humano. Promove-se a dissociação dos processos afetivos e cognitivos.
Proposta integradora e saúde integral
Com base nessas constatações, passamos a elaborar propostas de práticas de educação para a saúde que incorporassem, ao mesmo tempo, o reconhecimento da dignidade e integridade das pessoas envolvidas no processo educativo, bem como a construção de bases democráticas e igualitárias de comunicação na prática pedagógica. Partimos de concepções que vêem a educação como processo de comunicação que visa à liberdade e à felicidade dos seres humanos. Nelas, os educandos tanto quanto os educadores constituem sujeitos ativos em uma relação de reciprocidade e crescimento. Consideramos igualmente essencial o reconhecimento da natureza social, política e intersubjetiva das relações destes sujeitos, o que conduz a uma concepção mais abrangente do processo pedagógico.
Baseados nesses princípios norteadores, tentamos demonstrar a necessidade de avançar do plano lingüístico e mecânico da significação - codificação - decodificação - ao da simbolização - interpretação discursiva -, em que a fenomenologia e a antropologia construtivista fornecem as bases para uma articulação complementar de saberes que iluminam os aspectos especificamente humanos dos comportamentos. Podemos esperar, valendo-nos desses princípios, o estabelecimento de bases para uma práxis da educação para a saúde que contribua para a estruturação de pessoas íntegras e dignas. O caráter integral da nossa proposta funda-se em dez níveis de compromisso com a construção de uma prática que integre as múltiplas dimensões do ser humano, bem como sua inserção nas realidades social e cultural do seu cotidiano. Não se trata, contudo, de dez passos que devem ser seguidos à risca para atingir um objetivo. Tampouco há a intenção de uma seqüência progressiva, já que, em determinadas situações ou para determinadas pessoas, uns podem ser bem mais relevantes do que outros. Trata-se de diversos níveis de busca da integralidade do ser humano em suas diversas dimensões, sendo de tal forma fluidos e maleáveis, que uns podem estar parcialmente incluídos em outros; alguns podem pressupor ou, inclusive, conduzir a outros.
Um primeiro nível surge da necessidade de que sejam concebidos em toda sua totalidade e complexidade os objetos dos campos do saber e da reflexão. Partimos do pressuposto de que visões fragmentadas - especializadas - do ser humano e dos fenômenos a ele ligados privilegiam leis gerais que são cômodas porque são ao mesmo tempo simples. Estas visões, segundo Morin (1996), ordenam o universo "perseguindo a desordem" e constroem identidades simples e fechadas. As ações delas derivadas são, ao mesmo tempo, pobres e empobrecedoras, porque implicam um agir restrito à unidimensionalidade. A integração de teorias e práticas disciplinares é desejável, uma vez que o próprio espaço em que se pretende construir uma nova práxis leva implícita a existência de uma interface disciplinar dos campos da saúde e da educação. Desse modo, o primeiro nível de integração supõe, tanto no nível da reflexão, como na tarefa - ou nos níveis prospectivo e retrospectivo descritos por Japiassu (1976) -, a busca da interdisciplinaridade. A concepção integral do ser humano se encontra no fundamento da vontade de construção de um método dialógico de integração de saberes que contemple singularidades e multiplicidades. Neste sentido, vários dos autores que serão citados a seguir propiciaram um diálogo teórico-metodológico.
Um segundo nível de integração envolve o próprio conceito de saúde que concebemos de uma perspectiva holística, em que o ser humano se apresenta como entidade composta de diversas dimensões que constituem realidades: física-somática, mental, social, cultural, ecológica, afetiva e emocional. Incluímos aqui as realidades supranaturais ou espirituais, não só porque constituem espaços de simbolização riquíssimos, ou pelo fato de serem importantes mediadores do agir individual e social, mas também por conferirem sentidos diferenciados à existência. A impossibilidade de separar estas dimensões sem promover a fragmentação do ser humano constitui a base do trabalho pedagógico que se afasta da ótica medicalizante, sob cuja perspectiva o conceito de saúde se encontra atrelado a paradigmas que privilegiam a doença e patologia, referidas separadamente ao corpo e à mente (Berliner & Salmon, 1980). A proposta inclui um conceito de saúde enquanto processo, que integra os elementos contextuais à dimensão individual: a realidade ecológica - meio ambiente - em conexão com a realidade sócio-econômica e o universo cultural; o micro ambiente da interação interpessoal e o microcosmo da individualidade que não se restringe a noções individuais do ego ou do self.
Na busca da integralidade, um terceiro nível funda-se nas concepções de linguagem integral, termo aplicado por Goodman (1989) à sua abordagem do processo educativo, que se fundamenta na impossibilidade de separar totalmente as dimensões perceptual-vivencial e a expressiva dentro do processo da lecto-escritura. Outros autores têm partido de pontos de vista semelhantes: Freire (1977), refletindo sobre a natureza do ser humano no contexto do processo pedagógico, enxerga "um ser da práxis, da ação e da reflexão". A mesma constatação aparece em Vygotsky (1994), nas suas reflexões sobre instrumentos e símbolos enquanto mediadores do "comportamento cultural" e na dimensão temporal do sistema psicológico, onde se integram as intenções e representações simbólicas das ações propositadas. Trata-se da integração de processos de expressão - análogos à escritura - e de processos de vivência ou experiência - análogos à leitura - num continuum indissociável do agir e do sentir.
Goodman assinala o caráter ativo do sujeito em várias esferas desses processos: na dimensão da percepção e vivência, o sujeito organiza tarefas de construção de significados, elaboração e interpretação de hipóteses e de compreensão de significados; na dimensão da expressão humana, a necessidade de exprimir-se através da linguagem leva os sujeitos a integrarem aspectos signológicos desta expressão - características grafofônicas, expressão pré-verbal corporal, arte -, de sistematização ou estruturação - aspectos sintáticos, encadeamento de formas - e de significação e sentido - aspectos semânticos. O reconhecimento pleno da complementaridade das dimensões vivencial-perceptual e expressiva possibilita a incorporação à nossa proposta de diversos níveis e formas de experiência humana - consciente, inconsciente e supraconsciente.
Um quarto nível de integração corresponde à inserção do indivíduo em contextos reais do cotidiano do sujeito no processo educativo. Sob este ponto de vista, desde uma perspectiva pragmática e situacional em que o pano de fundo do processo educativo é o cenário vivido, incorporam-se aspectos do cotidiano - contingências, segurança, insegurança, certezas - no trabalho de comunicação que pressupõe esse processo. Tal concepção parte do pressuposto de que o ser humano, por constituir um "ser em situação", não pode ser compreendido fora das relações com seu mundo (Freire, 1977).
Concordamos com Goodman (1989) e Ferreiro & Teberosky (1980), que se opõem às práticas educativas em que todo o processo se conduz separadamente dos contextos em que as mesmas acontecem. Da mesma forma, concordamos com Giroux (1988) na sua crítica à visão institucional curricular da prática educativa corriqueira, que coloca como metas a transmissão de sub-habilidades hierarquizadas ou o estabelecimento de seqüências obrigatórias e universais de treinamento, que constituem o objetivo último de um processo educativo alienado do contexto.
Um quinto nível de busca da integralidade baseia-se na visão de Vygotsky (1994) que constata um fenômeno de internalização dos processos sociais e culturais, o que constitui o elo entre a dimensão coletiva da pessoa humana e a sua individualidade, e toma a forma de processos psicológicos com graus diversos de particularização. A bagagem genética e os processos de maturação, tão enfatizados pelos paradigmas biológicos positivistas, jogam um papel incompleto no desenvolvimento do pensamento. No processo de elaboração e acabamento do pensamento, é necessária a apropriação e internalização, por meio da linguagem, do legado cultural do grupo a que se pertence. Isto implica um movimento que vai do social ao individual. Não se trata simplesmente de transferir a ação para o nível das idéias; a internalização, ou seja, a transformação de um processo interpessoal e intersubjetivo em processo intrapessoal representa, para Vygotsky (1994), a formação da própria estrutura interna da consciência. A constatação de um continuum indivíduo-coletivo permite a incorporação à práxis da educação em saúde de diversos níveis de vivência e ação: intrapsíquico, interacional e macrossocial. Somente assim se torna possível o envolvimento de diversos atores em distintos setores para a solução de problemas vividos coletivamente.
Um sexto nível de integração tem por base a quebra da alteridade no processo pedagógico promovido por Freire e já assinalado por Vygotsky; este criticava o termo jardim de infância por levar implícita a passividade das crianças como simples objetos das práticas educativas. A reestruturação da relação educador-educando implica a construção de um processo mediado pela comunicação em oposição à simples extensão de conteúdos, pressupondo a participação ativa do sujeito-educando. A proposta de uma educação "dialogal e ativa" como ponto de partida para uma forma de consciência - a "transitividade crítica" - coloca esta visão em oposição à massificação - consciência transitivo-ingênua - ou à intransitividade (Freire, 1983). A procura constante de revisões junto à problematização e interpretação dos problemas são elementos centrais à proposta dialógica de Freire. A partir do momento em que o sujeito-educador passa a ser educador-educando, o conteúdo programático da educação já não é mais doação paternalista ou imposição autoritária, mas uma retribuição organizada, sistematizada e enriquecida dos elementos que lhe foram entregues de forma não estruturada (Freire, 1978).
Um sétimo nível se delineia a partir da inclusão de elementos objetivo-materiais e subjetivos da experiência humana, entendida tanto como vivência (sentimento), quanto como expressão (produção-poiese-representação). A experiência humana passa a ser vista não só em termos de progresso material e tecnológico, mas também como expressão de subjetividade e de troca intersubjetiva. Além da valorização dos elementos físico-materiais envolvidos na experiência humana, inclui a troca de sentimentos, que envolvem energia e emoção. Vygotsky considerou de importância fundamental a integração dos processos afetivos às duas outras esferas que configuram a "estrutura da consciência": os processos intelectuais/ cognitivos e afetivos/volitivos (Semenov, 1974; Vygotsky, 1993). Para Vygotsky, a dissociação destes elementos torna o pensamento um epifenômeno carente de significado. Em nosso meio, o respeito à singularidade e o reconhecimento do papel da afetividade constituem as bases de uma proposta de construção de uma autonomia afetiva em educação em saúde (Schall & Struchiner, 1995).
O oitavo nível de integração constitui a possibilidade de estabelecer soluções para vários problemas relativos ao processo saúde-doença, fugindo da visão vertical da saúde pública de especificidade programática, campanhas pontuais ad hoc, isto é, da visão burocrática de 'recorte'. Esta integração ocorreria de modo a incorporar a noção abrangente de 'risco' - vários agravos e doenças compartilham os mesmos mediadores da vulnerabilidade de coletivos - a ações horizontais implementadas tanto por serviços - de forma descentralizada -, como por instâncias da comunidade organizada no contexto da interação da mesma com seu meio ambiente, para a execução de programas voltados seja à promoção, seja à recuperação da saúde. Pressupõe-se a quebra da visão dicotômica operacional curativo-preventiva e permite-se maior escopo de ações para abranger o aspecto ecológico e adaptativo da saúde na comunidade.
O nono nível de trabalho integral se configura ao levar em conta tanto o real vivido, quanto o real imaginado e representado. Estes níveis de produção e reprodução de dimensões diversas de sistemas de linguagem encontram sua expressão mais corriqueira na vivência lúdica, que é considerada parte essencial do aprendizado informal, o da assimilação individual da experiência histórica e cultural. De fato, diversas formas de representação ocorrem ao longo da socialização e endoculturação, tais como o desempenho de papéis nos "jogos de teatrinho ou de enredo" ou "jogos com regras" (Leontiev, 1988; Vygotsky, 1994). De forma similar, as artes cênicas e plásticas, a poesia, a literatura e outras formas de representação podem ter lugar no processo educativo formal sob uma perspectiva lúdica. É necessário lembrar que elas não só reproduzem ações, mas também imaginação e fantasia que são possíveis graças a um referencial sócio-histórico e cultural.
Nesse sentido, a criação do método do psicodrama representou a articulação de vários elementos, técnicas e vivências, tais como as relações inter-humanas, o encontro de empatia bidirecional - a telerrelação - e o jogo de papéis no ato terapêutico, enquanto unidades sócio-culturais; o resgate da espontaneidade e da criatividade, bem como elementos de catarse 'ativa' somática e mental-espiritual (Greenberg, 1977; Moreno, 1989). Em nosso meio, novas experiências de educação para a saúde têm sido implementadas levando em conta a inserção de profissionais na realidade institucional brasileira dos serviços de saúde. As técnicas utilizadas em tais experiências têm sido o psicodrama pedagógico de Romaña e o método do Grupo Especializado de Educação Arvoredo (L'Abbate, 1994).
Um último nível de construção de uma prática integradora parte do pressuposto de continuidade existente nas dimensões do eu-mesmo e o outro - o mesmo e a diferença -, já que o processo da construção de identidade implica a contemplação de contrastes e diferenças. Esta experiência não se refere somente à esfera individual - o que eu sou, o que eu não sou - mas também à coletiva - o que nós somos, o que não somos.
Aspectos de uma nova prática social integradora
Na prática da educação para a saúde aplicada à prevenção da transmissão sexual de HIV/Aids, obrigatoriamente, são abordados corpo, sexualidade, identidades e, freqüentemente, subculturas urbanas. É necessária uma abordagem teórica que se afaste da ótica individualizante, essencialista e particularizadora da biologia e da psicologia e medicina clínicas, para reconhecer o caráter de realidade subjetiva construída da identidade. Não é possível prescindir da importância das relações sociais e dos papéis designados pela cultura aos atores na construção da identidade (Berger & Luckmann, 1973; Goffman, 1975; Camilleri et al., 1990). Nesse sentido, a reflexão antropológica construtivista tem enriquecido nosso conhecimento sobre a forma como se organizam as relações e discursos de gênero e sexualidade (Weeks, 1985; Vance, 1991; Treichler, 1992).
Fugindo de concepções mecanicistas e lineares já clássicas na abordagem do processo de estruturação da identidade (Erikson, 1959), alguns pesquisadores pensam que a construção da mesma constitui um passo prévio ao fato de assumir uma consciência que possibilite qualquer resposta política ou participação comunitária. Weeks (1985), entre outros autores, propõe ir além dos fatores biológicos e psicológicos no processo de construção de uma identidade e na estruturação de um 'eu' multidimensional por intermédio da ação do self, o ser humano como sujeito e objeto social de sua própria ação. Entre as dimensões desta identidade construída estão a política - o eu-cidadão - e a sexual - o eu-sexual - em conexão íntima com a construção do gênero. Por isso, ao investigar comportamentos, há que se buscar os significados das práticas, os quais são investidos de valores. Também não são fenômenos objetivos, e sim portadores de importantes relações de poder decorrentes de vários fatores; dentre eles, a estrutura sócio-econômica e a própria construção cultural.
Vale a pena lembrar que a mesma noção de identidade, amplamente trabalhada sem problematização nos diversos campos da psicologia norte-americana, não está isenta de paradoxos e ambigüidades. Weeks (1995) aborda aspectos paradoxais da noção de identidade, enfatizando a busca coletiva da identidade sexual. Um dos pontos que discute faz alusão à necessidade de definição que está implícita na identidade. Assim, é paradoxal constatar que, enquanto as identidades pressupõem uniformidade e estabilidade, simultaneamente estão confirmando a diversidade, a diferença e a instabilidade. Por outro lado, Weeks se refere a um paradoxo no âmbito das dimensões individual e coletiva da identidade. As identidades são vividas como traços profundamente pessoais, sendo paradoxal o fato de que necessariamente se religam a múltiplas formas de pertencer ou participar da sociedade. É justamente este aspecto da identidade que estamos contestando nas suas visões clássicas.
Um outro aspecto da mis-en-scene de estratégias identitárias se refere aos discursos de rejeição contracultural e resistência. Nesse sentido, há um desejo de sobrepujar a impotência em face da situação, de resistir ao controle e à exclusão ditados pelos discursos hegemônicos. As representações que conformam estes discursos contestatórios seriam vistas como entraves para a mudança comportamental sob a ótica de modelos de educação em saúde acadêmicos e institucionais unidirecionais, tais como o Health Belief Model, a Teoria do Aprendizado Social (Social Learning Theory) e o Precede-Proceede. Esse desejo de resistência pode vir acompanhado de práticas de transgressão aparentemente incompreensíveis para o resto da sociedade, como o baile funk violento, a pichação, o surf ferroviário e os arrastões nas praias, praticados por adolescentes no Rio de Janeiro. Nelas, o corpo, antes objeto de controle e castigo, passa a ser sujeito de práticas de revolta e resistência, subvertendo o uso do espaço público.
De forma análoga, os supracitados modelos de educação em saúde tendem a estreitar o horizonte da reflexão crítica referente a eventos interacionais, como a atração sexual e os fenômenos reprodutivos. A atração sexual que dá por resultado atos interpessoais não é inteiramente determinada pela divisão cortante entre dois sexos biogenéticos, conforme estabelecido por paradigmas essencialistas que dão ênfase ao instinto, à constituição genética e à herança. A visão construcionista ressalta a existência de uma divisão cultural que tem como origem os sexos masculino e feminino, com a conseqüente superposição de construções simbólicas de gênero sobre a natureza dos dois sexos, transformando-os em fenômenos historicamente contextualizados. Pensamos, portanto, que as identidades sexuais são estruturadas com base em papéis e não apenas em comportamentos
Fora da ciência, no âmbito da representação artística, tem-se conseguido melhor recuperação da expressão simbólica do masculino e do feminino (Threadgold & Cranny-Francis, 1990). Da mesma maneira, sentimentos relacionados estreitamente com a construção da identidade, tais como vergonha, culpa, confiança e o amor próprio, devem ser vistos à luz de matrizes discursivas com as quais indivíduos e coletivos organizam sua identidade nos âmbitos privado e público em face das expectativas sociais e culturais internalizadas (Giddens, 1991). Concordamos com Caplan & Nelson (1973) quando estimam que práticas profissionais individualizantes no campo da Psicologia e as pesquisas delas derivadas tendem a culpar pessoas que já são vítimas de diversas situações sociais mais complexas.
Considerações finais
Levando em consideração as reflexões anteriores, fica claro que a definição identitária está relacionada com a cidadania, a partir do momento em que grupos minoritários mais vulneráveis podem ser mantidos fragilizados, excluídos ou desapercebidos de seus direitos e de seu poder como cidadãos. Este fato tem motivado propostas educativas em âmbitos escolares como forma de combater a discriminação racial, étnica, religiosa e a homofobia, reproduzidas pelos próprios sistemas educativos (Giroux, 1994; Watney, 1994). Nesse sentido, a tarefa de conscientização com respeito ao poder (empowerment) deve começar com a estruturação da identidade cidadã e também não pode estar restrita à resolução de problemas individuais. Essa tarefa envolve a ação política de coletivos organizados e pode ser realizada em diversos níveis (Schulz et al., 1995). Pensamos que há a possibilidade de criar uma prática democrática da educação para a saúde que eduque na contemplação e valorização da diversidade e que confira poder aos sujeitos com base na busca permanente de valores de cidadania e da construção de uma sociedade mais justa.
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