RESENHAS REVIEWS

 

TRAÇANDO CAMINHOS EM UMA SOCIEDADE VIOLENTA. A VIDA DE JOVENS INFRATORES E DE SEUS IRMÃOS NÃO-INFRATORES. Simone Gonçalves de Assis. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. 236 pp.

ISBN 85-85239-18-2

 

Ainda são em pouco número os surveys, as pesquisas de trajetórias de vida e a reconstituição das relações sociais cotidianas dos agentes que vivem no chamado mundo do crime nas grandes cidades brasileiras. A dificuldade da pesquisa de campo nessa área temática, decorrente da clandestinidade e dos problemas de segurança que envolvem os pesquisadores, explica, no entanto, apenas em parte esse déficit de estudos. Há muitas questões teóricas complexas envolvidas nesse campo, a começar pela própria delimitação do objeto. O conceito de crime, por exemplo, jamais poderá ser construído cientificamente, já que é totalmente subordinado a um campo extracientífico, a esfera do direito e dos códigos jurídicos. Enquanto uma construção social, o crime não coincide com um evento empírico e seu agente não coincide com o sujeito simples da responsabilização penal. Ambos, crime e seu sujeito, são o produto de um processo social que encaixa eventos em classificações sociais e jurídicas e encaixa agentes em classificações de tipos e papéis sociais associados a representações de sua "desnormalização" para a vida social.

Um exemplo disso é a disputa que se verifica nos meios políticos e jurídicos sobre a idade da responsabilidade penal. A diferença de classificação dos agentes acusados por cursos de ação previstos como crime no Código Penal com base na sua idade, existente em vários países, inclusive no Brasil, supõe já diferentes possibilidades de tratamento da "desnormalização" quando ela ocorre em adultos ou entre crianças e adolescentes. O termo jurídico "menor infrator", que subsistiu até a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, embora mantivesse uma carga estigmatizadora, já advertia para a diferença entre a punição de um criminoso adulto e o caráter não punitivo, mas principalmente ressocializador, das medidas a serem adotadas para uma criança ou adolescente que tenha cometido atos infracionais. Essa diferença, no entanto, ou sua medida na faixa etária estabelecida em lei, começou a ser questionada à proporção que cada vez mais agentes jovens viram-se envolvidos pela acusação de que, mesmo após a experiência do internamento em institutos de ressocialização, continuavam a persistir na vida do crime, ou pela alegação de que esse sistema, supostamente não punitivo, incentivava, por isso, novas adesões de jovens e crianças ao mundo do crime, sendo, além disso, instrumentados por criminosos adultos.

A diferença, é evidente, depende de representações sociais que conferem mais importância à subjetividade do agente (inclusive quanto ao que seria a idade da razão e da responsabilidade penal), desinvestindo a transgressão do curso de ação para investi-la no sujeito. Foucault estudou, como se sabe, as grandes linhas desse processo histórico, próprio à modernidade ocidental, de passagem da lei à norma, através do qual a transgressão deixou de ser uma possibilidade objetiva sancionável, que denuncia um curso de ação problemático, para se transformar numa potencialidade subjetiva, "desnormalizadora", que denuncia um sujeito problemático. A essa transformação correspondeu também a transformação do sentido da pena, de castigo e vingança, para a de punição com finalidade "normalizadora" do indivíduo acusado. O valor central do indivíduo para a modernidade, de sua igualdade a outros indivíduos e em seus direitos, substituiu a anterior submissão do indivíduo à ordem holista da consciência coletiva hierárquica. A punição moderna adquiria assim um sentido racional-retributivo e exigia também uma avaliação das causas dos comportamentos representados como anômalos, para instruir as medidas preventivas da criminalidade. Logo um dilema se apresentou para todas as generalizações causais: apesar de nascidos e criados numa mesma família e num mesmo ambiente social, dois irmãos poderiam seguir caminhos radicalmente diferentes. Mas, ao sugerir um limite às abordagens deterministas, esse dilema possibilitou ainda uma perspectiva contrastiva, mais complexa e minuciosa, que se perguntava menos pelas causas gerais e mais pelos recursos simbólicos contextuais que afetam as opções individuais.

A originalidade e a importância do livro de Simone Gonçalves de Assis é que, embora seja explicitamente uma tentativa de modelagem das causas que levam muitas crianças e adolescentes a cometerem atos infracionais, realiza esse projeto adotando uma perspectiva crítica, evitando a descontextualização e investindo na complexidade multifacetada do objeto. Resultado de uma pesquisa premiada (Jovens que Matam e Irmãos que não Matam: Dimensão e Significado do Ato Infracional), encetada com o apoio do Ministério da Justiça, da UNESCO, da FAPERJ e do CNPq, por intermédio da FIOCRUZ e com a colaboração de uma equipe experiente e multidisciplinar, o livro chega em boa hora, preenchendo um espaço ainda pouco explorado empiricamente. Pela abrangência de suas questões e pela qualidade técnica da sua abordagem, torna-se referência obrigatória para todos os estudiosos, especialistas ou não, da violência urbana nas grandes cidades brasileiras.

O trabalho é apresentado em sete capítulos (o sétimo constituindo as conclusões), além de uma introdução e dos anexos. Na introdução, a autora discute as principais formulações contemporâneas da chamada delinqüência juvenil, em várias disciplinas, e propõe, com base na noção de "resiliênsia" (indivíduos que vivenciam mais fatores de proteção do que de risco), a sua questão inicial: "...compreender essa capacidade de resistir às pressões do meio e não desenvolver comportamento delinqüente" (p. 21). A proposta é "identificar os fatores de risco que levam um jovem a ser infrator e os fatores protetores que agiriam sobre um outro jovem, que vive no mesmo ambiente familiar e comunitário, conduzindo-o a não optar por caminhos infracionais" (p. 21). A autora adota, em caráter exploratório, o modelo causal de Shoemaker, mas o faz observando seus limites "especialmente porque as relações de complexidade se incrementam quando incluímos o nível individual na análise" (p. 25).

O primeiro capítulo trata das questões metodológicas envolvidas no trabalho, a definição do universo de pesquisa e as decisões amostrais adotadas. A pesquisa é com base em uma abordagem qualitativa, que privilegia a história de vida de jovens do sexo masculino acusados de cometerem atos infracionais graves e que estavam cumprindo medidas sócio-educativas em instituições do Rio de Janeiro e Recife, bem como a de seus irmãos ou primos, que não foram acusados de cometer tais atos. Utilizou-se também a técnica do genograma e, em caráter exploratório, foi dado um tratamento quantitativo aos dados obtidos nas entrevistas. Foram entrevistados 92 jovens, 61 dos quais acusados de cometerem atos infracionais (46 no Rio e 15 em Recife) e 31 irmãos ou primos não infratores (20 no Rio e 11 em Recife). Trata-se da primeira pesquisa sistemática realizada no Brasil sobre o assunto que adota a perspectiva epidemiológica, muito comum em estudos realizados em outros países.

O segundo capítulo expõe o contexto estrutural em que cresceram esses jovens, valendo-se da própria representação que os entrevistados lhe deram. Analisa-se a estrutura familiar (apenas 21% dos infratores e 32% dos seus irmãos ou primos viviam em lares com ambos os pais); a condição sócio-econômica da família (a maioria proveniente da classe popular); os fatores de risco no período perinatal (somente 11, entre os 61 infratores entrevistados, foram cuidados pela mãe desde bebê); o jovem em seu relacionamento familiar; a violência doméstica e o relacionamento conjugal dos pais. Constata-se a fragilidade da maioria das famílias dos entrevistados e sua vulnerabilidade aos fatores de risco: pobreza e exclusão social, precária formação profissional, desestruturação familiar e ausência da figura paterna, envolvimento de familiares em atos infracionais e violência doméstica. No entanto, dessas mesmas condições saíram também os irmãos e primos não infratores, o que leva a autora a buscar outros fatores que se associaram a esses para diferenciar suas opções individuais.

O capítulo três analisa a vivência da adolescência pelos entrevistados: a relação do jovem com a comunidade (a maioria morava em comunidades de baixo poder aquisitivo), com a polícia (a maioria manifesta o sentimento de ódio pelos policiais) e sua percepção da violência, com a escola (a maioria dos entrevistados apresentou um nível de escolaridade baixo e cerca de 70% de todos os jovens entrevistados já tinham abandonado os estudos), com os amigos e o lazer (a influência dominante do tráfico na agregação dos jovens entrevistados no Rio, diferentemente do que ocorre em Recife, onde a referência principal é o bairro e os interesses comuns). Ainda no terceiro capítulo, são analisadas as experiências do namoro, do sexo e da paternidade precoce; a relação com o trabalho (90% já haviam trabalhado), com o consumo conspícuo e a ostentação de símbolos de status, assim como os seus planos de vida e a visão que têm de si mesmos. Finalmente, analisa-se sua relação com redes de apoio e com a religiosidade. A autora conclui que "a violência está impregnada em suas vidas e parece funcionar como princípio ordenador de suas comunidades" (p. 69). Todavia observa que, em muitas questões, os infratores se diferenciam de seus irmãos ou primos. Estes evitam amizades com infratores, não utilizam drogas freqüentemente, têm maior noção de seus direitos e maior responsabilidade familiar; muitos continuam estudando, têm maior ambição profissional e projetos de futuro de uma vida melhor.

No quarto capítulo, sintomaticamente intitulado O Mundo é Maldade Pura, a autora analisa os relatos dos jovens infratores (e de seus irmãos ou primos sobre eles) a respeito de suas motivações e justificativas para os atos infracionais que praticaram. Dividido segundo os tipos de infração que levaram os jovens ao internamento, o capítulo expõe um jovem infrator muito diferenciado quanto às motivações e justificativas, mas com baixa empatia (ou identificação) com os outros seres humanos (exceto os familiares próximos): "a negação do valor da vida do outro, e por vezes da própria vida, dá a dimensão da gravidade de sua situação existencial" (p. 154).

No quinto capítulo, a autora analisa, tendo como base o relato dos entrevistados, a experiência de internamento destes. Também sintomaticamente, o capítulo intitula-se Parece até o Inferno. Aqui a pesquisa constata o mesmo quadro negativo revelado por outras pesquisas sobre os institutos de internamento de jovens infratores no Brasil: ineficiência do sistema de ressocialização e incompetência de seus quadros institucionais, em razão, principalmente, da lógica impessoal e burocrática que comanda sua organização, quando "o infrator precisa exatamente do oposto: um tratamento pessoal e individualizado" (p. 185). A autora manifesta toda a sua indignação com um processo de ressocialização que, oito anos após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, pouco mudou em relação ao que se fazia antes, nos SAM e FUNABEM, de triste memória. As crianças e os jovens infratores saem dessa experiência numa situação piorada e ainda mais estigmatizados.

O capítulo seis analisa especialmente os relatos dos irmãos e primos dos jovens infratores, a visão que aqueles têm da vida e do mundo, bem como suas explicações para a trajetória de seu parente infrator. Para a autora, a tentativa de igualar o máximo possível o contexto familiar de ambos (o jovem infrator e seu irmão/primo não infrator) mostrou-se inalcançável, em virtude da profunda diferença das percepções familiares existentes entre os irmãos/primos. "A diferença foi tão acentuada, que, em alguns casos, parecia que estávamos ouvindo narrativas sobre famílias distintas" (p. 189). A análise de um caso típico (Adriano e Clemer) demonstra suficientemente, no entanto, como a diferença emerge de uma mesma ambientação familiar e social que contêm, para ambos, os principais fatores de risco. O que distingue Adriano, 16 anos, o irmão que não é violento, de Clemer, 18 anos, o jovem infrator, internado por latrocínio (roubo com morte da vítima)? Segundo a autora, ambos vivenciaram um ambiente familiar de violência paterna exacerbada e contínua, mas suas percepções dessa experiência comum são muito diferenciadas. Clemer sentia-se mais amado e identificado com o pai, tendendo a negligenciar a violência paterna, enquanto seu irmão mostrava-se revoltado com a violência do pai e parecia mais identificado com a mãe.

Entre os principais fatores diferenciadores, a autora ressalta a posição na família, a influência dos amigos, as diferenças individuais de personalidade, os princípios éticos (saber diferenciar entre o certo e o errado). Mas o que parece estar em jogo e não pôde ser melhor explorado pela autora por causa do recorte epidemiológico que adotou não é tanto a rebeldia e o inconformismo, e, sim, o seu contrário: o conformismo, o autocontrole e a normalização em tais condições. A resiliência depende de condições de possibilidade para o autocontrole de si num ambiente adverso. A mim, mero resenhador de uma ótima pesquisa, parece-me mais fácil compreender Clemer que Adriano. Como me disse um pesquisador francês que conheci em Paris e que fez pesquisa de campo em favelas do Recife e do Rio, o surpreendente não é que haja tantos jovens pobres violentos, mas que não haja mais, em muito maior número...

O livro de Simone Gonçalves de Assis tem o mérito de ter abordado os pontos principais do dilema causal e oferecido um amplo painel empírico das representações que esses jovens fazem de sua vida, de seu drama pessoal e de sua exclusão real das condições normais de possibilidade do autocontrole numa sociedade tão desigual quanto a nossa. Minha divergência com a perspectiva adotada pela autora se resume apenas à constatação de que a inclusão simbólica na ordem, no ambiente social retratado pela pesquisa, é que parece anormal e problemática, exigindo uma abordagem epidemiológica.

 

Michel Misse
Departamento de Sociologia
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 

GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA. O PARTO ENQUANTO ESPAÇO DE MEDO., Maria Inês Brandão Bocardi. São Paulo: Editora Arte & Ciência/ Marília: Editora Unimar, 1998. 128 pp.

ISBN 85-86127-71-X

 

Lançada em meados de 1998, essa obra de Maria Inês Brandão Bocardi leva-nos a uma profunda reflexão quanto ao nosso desempenho enquanto profissionais da saúde em face da problemática da gravidez vivenciada durante a adolescência.

A autora se apóia em outros autores para explicar com detalhes sobre a adolescência e suas questões. Porém, em seus escritos, ela coloca de forma intensa a sua experiência de enfermeira e professora que convive com a realidade da adolescente grávida. Utiliza-se do Estatuto da Criança e do Adolescente e nos apresenta dados preocupantes, como o acréscimo significativo do número de jovens mães na faixa etária de 15 a 19 anos, além do alto índice de jovens que não fazem uso de nenhum método contraceptivo.

Em suas colocações, aponta para situações que encaminham os profissionais da saúde para reflexões que vão além do modelo biologista de assistência, e a culminância do seu trabalho se dá quando trata das questões do parto de uma adolescente. Aponta a insegurança, o medo do desconhecido e também a solidão familiar, como fatores que merecem a atenção dos leitores dessa obra. Expõe de modo realista o caminho das pedras pelo qual a adolescente se vê obrigada a passar. São traumas e perdas que nem sempre, ao menos, serão minimizados. Maria Inês escreve com muita sensibilidade e propriedade sobre a angústia, a insegurança e até mesmo a falta de perspectivas da jovem mãe.

Essa bela obra, didaticamente bem construída, faz o leitor avançar em sua leitura, pois apresenta etapas seqüências, como os diversos entendimentos sobre o que vem a ser essa fase da vida - adolescência, os aspectos históricos da gravidez na adolescência, como se dá uma gravidez nessa fase da vida, e suas possíveis complicações. Enfim, facilita ao leitor a compreensão do contexto gravidez - medo - e o estar adolescente.

Pode-se perceber nesse livro um retrato doloroso que se desenha como desafio para os profissionais da saúde. Que sociedade teremos com tantas mães-meninas que abandonam seus estudos? Que providências poderão ser tomadas para minimizar a dor e o drama vivenciado por essas adolescentes, por ocasião de um ritual de nascimento permeado por culpa, insegurança e medo? Como ajustar os fatos entre a mãe-menina, o pai-menino e um filho que nem sempre foi desejado e/ou esperado?

Em seu capítulo 2, item 2.5, a autora traz a família para o seu livro. Ela faz uma relação com o envolvimento familiar e, mais uma vez, deixa-nos muitas pistas e alertas de como devemos proceder para assistir bem a família. Consegue sintetizar em poucas páginas o envolvimento familiar com a adolescente grávida, as implicações e repercussões da gravidez no contexto familiar. Descreve as dificuldades de relacionamento entre sua família maior, que é a escola, e a própria comunidade onde vive. Aborda ainda as questões do seu trabalho e as implicações geradas em virtude da gravidez.

A proposta dessa obra é oferecer aos profissionais de saúde alguns subsídios relevantes para uma reflexão sobre os nossos papéis enquanto agentes de transformação, ao menos no que diz respeito à saúde, aqui entendida como qualidade de vida.

É um livro de poucas páginas, simples, porém de leitura difícil, pois vem nos apresentar uma realidade dura. Reúne muitos dados, muitas histórias e considerações importantes. Bocardi silencia discursos grandiosos, preferindo a simplicidade e pureza das falas das mães-meninas.

O resultado dos estudos realizados pela autora, o prefácio escrito pelo Prof. Dr. Romeu Gomes e a contracapa tão bem recomendada pela Dra Maria Aparecida Tedeschi Cano estão sinalizando que o tempo atual precisa de uma transformação profunda nas atividades voltadas para a saúde dos adolescentes e suas famílias.

É preciso desconstruir modelos que se valem apenas da razão, da inércia de idéias pré-concebidas e do torpor da rotina de assistência habitual; é necessário que se criem novos modelos, bem como que se formem novos conceitos para que o menino e a menina possam estar apenas adolescentes, crescendo, descobrindo o mundo e se afirmando como seres humanos.

Bocardi nos aponta que as respostas podem estar em nós mesmos. Precisamos arregaçar as mangas do conformismo, dividir nosso saber na informalidade do cotidiano dos adolescentes, em escolas, em centros comunitários, igrejas, campos de esportes. Precisamos, antes de mais nada, ser pessoas iguais, que compartilham de suas rodas de amigos. Parece prudente sair das escrivaninhas para poder atingir os adolescentes de forma amigável e trocar informações com eles. Responder às suas dúvidas, ensinar o que eles têm curiosidade em saber. A obra em questão nos leva a pensar em tudo isso e muito mais. A questão da solidariedade entre as pessoas parece esquecida em nossos campos de trabalho, especialmente dentro dos hospitais. Poucos são os profissionais que se preocupam com o aspecto humano, espiritual e até social dos seus clientes, e a autora consegue trazer à baila esse tema também, não de forma implícita, mas com a sutileza de quem precisa dizer sem ferir.

Em suas considerações finais, ela faz uma leitura de seus achados, diante dos quais, nós, profissionais da saúde, deveríamos nos curvar, pois tudo o que ali está posto é o retrato fiel do cotidiano dessas mães-meninas.

A humildade científica se faz valer nesse sucinto, porém importante trabalho, onde parágrafos concisos nos remetem à simplicidade do nosso fazer quando sustentado pela solidariedade. É preciso aprender a "estar com as adolescentes", antes, durante e depois de uma gravidez.

Bocardi nos oferece essa obra, não para ser lida simplesmente, mas, sim, para ser "ruminada", como diria Nietzsche, o grande filósofo alemão.

 

Glória Inês Beal Gotardo
Instituto Fernandes Figueira
Fundação Oswaldo Cruz

 

 

QUESTÕES DA SAÚDE REPRODUTIVA. Karen Giffin & Sarah Hawker Costa (org.). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. 468 pp.

ISBN 85-85676-61-2

 

Nos últimos trinta anos, a medicina ocidental incorporou ao seu arsenal para diagnóstico e tratamento de doenças um grande número de equipamentos, testes diagnósticos, medicamentos, técnicas cirúrgicas e anestésicas, muitos deles relacionados com a saúde reprodutiva. Entre esses avanços, podemos citar os equipamentos para ultra-sonografia, cirurgia vídeo-laparoscópica, estudos genéticos, cardiotocografia, histeroscopia, dopplerfluxometria, cirurgias de alta freqüência, mamografia de alta resolução e densitometria óssea, além de novos e mais precisos testes laboratoriais, possibilitando o diagnóstico e tratamento de doenças, como a infecção por Chlamydia, pelo papilomavírus, a AIDS e muitas outras. Tais conquistas foram, entre outros fatores, responsáveis por uma importante diminuição da morbi-mortalidade materna e perinatal e também por um importante aumento da expectativa de vida da mulher.

Novas subespecialidades médicas, como, por exemplo, reprodução assistida, patologia cervical, mastologia, medicina fetal e climatério, foram criadas, uma vez que o tocoginecologista não tinha mais como acompanhar e incorporar à sua prática um volume tão grande e diverso de informações. Reforçando a visão cartesiana do modelo médico ocidental, em muitos casos esses avanços acabaram por segmentar e medicalizar ainda mais a atenção prestada às mulheres, tornando a assistência integral uma possibilidade cada vez mais distante e os cuidados de saúde cada vez mais caros e de difícil acesso.

Em vários países, nesse mesmo período, o movimento de mulheres trabalhou intensamente no sentido de influenciar na formulação das políticas de saúde, nas legislações civil e trabalhista, numa luta para conquistar direitos até então negados a elas. As questões sobre gênero e sexualidade, a criação dos conceitos de direitos sexuais e saúde reprodutiva, juntamente com a incorporação de novos conhecimentos de outras disciplinas, como as ciências sociais, apontaram para temas que as mulheres consideravam fundamentais incorporar à discussão sobre os problemas que as afetavam.

O Brasil é um país marcado por enormes desigualdades sociais e diferenças regionais, e os investimentos na saúde da população têm sido insuficientes, levando a um sucateamento das instituições. Embora mulheres de maior renda tenham acesso a todos os tipos de serviços, ainda convivemos com indicadores de saúde que nos colocam no mesmo patamar dos países do terceiro mundo.

As taxas de mortalidade materna, mortalidade pelo câncer do colo do útero e de cesariana, entre outras, apontam para a necessidade urgente de uma reavaliação da qualidade dos cuidados que têm sido oferecidos às mulheres nos serviços de ginecologia e obstetrícia do país. A extrema medicalização da assistência ao parto e o abuso da realização de cesarianas, as histórias de preconceito e violência institucional no atendimento às mulheres infectadas pelo vírus da AIDS, as dificuldades em trabalhar as questões relacionadas ao abortamento legal e a má qualidade da assistência pré-natal são exemplos de situações que vêm sendo repetidamente denunciadas pelo movimento de mulheres e pelas organizações sociais. De uma maneira geral, os profissionais da área de saúde da mulher, em especial os médicos ginecologistas e obstetras, não tiveram em sua formação acadêmica a possibilidade de refletir sobre as questões de gênero e sexualidade, ficando restritos à visão biologicista do corpo humano, característica do paradigma médico. Os outros saberes têm sido pouco valorizados ou mesmo ignorados pela corporação médica, dificultando uma atenção multidisciplinar, que certamente qualificaria a assistência prestada às mulheres.

Como modificar a qualidade dessa atenção? Como transformar os serviços de saúde para que eles ofereçam às mulheres um atendimento integral? Como sensibilizar os profissionais de saúde, em particular os médicos, para que estejam atentos para as subjetividades e para as questões de gênero e sexualidade na sua prática diária? Como implementar as diretrizes do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher - PAISM?

Organizado pelas doutoras Karen Giffin e Sarah Hawker Costa, o livro Questões da Saúde Reprodutiva é um instrumento valioso para quem, em face dos desafios de promover uma melhor assistência às mulheres, tenta, sob uma nova ótica, entender as reais demandas dessa clientela na sua ida aos serviços de saúde, e se dispõe a modificar sua prática e a dinâmica do serviço aonde atua.

Dividido em cinco partes, os capítulos escritos pelos diversos autores, abordam a história, política e conceitos da saúde reprodutiva, o controle da fecundidade, a morbi-mortalidade, os serviços de saúde e a saúde reprodutiva e grupos sociais.

Na primeira parte, encontramos um relato que contextualiza o novo papel das mulheres na sociedade nesta segunda metade do século, a importante atuação das organizações não governamentais, bem como as suas capacidades de comunicação e de interlocução, a história do movimento de mulheres no cenário político da América Latina nos anos 60 e 70 e o surgimento dos movimentos sociais que trouxeram para a esfera pública a discussão dos temas ligados à saúde e direitos reprodutivos. Aponta a internacionalização do movimento de mulheres e a importância das conferências internacionais promovidas pelas Nações Unidas no Cairo e em Beijing, que permitiram avanços em relação à saúde reprodutiva e à ampliação da definição de direitos humanos, legitimando a atuação desses movimentos no plano nacional.

A discussão sobre os conceitos de saúde reprodutiva, gênero e sexualidade e a maneira como foram construídos ajudam a discernir as distinções entre eles e os desafios para se garantir, na prática, os direitos reprodutivos. A história do processo de medicalização do corpo feminino nos faz compreender como foi construída a idéia da existência de uma natureza biológica determinante e de que maneira outras idéias sobre maternidade, instinto maternal e a divisão de gênero da sociedade acabam sendo consideradas naturais. Como exemplo, a evolução da assistência ao parto nos últimos séculos, que mostra a maneira pela qual a corporação médica se apropriou deste evento, substituindo a parteira e hospitalizando o nascimento, sendo o abuso nas indicações de cesariana a mais importante das conseqüências negativas desse fenômeno. Encerrando esta primeira parte, uma discussão sob a ótica das ciências sociais a respeito do corpo e do conhecimento na saúde sexual contextualiza o papel do movimento feminista na luta pela transformação do paradigma binário em um novo paradigma que não separe corpo e mente, razão e emoção, biológico e social, e que permita a possibilidade de que masculino e feminino sejam ambos sujeitos sexuais.

Na segunda parte, o controle da fecundidade é analisado inicialmente pela avaliação das tendências regionais de fecundidade brasileira no século XX, mostrando uma trajetória de queda desse indicador, acompanhada de uma diminuição no tamanho da família e as conseqüências dessa tendência, como a redução do crescimento e envelhecimento da população. Os dados sobre a esterilização feminina, fator importante nessa queda da fecundidade, mostram que tal procedimento vem sendo realizado com freqüência cada vez maior e cada vez mais cedo na vida das mulheres. A realização em grande escala da laqueadura tubária não tem levado em consideração os possíveis efeitos colaterais e os riscos a médio e longo prazo desse procedimento.

O relato da experiência com os métodos de barreira controlados pelas mulheres, entre eles a camisinha feminina, na prevenção das doenças sexualmente transmissíveis (DST) e do HIV, e sua eficácia contraceptiva mostram a importância deles e também como podem funcionar de maneira a fortalecer as mulheres na negociação sexual. Ainda na discussão sobre o controle da fecundidade, o abortamento ilegal, independente dos riscos à saúde, é apresentado, ainda hoje, como o último recurso de um enorme contigente de mulheres. As dificuldades enfrentadas por elas para o controle da fertilidade de maneira eficaz e segura colocam-nas, muitas vezes, diante da trágica opção entre uma gravidez indesejada e um abortamento provocado. Problema que ressalta a desigualdade social de nosso país, o abortamento provocado penaliza ainda mais as mulheres pobres que precisam recorrer a situações em que o procedimento é realizado sem condições de higiene, quando não são elas mesmas obrigadas a praticá-lo. Maior oferta de informação e mais e melhores serviços de contracepção são apontados como medidas que podem e devem ser adotadas de imediato para diminuir o nível de gravidez indesejada.

A morbi-mortalidade é abordada na terceira parte, a partir da discussão sobre os padrões e tendências em saúde reprodutiva no Brasil, ressaltando a importância do ponto de vista da saúde reprodutiva das mudanças do padrão de procriação e do aparecimento da AIDS nos anos 80. O artigo mostra como essa discussão permitiu, no âmbito da saúde, ampliar a visão do problema para além da dimensão biológica do discurso hegemônico, evitando restringir o debate sobre saúde e direitos reprodutivos apenas aos limites da ginecologia e obstetrícia.

A análise da mortalidade materna no Brasil no período de 1980 a 1993 mostra a terrível realidade de números, que chegam a ser até 25 vezes maiores do que nos países desenvolvidos, fato ainda mais perverso quando se sabe que até 98% dessas mortes são evitáveis. Embora essa análise possa estar prejudicada pela qualidade dos dados, o sub-registro de óbitos maternos é importante, os números já mostram uma realidade bastante difícil. Diferente de nos países desenvolvidos, nossa mortalidade ainda ocorre, principalmente, por complicações hipertensivas, hemorragias e infecções. O estudo da mortalidade materna revela, também, a complexidade de um problema que é influenciado por questões econômicas, políticas, sociais e biológicas, mas referido principalmente ao grupo das mulheres de baixa renda.

O artigo sobre a incidência e a mortalidade por câncer traz a discussão sobre como transformações biológicas, direta ou indiretamente associadas ao desenvolvimento de tumores em mulheres adultas, têm sido acarretadas pelas mudanças na vida reprodutiva das mulheres. O câncer de mama é hoje o tumor mais comum entre as mulheres das Regiões Sul e Sudeste do Brasil, ficando, no Centro-Oeste, Norte e Nordeste, em segundo lugar em relação ao câncer de colo. Este último apresenta, em nosso país, uma das maiores taxas de incidência e mortalidade do mundo, sendo a resolução desse problema mais uma tarefa gerencial de organização dos serviços de saúde do que de avanços científicos. O câncer de mama, em virtude de sua crescente expansão, é motivo de preocupação, já que as medidas para seu controle são as de diagnóstico precoce e não de prevenção. Os autores apontam que a divulgação de suas características de desenvolvimento e a ampliação da oferta de serviços realizando mamografias são hoje as principais estratégias disponíveis para um diagnóstico mais precoce melhorando as chances de sobrevida das mulheres afetadas.

A prioridade dada às questões relativas às doenças sexualmente transmissíveis no Brasil depois do aparecimento da AIDS e a magnitude dessa questão são tratadas no artigo sobre DST nas mulheres. A abordagem sindrômica de tais doenças preconizada pelo Ministério da Saúde, embora possa acarretar a prescrição desnecessária de alguns medicamentos, é eficaz, em virtude da escassez de recursos e das dificuldades diagnósticas. Entretanto, para as mulheres com DST que não apresentam sintomas, essa abordagem não pode ser utilizada, e em alguns trabalhos têm sido substituída pela adoção de marcadores de risco, tais como: idade e comportamento sexual. Essas mulheres são selecionadas para a realização de testes diagnósticos ou tratadas para infecções cervicais de maneira profilática. Ainda que a abordagem sindrômica seja capaz de diminuir a incidência das DST, é necessária uma abordagem diferenciada para, além disso, diminuir os efeitos secundários destas na mulher considerada de baixo risco. A autora aponta que isso só será possível com uma política de detecção de infecção cervical em mulheres assintomáticas dentro de uma abordagem mais global relacionada ao contexto sócio-cultural da mulher e das DST.

A importante discussão dos papéis de gênero e suas implicações, como a feminização e a pauperização da epidemia de AIDS, em outro artigo, mostra a necessidade de se conhecer a doença com base, também, em seu referencial social, cultural e político. A vulnerabilidade da mulher em face do HIV e a prevenção pelo sexo seguro são discutidas, ressaltando a luta pelos direitos reprodutivos dentro do contexto da doença. A testagem compulsória e a esterilização das mulheres soropositivas são apenas dois aspectos dessa luta. O artigo conclui que, uma vez que a doença toca em aspectos essenciais da vida humana, tais como: sexualidade, moral, relações de gênero e de poder, relações com a vida e a morte, somente quando se compreenderem os significados dessas interconexões, com uma abordagem integrada de sexualidade e de saúde, assim como de direitos reprodutivos, será possível enfrentar essa epidemia e criar respostas necessárias à autoproteção das mulheres.

A quarta parte cuida das questões ligadas aos serviços de saúde. A primeira abordagem fala sobre a avaliação dos serviços. O assunto é introduzido a partir do direito à saúde e da medicalização excessiva. O modelo de integralidade na assistência é apontado como o que deveria substituir o atual sistema que tende a seguir um modelo de especialização na clínica e de verticalidade nos programas. Embora tenham se expandido, ainda permanecem os problemas de acesso aos serviços de saúde, e a questão da qualidade do atendimento deve ser incorporada na avaliação dos serviços. Nesse aspecto, a medicalização excessiva causando possíveis iatrogenias, como no caso das cesarianas, ou a ineficácia da consulta pré-natal em diminuir a incidência da sífilis congênita são apontadas como exemplos da necessidade de avaliação da qualidade do atendimento. Como proposta para avaliar a qualidade, são sugeridos novos indicadores de resultados que estejam centrados nos direitos reprodutivos e sexuais, e os critérios éticos para conduzir a avaliação de serviços e tecnologia devem incluir, entre outros, eficácia, efetividade, eqüidade e a aceitabilidade do usuário.

A história do desenvolvimento e implementação do PAISM, em substituição aos programas de saúde materno-infantil que segmentavam a assistência e que não conseguiram impactar de maneira positiva os indicadores de saúde, é contextualizada com o processo da reforma sanitária e da temática do controle populacional na época. Conjunto de diretrizes e princípios formulados para orientar a assistência oferecida às mulheres, o PAISM exige, para sua implantação, ações e estratégias harmonizadas das diferentes instituições do SUS. É apontada a necessidade de ajustes e de adequações para se adaptarem os programas às novas situações epidemiológicas, como no caso da AIDS e da mortalidade das mulheres por doenças cardiovasculares. A dificuldade de implementação do PAISM, segundo a sua formulação, em virtude das dificuldades de se pôr em prática o SUS, mostram a necessidade de mobilização dos movimentos sociais, em especial o movimento de mulheres para ajudar na consolidação e implantação plena do programa.

Violência de gênero, saúde reprodutiva e serviços são analisados tendo como base as relações dos usuários com o serviço por meio das relações que estabelecem com seus profissionais no transcorrer das intervenções técnicas. A dificuldade de conciliar a realidade das usuárias com as orientações técnicas mostra como é difícil esse trabalho de ouvir, acolher e tecnicamente intervir, quando muitas vezes não é possível oferecer solução ao problema na realidade de suas vidas. Por outro lado, fugir do reducionismo biológico nesse atendimento, possibilitar a emergência dessas situações e a tentativa de solucioná-las mostra a possibilidade de relações mais simétricas no interior dos serviços. O trabalho aponta, então, para a necessidade de reorganização dos programas assistenciais no sentido de explorar as distintas concepções do feminino e de seus caminhos, encontrando alternativas mais eficazes para o trabalho.

A experiência do Município do Rio de Janeiro na implantação, dentro das perspectivas do PAISM, das ações de contracepção e assistência ao parto, mostra-nos as dificuldades de vencer as barreiras relativas não apenas às deficiências das estruturas dos serviços públicos, mas principalmente à resistência dos profissionais. Diante dessas dificuldades, a premissa de trabalhar a auto-estima do(a) profissional, estimular a reflexão sobre a própria prática e reformulá-la foi adotada, para viabilizar a implantação das ações planejadas. A experiência mostra como foi viável, ao mesmo tempo que se normatizava as ações de contracepção para toda uma rede básica, possibilitar que cada unidade de saúde trabalhasse dentro de suas próprias características sempre privilegiando nesta questão a autonomia da mulher. Em relação ao parto e nascimento, a experiência mostra como a proposta de discussão sobre a medicalização excessiva da assistência, a incorporação de outros profissionais e um olhar mais voltado para as reais necessidades da mulher nesses momentos possibilitaram uma reformulação no conceito de assistência para toda uma rede de maternidades.

Encerram esta quarta parte, as experiências do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, organização não governamental que, desde 1985, realiza um trabalho de atenção primária à saúde da mulher dentro de uma perspectiva feminista e humanizada. Questões como a invisibilidade da violência nos serviços, a naturalização e perpetração dessa violência e a sistemática violação das mulheres à sua integridade corporal são preocupações na atuação da organização, que aponta vários desafios para os serviços, entre os quais complexas transformações no atendimento, como novas demandas de formação, mudanças nos modelos de consulta e de procedimentos de rotina.

A quinta e última parte trata das questões de saúde reprodutiva e grupos sociais. Um trabalho realizado com funcionários de um banco estatal é motivo para reflexão sobre as tendências que se desenvolvem na classe média e que podem se disseminar mais tarde para as camadas populares. Entre estas, a opção das mulheres pela esterilização definitiva, fenômeno que está ocorrendo em todo o Brasil de modo generalizado, mostrando que mais do que uma decisão na intimidade de um casal está envolvido neste processo de decisão todo um contexto social mais amplo.

O recorte racial e a saúde reprodutiva trazem a discussão sobre o conceito de doenças raciais/étnicas e a necessidade de novos e mais completos modelos explicativos para o processo saúde/doença que considerem a condição biológica, as opressões de gênero e racial/étnica e as condições e locais onde as pessoas vivam. Anemia falciforme, miomatose uterina, diabetes tipo II e hipertensão arterial são citados como exemplos de patologias que demonstram esse recorte racial/étnico relativo à população negra.

O drama da mulher no mundo e no trabalho: o ser e o estar nos trazem a reflexão feita com base em duas pesquisas realizadas em São Paulo (Brasil) e Milão (Itália) com trabalhadoras assalariadas, nos anos de 1992, 1994 e 1995. Essas pesquisas tinham como objetivo apontar as convergências e diferenças entre as realidades dos dois países, no que diz respeito aos impactos das condições e da organização sexual do trabalho. A legislação trabalhista que reforça a linguagem patriarcal e biologicista da gravidez como doença, a maneira como a maternidade interfere negativamente no acesso das mulheres à carreira no mercado de trabalho e a sobrecarga das mulheres relativa à dupla jornada em decorrência da responsabilidade do trabalho doméstico são abordados.

Encerrando a quinta e última parte do livro, o capítulo Homens, saúde reprodutiva e gênero: o desafio da inclusão trata do papel da reprodução na construção da masculinidade. A construção social da masculinidade, a maneira, diferente daquela da mulher, com que o homem percebe seu corpo como reprodutivo e como o casamento e a paternidade são vivenciados são relatados valendo-se de uma pesquisa realizada com os empregados de uma empresa metalúrgica da cidade de São Paulo. Tentar desmistificar para os homens que seus corpos são simples e mecânicos, sem necessidade de conhecimento; entender as estratégias informativas diferenciadas para cada um dos sexos e trazer efetivamente os homens para a cena da saúde e dos direitos reprodutivos de maneira substantiva são os desafios apontados.

Questões da Saúde Reprodutiva não traz repostas. Tendo como base dados de trabalhos, experiências de serviços e do pensamento da academia, são apontados vários temas para reflexão, propostas de modificação de rotinas e de estruturação de serviços. De concreto, a necessidade de repensar o paradigma cartesiano da divisão mente/corpo, de pensar as questões de gênero, os direitos reprodutivos e sexuais e os aspectos sociais, entre outros, no cotidiano dos serviços, a fim de garantir uma atenção integral para a saúde das mulheres.

 

Marcos Augusto Bastos Dias
Maternidade Leila Diniz

 

 

A LIFE COURSE APPROACH TO CHRONIC DISEASE EPIDEMIOLOGY. Diana Kuh & Yoav Ben-Schlomo. New York: Oxford University Press, 1997. 317 pp.

ISBN 0-19-262782-1

 

Este volume, apresentado por Mervyn Susser, reúne contribuições de diversos autores, quase todos epidemiólogos britânicos. O livro representa uma substancial contribuição à literatura epidemiológica sobre as doenças crônicas não transmissíveis. Em primeiro lugar, trata-se de uma extensa e oportuna revisão das evidências do papel de determinantes sociais, atuando em diferentes etapas da vida, no que se refere ao risco dessas doenças na idade adulta. Não menos importante, representa um esforço bem-sucedido no sentido de contribuir para as teorias, ainda rudimentares, sobre a natureza dos mecanismos envolvidos na determinação combinada, social e biológica, desse conjunto de agravos.

A nosso ver, uma das razões que tornaram esse esforço bem-sucedido foi a realização, pelos autores, de ampla apreciação dos arcabouços intelectuais e institucionais que sustentaram as tendências e contratendências, neste século, no que diz respeito às teorias causais relativas a esse grupo de doenças.

O esforço dos autores, por sua vez, deve ser compreendido no contexto criado pela aparente progressiva corroboração da hipótese de Barker: a programação (programming) in utero, ou muito precocemente na infância, de parte substancial do risco de doença na idade adulta, a partir do efeito de condições nutricionais e hormonais sobre a estrutura de órgãos, tecidos e sistemas. A história dessa hipótese merece ser contada em detalhes à parte, mas em essência é a história de um programa de investigações coordenado por David Barker, da Unidade de Epidemiologia Ambiental do Medical Research Council britânico, sediada na Southampton University. Os resultados iniciais foram observados em coortes históricas, principalmente associações inversas entre peso ao nascer e risco de doença coronariana na idade adulta, e foram interpretados à luz de estudos em animais. Barker e seu crescente número de colaboradores vêm publicando incessantemente sobre a teoria da programação ao longo dos anos 90, de modo especial no British Medical Journal.

No livro aqui comentado, a hipótese de Barker é situada em seu contexto histórico e incorporada a um esquema conceitual mais amplo - a necessidade de integrar o estudo do efeito cumulativo sobre a saúde de determinantes precoces (em graus variados, não apenas intra-uterinos) e tardios no curso da vida. Toda uma vertente da pesquisa epidemiológica nesse campo, principalmente inglesa, é apresentada aos leitores na seção A do livro. Assume grande importância, para nós, que se divulgue o fato de que, nas primeiras décadas do século XX, o debate sanitário incluía a idéia das influências precoces e de períodos críticos - com ênfases diversas, era parte do debate nature versus nature e incorporava as novidades da psicanálise e da biologia.

Posteriormente, essa vertente perde vigor. A progressiva importância das epidemias de doença coronariana e de câncer de pulmão nos países industrializados, acompanhadas de êxitos na identificação de associações com fatores vigentes na idade adulta (tardios), como a dieta, a hipertensão e o fumo, levaram à minimização da importância de determinantes precoces. O estudo de Framingham e a coorte de médicos ingleses (Doll e Hill) são emblemáticos dessa fase.

Nos anos 70, entretanto, outra ordem de fatores passa a se conjugar: a incapacidade de se explicarem as variações sociais e geográficas como função da prevalência dos fatores de risco na idade adulta; os resultados limitados obtidos em intervenções para o controle de fatores de risco entre adultos; finalmente, a necessidade cada vez mais sentida de se estudar a epidemiologia dos próprios fatores de risco, ou a origem de seu aparecimento no curso da vida. Nessa nova conjuntura, volta a fazer parte do cenário um conjunto expressivo de estudos dedicados à exploração das influências precoces sobre o risco de doença entre adultos.

Na seção B, os resultados de muitos desses estudos são descritos. As evidências são consistentes no que se refere à associação entre baixo peso ao nascer e risco de doença coronariana e de aterosclerose subclínica, o mesmo se dando em relação a alguns de seus fatores de risco, como a resistência à insulina e a intolerância à glicose, associados a baixo índice ponderal ao nascer. No caso da hipertensão, o fenômeno do tracking - tendência à manutenção dos indivíduos nas mesmas posições relativas ao longo da vida - torna-se cada vez mais evidente. Em relação ao câncer de mama, fatores como altura, idade da menarca e idade ao primeiro filho são exemplos de exposições que podem exercer efeito cumulativo no tempo. Influências pré-natais no risco de câncer vêm sendo sugeridas em relação ao câncer de mama, e, em menor escala, em relação ao câncer de ovário, testículo e próstata. Em contraste, o papel desses fatores é ainda bastante especulativo no que tange às doenças respiratórias do adulto.

Na seção C (capítulo 7), os autores debatem em maior detalhe os vários desafios conceituais e metodológicos colocados pela hipótese de Barker, como, por exemplo, a necessidade da elaboração de hipóteses mais focalizadas e testáveis. O capítulo 8 é um dos pontos altos do livro, com a revisão de evidências que consubstanciam os conceitos de cadeias biológicas e sociais de risco e que ilustram suas complexas interações. Esses conceitos centrais da obra são reforçados adiante, nos três capítulos da seção D, pelo exame de tendências temporais e de gradientes geográficos (com ênfase nos estudos de migrantes) e sociais em relação ao risco de doença na idade adulta. Em conjunto, fica bastante reforçada a proposição geral dos autores, ou seja, a probabilidade de adoecer vai sendo modificada - acumulada ou minorada - ao longo das várias etapas de vida, de acordo com a configuração daquelas cadeias de risco.

As implicações das evidências mapeadas para a prática de saúde pública e para a pesquisa epidemiológica são discutidas na última parte do livro, seção E. Ali, são proporcionados aos leitores bons exemplos dos dilemas que freqüentemente emergem quando se busca traduzir evidências epidemiológicas em propostas de intervenção médico-sanitária. São efetuadas simulações de impacto e avaliados possíveis efeitos indesejados de um eventual esforço dirigido ao aumento do peso ao nascer de modo generalizado, como o risco aumentado de obesidade materna e de algumas neoplasias nesses futuros adultos.

Trata-se de obra fundamental para a correta apreciação de vertentes fundamentais - e freqüentemente negligenciadas - da história das idéias epidemiológicas sobre o papel de determinantes sociais na etiologia de algumas doenças crônicas do adulto. De modo especial, é uma boa fonte de reflexão sobre o potencial de fertilização cruzada entre disciplinas: hipóteses parcialmente corroboradas ou mesmo geradas por evidências epidemiológicas, como a hipótese de Barker, podem provocar esforços explicativos no âmbito de outras disciplinas (no caso, a fisiologia, embriologia etc.). Entre tantos outros exemplos, tal já havia ocorrido, na biologia e na física, após a publicação de estudos epidemiológicos sobre o possível efeito dos campos eletromagnéticos sobre a saúde.

A publicação de A Life Course Approach to Chronic Disease Epidemiology veio preencher uma importante lacuna no campo da epidemiologia das principais doenças crônicas do adulto. Somos tentados a especular sobre resultados benéficos da replicação do esforço desses autores, com a mesma consistência, para outras doenças e outras vertentes teóricas. Por um lado, facetas pouco enfatizadas da história das idéias causais na medicina e na epidemiologia poderiam ser evidenciadas, contribuindo para o debate epistemológico e da sociologia da ciência. Por outro, tais empreendimentos poderiam tornar-se fonte de subsídios mais sistemáticos para a elaboração de hipóteses causais sobre várias doenças. Em particular, poderiam inspirar hipóteses concretas sobre as relações intrincadas entre determinantes sociais e biológicos de agravos à saúde ao longo da existência humana. Arriscamos, por fim, um palpite: uma reavaliação em profundidade das relações entre condições infecciosas e não infecciosas (temas que os autores abordam apenas ligeiramente) pode representar um desses caminhos férteis.

 

Eduardo Faerstein
Instituto de Medicina Social
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

 

APRESENTANDO LOGOS: UM GERENCIADOR DE DADOS TEXTUAIS

 

Introdução

 

Uma tarefa usual em pesquisas qualitativas em vários recortes disciplinares (antropologia, psicologia, sociologia, história) é a necessidade de organizar e recuperar informações a partir de textos extensos e não estruturados, como transcrições de entrevistas, diários de campo e outros. Tipicamente, isso significa associar trechos dos documentos trabalhados a certas categorias de análise e agrupar os vários trechos identificados.

Como esse é um processo bastante interativo, esta descrição simplista, na prática, traduz-se num sem número de idas e vindas entre os documentos analisados e o material produzido com base neles, refinando a análise ao longo de seu próprio processo. Isso pode consumir bastante tempo do pesquisador e se tornar excessivamente tedioso.

Tendo em vista essas dificuldades, iniciei, há cerca de um ano, o desenvolvimento de um programa de computador, denominado Logos, descrito neste texto.

 

Descrição geral do programa

 

O programa armazena os documentos em registros num arquivo. Cada registro contém os seguintes campos:

• Um identificador único para cada documento, com até vinte caracteres.

• Um título com até oitenta caracteres.

• Uma identificação de fonte com até oitenta caracteres.

• Uma data de referência.

• Um resumo com até cerca de 32 mil caracteres.

• O texto do documento, sem limite de tamanho (exceto o espaço disponível em disco).

O arquivo tem índices para os quatro primeiros campos, permitindo que consultas à base de dados sejam feitas valendo-se de uma ordenação por qualquer deles. Além do arquivo de documentos, o programa gera um arquivo de categorias, que serão utilizadas para marcar segmentos de texto segundo os critérios do usuário. Cada categoria é identificada por um código de até vinte caracteres e um texto de definição com até cerca de 32 mil caracteres, sendo o arquivo ordenado pelos códigos, alfabeticamente. Um terceiro arquivo mantém o relacionamento entre as categorias e os documentos, permitindo a recuperação destes com base em critérios de pesquisa.

O programa permite ainda que se gerem relatórios de três tipos:

• Sumário, contendo apenas uma linha para cada documento, com os seus identificadores.

• Lista completa dos documentos, incluindo-se resumos e o texto correspondente.

• Lista de trechos selecionados segundo categoria.

O programa permite que se gerencie um número indeterminado de bases de dados, cada qual armazenada num diretório específico do disco rígido do computador.

 

Utilização do programa

 

Com o intuito de melhor esclarecer a operação do programa, descrevo a seguir os passos de uma sessão típica de utilização de Logos.

1) Selecionando o diretório de trabalho.

Antes de alimentar o sistema com dados, deve-se selecionar um diretório (ou pasta) que irá conter os arquivos da base de dados. Por padrão, o sistema irá fazê-lo no próprio diretório onde foi instalado, mas é recomendável selecionar um diretório específico, com um nome significativo, para este fim. O programa permite não apenas selecionar um diretório, mas também criar novos diretórios para uso do sistema.

2) Criando um novo registro.

Para cada documento que será utilizado, deve-se criar um registro correspondente. Os campos Título, Fonte e Data, bem como o identificador do registro, permitem a busca de registros específicos no arquivo, enquanto o sumário é apresentado numa tela de visualização da base de dados corrente, o que permite identificar rapidamente o registro desejado.

O texto do documento pode ser editado diretamente no programa, que possui uma funcionalidade limitada para edição, ou pode ser importado de um texto pronto. A importação do documento é feita lendo-se um arquivo do tipo RTF ou TXT, previamente gerado em qualquer editor de textos do Windows.

3) Criando uma nova categoria.

A marcação de trechos dos documentos arquivados é baseada em códigos, ou categorias, definidos pelo usuário. É possível criar categorias à medida que o trabalho prossegue, em qualquer ponto da execução da tarefa. A cada categoria é associada uma descrição, que é impressa no relatório correspondente.

4) Marcando texto com códigos.

Na entrada de dados ou, posteriormente, editando-os, é possível marcar trechos dos textos com uma determinada categoria; antes e depois do trecho selecionado são introduzidas marcações especiais, que são utilizadas pelo programa, baseadas no código da categoria desejado.

5) Recuperando o texto marcado.

Um dos relatórios do programa permite que se selecione uma determinada categoria, criando uma lista com todos os trechos de texto marcados com ela. Essa lista é composta pelos seguintes itens:

• código da categoria;

• a definição da categoria;

• para cada ocorrência no arquivo, o identificador do registro com o trecho selecionado, seguido do texto propriamente dito.

O relatório é gerado em tela, podendo ser então: copiado para a área de transferência do Windows® e colado num texto aberto em qualquer editor; salvo como arquivo (do tipo RTF); ou, ainda, impresso em papel.

 

Notas técnicas

 

Logos foi desenvolvido em C++. O formato de arquivo escolhido para armazenar os dados foi o DBF, usado, entre outros, pelo FoxPlus® e pelo Visual dBase®. A opção por esse formato deveu-se à sua ampla disseminação, sendo suportado por outros gerenciadores de bancos de dados, mesmo quando estes têm um formato próprio de armazenamento, como é o caso do MSAccess®.

Os campos de formato variável, como o sumário e o texto do documento, são armazenados em campos memo. O texto é armazenado com o formato RTF, o que significa que não pode ser editado diretamente.

Os índices usam o formato NDX, do dBase®, e podem ser regerados pelo próprio programa caso sofram algum problema.

Cópias de segurança dos dados podem ser feitas facilmente, bastando copiar todo o conteúdo do(s) diretório(s) de trabalho.

 

Observações finais

 

Este texto apresenta as operações básicas do programa; evidentemente, a melhor forma de avaliá-lo é efetivamente empregando o mesmo em situações de trabalho. Espero que esta descrição sucinta e algo simplista seja o suficiente para interessar potenciais usuários na sua utilização.

Os testes atualmente em curso têm apontado para uma facilitação expressiva do trabalho de análise de textos, permitindo que o pesquisador se dedique de fato aos aspectos substantivos de sua tarefa, reduzindo o tempo gasto em atividades rotineiras.

O programa está disponível, gratuitamente, para os pesquisadores que desejem utilizá-lo. Deve-se ter em mente, contudo, que se trata de um produto em desenvolvimento. Isso significa, por um lado, que alguns problemas podem surgir na sua utilização, mas, por outro, que sugestões para seu aprimoramento serão bem-vindas.

Os interessados em testar Logos podem contatar o autor por meio do correio eletrônico para receber sua cópia. O programa de instalação é distribuído num único arquivo executável, chamado InstLogos.exe, com 1.352 kBytes de tamanho (pode ser armazenado num único floppy de 3 1/4, por exemplo). Para poder utilizá-lo, deve-se dispor de um microcomputador com Microsoft Windows® 95 ou superior e, pelo menos, 16 MB de RAM (embora seja recomendável dispor de, no mínimo, 32 MB). A única exigência feita é que se tornem parceiros no seu desenvolvimento.

 

Kenneth Rochel de Camargo Jr.
Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio de Janeiro
R. São Francisco Xavier 524, 7o andar, Bl. D

Rio de Janeiro, RJ 20559-900

kenneth@uerj.br

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br