ARTIGO ARTICLE
Cora L. A. Post 1 | Entendendo a baixa prevalência de déficit de peso para estatura em crianças brasileiras de baixo nível sócio-econômico: correlação entre índices antropométricos Understanding the low prevalence of weight-for-height deficit in lower-income Brazilian children: correlations among anthropometric indices |
1 Centro de Pesquisas Epidemiológicas, Departamento de Nutrição, Universidade Federal de Pelotas. C. P. 464, Pelotas, RS 96001-970, Brasil. clapost@ufpel.tche.br 2 Departamento de Medicina Social, Universidade Federal de Pelotas. C. P. 464, Pelotas, RS, 96001-970, Brasil. | Abstract The sample for this study consisted of 386 children from six to 59 months of age. The objective was to study the association between wasting and abdominal circumference. Thirteen anthropometric measurements were taken: weight, height or length, crown-rump length, 4 circumferences, 4 skin fold thicknesses, and 2 breadths. Muscle, fat, and total upper arm areas and leg length were calculated. Indices of body proportionality were obtained by dividing the anthropometric variables by height. Height-for-age, weight-for-age, and weight-for-height deficits were 25.9%, 14.4%, and 3.5%, respectively. The smallest and lightest children were those with the highest abdominal circumferences divided by height. According to this study, abdominal circumference for Brazilian children without height-for-age deficit is, on average, 1.2 cm larger than for US children. Using this as a basis, the study calculated that prevalence of weight-for-height deficit would increase from 3.5% to 7.0% by increasing 2 cm in the abdominal circumference. The low prevalence of wasting and the high prevalence of stunting as indicated by several Brazilian studies could be explained partially by larger mean abdominal circumference values. Key words Height Weight; Anthropometry; Nutritional Status; Nutritional Assessment Resumo Foram estudadas 386 crianças entre seis e 59 meses de idade, residentes em área de baixa renda do Município de Pelotas, Rio Grande do Sul, com o objetivo de avaliar a associação entre o déficit de peso para estatura e o perímetro abdominal. Foram tomadas 13 medidas antropométricas (peso, estatura, estatura tronco-cefálica, quatro perímetros, quatro pregas cutâneas e duas larguras). Calcularam-se as áreas muscular, adiposa e total do braço, e o comprimento de pernas. Índices de proporcionalidade corporal foram obtidos, dividindo-se os valores das variáveis antropométricas pela respectiva estatura. Déficits de estatura para idade, peso para idade e peso para estatura foram de 25,9%, 14,4% e 3,5%, respectivamente. O perímetro abdominal dividido pela estatura mostrou-se elevado em crianças baixas e menos pesadas. Uma redução média de 2 cm no perímetro abdominal entre crianças pelotenses sem déficit nutricional elevaria a prevalência de déficit de peso para estatura dos atuais 3,5% para 7,0%. As baixas prevalências de déficit de peso para estatura na presença de elevados déficits de estatura para idade, conforme descrito em diversos estudos brasileiros, podem ser parcialmente explicadas por aumentos no perímetro abdominal. |
Introdução
A Organização Mundial de Saúde recomenda o uso dos índices estatura para idade e peso para estatura para avaliar o estado nutricional de pré-escolares em estudos populacionais (WHO, 1986). Recomenda, ainda, como referência para as comparações, os dados antropométricos de crianças norte-americanas, publicados pelo National Center for Health Statistics (NCHS, 1978). São consideradas com déficit antropométrico aquelas crianças cujos valores de estatura para idade ou peso para estatura forem inferiores a -2 desvios-padrão em relação à população de referência (WHO, 1986, 1995).
Entretanto, em inúmeros estudos envolvendo populações latino-americanas de baixo nível sócio-econômico foram encontradas altas prevalências de déficit de estatura para idade e, simultaneamente, prevalências inexpressivas de déficits de peso para estatura. Esta característica nutricional também tem sido encontrada em estudos realizados em alguns Estados e regiões brasileiras (São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Nordeste, Norte, Centro-Oeste) (Monteiro, 1988; Molina et al., 1989; Post et al., 1996; BENFAM/DHS, 1997), assim como em outros países (Roche et al., 1990; Victora, 1992; De Onis et al., 1993; WHO, 1997).
Parece paradoxal que populações com elevadas prevalências de déficit linear, resultante de processo de desnutrição de longa duração, possam estar livres de déficit de peso para estatura, determinado por fatores de risco que incidem de forma aguda, mas que podem ocorrer simultaneamente com a exposição crônica (WHO,1995). A utilização isolada ou uma interpretação inadequada deste último indicador pode levar à falsa conclusão de que não existe déficit nutricional em determinados grupos (WHO,1995).
Estudo realizado em Lima, Peru (Boutton et al., 1987; Trowbridge et al., 1987) buscou entender esta aparente contradição através da análise de inúmeras variáveis antropométricas e também da avaliação da composição corporal de água em crianças menores de cinco anos de idade. Os pesquisadores concluíram que a ausência de déficit de peso para estatura nesta amostra poderia ocorrer, parcialmente, em virtude da elevada quantidade de água corporal, uma vez que não foram encontradas massa muscular e adiposa aumentadas. Neste estudo, no entanto, não foi avaliado o perímetro abdominal das crianças.
No presente estudo, pretende-se testar a hipótese de que a ausência de déficit de peso para estatura em população com elevada prevalência de déficit linear, comparativamente ao NCHS, poderia ser explicada pelo perímetro abdominal aumentado, descrito por alguns autores (Jelliffe, 1968; Quarentei, 1976) como uma característica de crianças com déficit nutricional.
Metodologia
Foram estudadas 386 crianças com idades entre seis e 59 meses, residentes no Bairro Getúlio Vargas, considerado, pela Prefeitura Municipal de Pelotas, a área de mais baixo nível sócio-econômico da cidade. Das 391 crianças detectadas como elegíveis para participarem do estudo, não foi possível localizar uma e para outras quatro crianças houve recusa dos pais.
O tamanho da amostra foi dimensionado levando-se em conta que a principal análise a ser realizada seria a de correlação. Foram utilizados os seguintes parâmetros: nível de confiança de 95%, coeficiente de correlação (r) de, pelo menos, 0,2 e erro (w) máximo aceitável de ±0,1. Para calcular o tamanho da amostra, partiu-se da fórmula do erro padrão da correlação [(1-r2)n] (Armitage & Berry, 1990), definindo-se o erro máximo aceitável (w) como [1,96 (1-r2)n]. A Tabela 1 mostra os tamanhos de amostras(n) necessários para detectar diferentes coeficientes de correlação.
Assim sendo, uma amostra de 391 crianças (355 mais 10% para compensar possíveis perdas e recusas) seria suficiente para estimar um coeficiente de correlação de, no mínimo, 0,2 com erro máximo de ±0,1. Nem sempre foi possível obter todas as informações para cada uma das crianças, por isso, algumas vezes, aparecem pequenas diferenças no número total de crianças para as quais se dispõe de dados, especialmente para as variáveis antropométricas.
A coleta de dados foi realizada nos domicílios, através de questionário e da tomada de medidas corporais. A entrevista foi realizada com a mãe ou responsável pela criança, desde que este último tivesse 18 anos ou mais.
O treinamento para a aplicação dos questionários baseou-se nas recomendações de Barros & Victora (1991). Foram coletadas informações demográficas, sócio-econômicas, de morbidade infantil e antropométricas da criança e da mãe. Para a coleta de dados, foram selecionadas entrevistadoras (estudantes de Nutrição), que trabalharam em duplas, pois a tomada das medidas antropométricas exigia dois observadores.
Foram tomadas as seguintes medidas corporais: peso, estatura (altura, medida com a criança em pé, para aquelas com dois anos de idade ou mais, ou comprimento, medido com a criança deitada, para as demais), estatura tronco-cefálica, perímetros (cefálico, torácico, braquial e abdominal), pregas cutâneas (tricipital, bicipital, subescapular e supra-ilíaca) e larguras (biacromial e biilíaca). Para a tomada de peso, utilizou-se uma balança CMS-PBW 235 fabricada pela CMS Weighting Equipment (Londres), com capacidade de 25 kg e precisão de 100 g. A estatura e a estatura tronco-cefálica foram obtidas utilizando-se um antropômetro portátil, desenvolvido no Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas. Para a tomada das demais medidas foram usados medidores de pregas cutâneas John Bull (Londres) e CESCORF (Centro de Recondicionamento Físico, Porto Alegre, RS), fitas métricas Lufkin Y613CMD não-extensíveis com sete milímetros de largura para a tomada de medida dos perímetros e, ainda, paquímetros para as larguras (CESCORF).
As técnicas antropométricas foram as recomendadas por Cameron (1984) e Lohman et al. (1988), e, a partir de algumas variáveis, foram calculados os seguintes índices e razões:
Áreas adiposa, muscular e total do braço: foram utilizadas as equações de Frisancho (1990), que se baseiam nas medidas de prega cutânea tricipital e perímetro braquial;
Proporção estatura tronco-cefálica/estatura total: percentual de estatura tronco-cefálica em relação à estatura total;
Comprimento de pernas: estatura total menos a estatura tronco-cefálica (Martin et al., 1988);
Perímetro abdominal/peso: perímetro abdominal dividido pelo peso;
Perímetro abdominal/estatura: perímetro abdominal dividido pela estatura.
Durante dois meses, seis entrevistadoras foram submetidas a intensivo treinamento sobre tomada de medidas antropométricas. Dentre estas, foram selecionadas as quatro que apresentaram melhor desempenho. A padronização das antropometristas encontra-se detalhada em outra publicação (Post et al., no prelo) e baseou-se na comparação entre os valores dos erros técnicos das medidas (TEM) do presente estudo e aqueles do NCHS, publicados por Cameron (1984).
Para a criação do banco de dados, duas entradas foram realizadas por diferentes digitadores, utilizando-se o programa Epi-Info. A avaliação do estado nutricional foi realizada através da rotina Epinut do Epi-Info, que utiliza a referência norte-americana do National Center for Health Statistics (NCHS-OMS, 1978) para as comparações. Neste estudo, foram consideradas com déficit de peso ou estatura as crianças com índices de peso para idade, estatura para idade ou peso para estatura inferiores a dois desvios-padrão abaixo da mediana da referência norte-americana (NCHS, 1978; WHO, 1986).
A análise estatística incluiu o cálculo dos coeficientes de correlação e regressão (Kirkwood, 1988) entre as variáveis peso para estatura, perímetro abdominal e as demais variáveis antropométricas. O ajuste para idade foi realizado em razão da amplitude da faixa etária das crianças estudadas e do importante efeito da idade sobre as variáveis antropométricas. Além disso, procedeu-se o ajuste simultâneo para o quadrado da idade, pois uma equação quadrática mostrou ajuste bastante superior ao da equação linear. Este ajuste permitiu o cálculo do coeficiente de correlação parcial (ajustado).
Através de análise multivariada, em que entraram as medidas antropométricas (larguras biacromial e biilíaca; perímetros cefálico, braquial, torácico e abdominal; pregas cutâneas tricipital, bicipital, subescapular e supra-ilíaca; e estatura tronco-cefálica), calculou-se o coeficiente de regressão (b), entre o perímetro abdominal e o índice peso para estatura (em escore-Z). Foi, então, possível estimar quais seriam as prevalências de déficit de peso para estatura, a partir da simulação de que as crianças deste estudo teriam perímetros abdominais menores do que aqueles, de fato, encontrados. Estes cálculos basearam-se na fórmula para conversão de escore-Z médio da amostra para prevalência de déficit (WHO, 1995). A fórmula final utilizada foi:
Prevalência estimada de déficit peso/estatura = probito [-2-(b. D + escore-Z médio de PA observado)/DP]
onde:
b = coeficiente de regressão do escore-Z de Peso/Estatura (P/E) sobre perímetro abdominal (PA);
D = diferença estimada entre a média de PA de crianças brasileiras e do NCHS;
Z médio = escore-Z médio de P/E na amostra;
DP = desvio padrão do escore-Z médio de P/E na amostra.
Resultados
Dentre as 386 crianças, 52% eram meninos e 58% eram brancas (Tabela 2). A distribuição etária foi relativamente uniforme.
A Tabela 3 apresenta alguns fatores de risco para déficit antropométrico. Seis por cento das mães tinham idades entre 15 e 19 anos, e 18% tinham, pelo menos, quatro filhos. Nos 12 meses anteriores à entrevista, quase 24% das crianças haviam sido internadas, sendo 8,3% por diarréia, 8,5% por pneumonia e quase 18% foram internadas por outras causas.
Quanto à condição sócio-econômica das famílias, observa-se que quase 19% das mães e 13% dos pais não eram alfabetizados e que 77% das famílias dispunham de um único cômodo para dormir (Tabela 3). Trinta e cinco por cento das famílias não contavam com água encanada dentro do domicílio, enquanto que 84% não possuíam sanitário ou dispunham apenas de instalações precárias. Em relação à posse de bens domésticos, um quarto das famílias não possuía rádio, 41% não possuíam televisor e a maioria (73%) não dispunha de geladeira. Quase 40% das famílias informaram que tiveram renda familiar menor ou igual a um salário mínimo no mês anterior à entrevista, enquanto que 48% das mães trabalharam fora de casa nos 12 últimos meses.
A Tabela 3 mostra ainda que quase 43% das crianças tiveram peso ao nascer inferior a 3,0 kg. As prevalências de déficit de estatura para idade, de peso para idade e de peso para estatura foram de 25,9%, 14,4% e 3,5%, respectivamente. Médias e desvios-padrão dos índices antropométricos podem ser vistos na Tabela 4. A avaliação destes parâmetros, entretanto, deve levar em consideração que as idades das crianças variaram entre seis e 59 meses. Tendo em vista que a maioria destes índices apresentam alguma associação com a idade da criança (exceto os índices de estatura para idade e de peso para estatura expressos em escore-Z), houve necessidade de ajuste para idade nas análises subsequentes.
As Tabelas 5 e 6 apresentam os resultados das análises de correlação e regressão entre os índices de peso para estatura, perímetro abdominal e as demais variáveis antropométricas avaliadas neste estudo.
As correlações brutas e ajustadas entre o peso para estatura e as demais variáveis antropométricas estão apresentadas na Tabela 5. Praticamente todas as associações foram positivas e estatisticamente significativas (p<0,05). Na análise bruta não foi encontrada associação estatisticamente significativa apenas com o índice de proporção de estatura tronco-cefálica em relação à estatura total (r = 0,05; p>0,05). Após o ajuste, praticamente todos os valores dos coeficientes de correlação apresentaram algum nível de elevação em relação à análise bruta. A associação entre o peso para estatura e o comprimento de pernas perdeu a significância estatística após o ajustamento, enquanto que a associação entre o peso para estatura e a proporção estatura tronco-cefálica/estatura total tornou-se estatisticamente significativa.
Os índices antropométricos relacionados à massa muscular e adiposa (peso; pregas cutâneas; perímetros torácico, braquial e abdominal; e áreas do braço) encontram-se entre aqueles que apresentaram os mais elevados coeficientes de correlação com o peso para estatura (r >0,45), tanto na análise bruta quanto na ajustada para idade.
Na Tabela 6 são apresentados os resultados de correlação e de regressão entre o perímetro abdominal e os demais índices antropométricos. Da mesma forma como na análise anterior, em relação ao peso para estatura, pode-se observar que o perímetro abdominal e as demais variáveis antropométricas apresentaram-se positiva e significativamente correlacionadas. Entretanto, o ajustamento para idade provocou uma redução em grande parte dos coeficientes de correlação obtidos, enquanto outros aumentaram ou praticamente não se alteraram, distintamente ao que ocorreu com as correlações anteriormente descritas.
A magnitude das associações entre perímetro abdominal e larguras biacromial e biilíaca diminuiu após ajustamento para idade, mas as associações permaneceram estatisticamente significativas. Por outro lado, a força das associações com pregas cutâneas bicipital, subescapular e supra-ilíaca aumentou, sendo que a correlação com a prega cutânea tricipital permaneceu praticamente inalterada e a associação com o peso reduziu-se.
A análise multivariada entre peso para estatura em escore-Z e as demais variáveis antropométricas apresentou resultados estatisticamente significativos para os perímetros braquial, abdominal e cefálico, e estatura tronco-cefálica (Tabela 7). O perímetro abdominal apresentou o segundo maior coeficiente de regressão múltipla, sendo superado apenas pelo coeficiente do perímetro braquial. Nesta análise, os coeficientes estão ajustados para as demais variáveis presentes no modelo.
Para simular qual seria o efeito do perímetro abdominal sobre a prevalência de déficit de peso para estatura na amostra de crianças pelotenses de baixo nível sócio-econômico, utilizaram-se dados publicados por Snyder na faixa entre 13 e 60,9 meses de idade (Snyder et al., 1975), a única referência norte-americana para esta medida (A. Roche, comunicação pessoal). De posse destes dados, foi possível simular o impacto do excesso de perímetro abdominal sobre a prevalência de déficit de peso/estatura entre as crianças pelotenses. Por exemplo, dado que a média de escore-Z de peso para estatura em nossa amostra foi de -0,22 e o desvio-padrão igual a 0,88, uma redução de 2cm no perímetro abdominal (tornando o perímetro abdominal das crianças pelotenses similar ao das norte-americanas), implicaria em uma redução média de 2b (coeficiente de regressão), ou seja, aproximadamente 0,24 (2 x 0,12) escore-Z. A seguir, utilizando-se uma transformação probítica (WHO, 1995), foi possível estimar uma prevalência de déficit de peso para estatura (inferior a -2 escores-Z) igual a 7,0% (DP = 0,88). Se a diferença no perímetro abdominal fosse de 3 cm, o déficit de peso para estatura seria 9,0%, e de 5,3% para uma diferença de 1cm no perímetro abdominal.
Crianças pelotenses sem déficit apresentaram perímetros abdominais sistematicamente maiores do que as norte-americanas. As diferenças médias foram de 3,1cm para crianças de 13 a 24,9 meses; 2,5cm para aquelas entre 25 e 36,9 e entre 37 e 48,9 meses; e de 2,2cm para crianças de 49 a 60,9 meses. Crianças menores de um ano de idade não puderam ser comparadas devido a diferenças importantes nas técnicas antropométricas empregadas.
Com o objetivo de se obter um novo índice que pudesse oferecer uma noção de proporcionalidade, procedeu-se a divisão do perímetro abdominal pela respectiva estatura da criança. Foram, então, avaliados os coeficientes de correlação brutos e ajustados para idade, entre perímetro abdominal/estatura e estatura para idade (r= -0,29; p<0,001 e r = -0,38; p<0,001, respectivamente), em escores-Z. As associações entre proporção perímetro abdominal/estatura e os índices peso para estatura e estatura para idade foram estatisticamente significativas, mas com sentidos opostos.
A mesma análise foi realizada dividindo-se o perímetro abdominal pelo peso. As associações foram estatisticamente significativas e a correlação negativa ocorreu da mesma forma como para o índice peso para estatura.
Discussão
As crianças estudadas pertenciam a famílias com claras características de baixo nível sócio-econômico. Esta condição era necessária para testar a hipótese de que crianças com déficit de estatura para a idade apresentariam também outras medidas antropométricas alteradas, entre elas, o perímetro abdominal. Por essa razão, a área selecionada para a coleta de dados deste estudo foi uma das áreas mais carentes do município de Pelotas, esperando-se, portanto, alta prevalência de déficit de estatura para idade. O estudo de alguns clássicos fatores de risco à saúde infantil (Tabela 3) comprovam a baixa condição sócio-econômica da amostra.
A comparação destes resultados com os de pesquisa anterior que cobriu uma amostra representativa das crianças nascidas em 1993, em Pelotas (Tomasi et al., 1996), permite evidenciar a situação de desvantagem social e econômica das crianças do presente estudo. Por exemplo, a prevalência de famílias com renda familiar igual ou inferior a um salário mínimo (38%) é elevada em relação às famílias da coorte de 1993, quando esta não passou de 19%. O mesmo ocorreu em relação à ausência de água encanada no domicílio: dentre as crianças da coorte, 15% não dispunham de água dentro de casa e na presente amostra, 35%. Foram melhores também os resultados da coorte quanto às freqüências de mães não alfabetizadas (2,6% versus 19%) e à altura materna inferior a 150,0 cm (4,6% versus 22%).
As crianças desta amostra também apresentaram piores condições nutricionais do que as crianças nascidas em 1993, em Pelotas (Post et al., 1996), cujas prevalências de déficits antropométricos foram 6,1%, 3,7% e 0,9% de estatura para idade, peso para idade e peso para estatura, respectivamente.
O índice peso para estatura esteve significativa e positivamente associado com praticamente todas as variáveis estudadas (Tabela 5), podendo, então, ser interpretado como resultante do tamanho global da criança.
A elevação dos valores dos coeficientes de correlação, após ajustamento para idade, sugere que a análise bruta estaria subestimando a força da associação entre a relação peso para estatura e os indicadores antropométricos. Após este ajuste, a única variável não associada com o peso para estatura foi o comprimento de pernas. Este achado faz sentido, pois crianças com pernas mais longas devem apresentar peso para estatura inferior ao de crianças ditas "mais troncudas".
Os índices que apresentaram as mais elevadas correlações com peso para estatura foram aqueles que classicamente representam a composição corporal. Este resultado não chega a ser surpreendente, uma vez que o índice peso para estatura é recomendado para avaliar especificamente as recentes alterações de peso (WHO, 1986), refletindo, portanto, as modificações de composição corporal das crianças. Comparando-se os coeficientes de correlação entre peso para estatura e pregas cutâneas tricipital, subescapular e supra-ilíaca, observa-se que estes foram muito semelhantes entre as crianças peruanas (Trowbridge, 1987) e as pelotenses da mesma faixa etária. Os valores destes coeficientes entre as crianças peruanas foram 0,49, 0,59 e 0,63, respectivamente.
O perímetro abdominal também esteve positivamente associado com todas as demais variáveis (Tabela 6). A redução na magnitude destas associações, após o ajuste, sugere que parte da força desta associação ocorria em virtude das diferenças de idades entre as crianças. Apesar disso, as associações permaneceram estatisticamente significativas.
A magnitude da associação entre o perímetro abdominal e larguras biacromial e biilíaca (r>0,40) e, ainda, perímetro torácico (r = 0,70), indicadores de dimensões do tronco, mostra que o perímetro abdominal reflete também a dimensão da estrutura óssea. Por outro lado, sua associação com pregas cutâneas mostra que o mesmo reflete, ainda, a composição corporal.
Assim sendo, nesta amostra, não se poderia afirmar que as crianças com perímetro abdominal mais elevado apresentariam pouca massa muscular ou adiposa, pois são elevados e positivos os coeficientes de correlação com as áreas muscular e adiposa do braço.
A análise multivariada mostrou que apenas quatro variáveis apresentaram efeitos estatisticamente significativos sobre o índice peso para estatura, entre elas os perímetros braquial e abdominal. As demais variáveis, embora tivessem apresentado coeficientes de correlação elevados e associações estatisticamente significativas na análise de regressão simples, foram eliminadas na análise multivariada, por estarem associadas a uma ou mais das quatro variáveis mantidas neste modelo. A inclusão destas, portanto, eliminou o poder explicativo das demais, que perderam a significância estatística. De acordo com a primeira hipótese deste estudo, o perímetro abdominal aumentado poderia, então, explicar a reduzida magnitude de déficits de peso para estatura. Isto foi confirmado pelo marcado aumento nas prevalências estimadas a partir da simulação de que os perímetros abdominais das crianças pelotenses seriam semelhantes aos de crianças norte-americanas. Mesmo uma redução de dois centímetros na média do perímetro abdominal aumentaria a prevalência de déficit de peso para estatura em nossa amostra de 3,5% para 7,0%, um nível bastante alto se comparado à maioria dos estudos brasileiros (Cesar et al., 1996; Victora et al., 1998). Portanto, as baixas prevalências de déficits de peso para estatura comumente encontradas em estudos com crianças latino-americanas, mesmo quando em presença de elevados déficits de estatura para idade, podem, parcialmente, ocorrer em razão de um perímetro abdominal maior entre as nossas crianças. Por outro lado, é pouco provável que o perímetro braquial tenha influência tão expressiva sobre o peso das crianças em relação à estatura. O perímetro cefálico, embora com associação estatisticamente significativa, apresentou coeficiente de regressão com valor muito inferior aos demais.
Quando se observa o efeito do perímetro abdominal dividido pelo peso ou estatura, e, portanto, se passa a investigar a proporção entre abdômen e o resto do corpo, nota-se que crianças baixas e menos pesadas têm maior perímetro abdominal. Entretanto, deve-se ter cuidado ao interpretar a correlação entre perímetro abdominal/estatura e estatura para idade, pois a variável estatura está presente em ambos os índices, como denominador no primeiro e numerador no segundo (Haaga, 1986). Os resultados, utilizando-se perímetro abdominal/peso, foram muito semelhantes, o que reforça a hipótese de que, efetivamente, crianças pequenas (baixas e magras) tenham perímetro abdominal relativamente aumentado.
Portanto, os presentes resultados - as associações encontradas entre perímetro abdominal e peso para estatura na análise multivariada, os achados da simulação realizada e os maiores perímetros abdominais relativos à estatura em crianças pequenas - apóiam a hipótese de que o perímetro abdominal aumentado seria parte da razão pela qual as crianças latino-americanas apresentam baixas prevalências de déficit de peso para estatura na presença de altas prevalências de déficit de estatura para idade.
Agradecimentos
À Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) pelo financiamento (AMR 92/08518-1); ao Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Pelotas, pelo fornecimento de material de consumo e instrumentos para a coleta de medidas antropométricas; ao Dr. Saul S. Morris, pela orientação quanto ao cálculo estatístico para determinação do tamanho amostral. Ao Centro de Recondicionamento Físico (CESCORF), pelo desenvolvimento e doação de instrumentos para a coleta de medidas antropométricas.
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