ARTIGO ARTICLE

 

 

 

 

 

Stela Nazareth Meneghel1
Marcia Camargo2
Lúcia R. Fasolo2
Dioga Ana Mattiello1
Renata C. R. da Silva1
Teresa Cristina Bruel Santos1
Ana Lúcia Dagord2
Adriana Reck2
Luciana Zanetti2
Márcia Sottili2
Maria Angela Teixeira2


Mulheres cuidando de mulheres: um estudo sobre a Casa de Apoio Viva Maria, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Women caring for women: a study on the "Viva Maria" shelter, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil

 

1 Curso de Medicina, Universidade Luterana do Brasil. Rua Miguel Tostes 101, Canoas, RS 92420-280, Brasil. smeneghel@hotmail.com 2 Secretaria Municipal de Saúde. Av. João Pessoa 325, 4o andar, Porto Alegre, RS 90040-000, Brasil

 

  Abstract This research was conducted in Porto Alegre, Rio Grande do Sul, with a sample of battered women selected from a government shelter called the "Casa Viva Maria". We analyzed data on 110 women staying at the shelter during the previous two years (January 1996-June 1998). The profile of the women was as follows: abused women were young (mean age 29 years), all had low socioeconomic status, 12% were illiterate, 21% were black, 80% reported frequent abuse by their partners, and 18% had returned to violent homes. The researchers visited 34 former lodgers from the shelter and invited them to participate in a series of evaluation workshops. A total of 118 persons, including mothers and children, attended three evaluation meetings. During this process, researchers encouraged participants to express opinions, perceptions, and feelings about their past experience in the shelter and their own concept of violence. Finally, a focal group was organized with the "Viva Maria" staff members. Female workers reported how their job had been helpful for their personal development and had helped change their own lives.
Key words Domestic Violence; Battered Women; Spouse Abuse; Women's Health

Resumo Este trabalho teve como objetivo obter dados a respeito de mulheres vitimizadas que são atendidas em uma casa abrigo governamental denominada "Casa de Apoio Viva Maria", situada na cidade de Porto Alegre. Analisaram-se informações referentes a 110 mulheres que estiveram albergadas na casa durante os últimos dois anos - janeiro de 1996 a junho de 1998. O perfil da clientela mostrou que as mulheres eram jovens - em média, 29 anos; todas de baixa renda; 12% analfabetas, 21% negras, 80% delas com história de violência doméstica freqüente. Além disso, 18% destas mulheres retornaram à relação com o companheiro violento. Foram efetuadas visitas domiciliares a 34 ex-moradoras, convidando-as a participar de uma série de oficinas de avaliação. Um total de 118 pessoas - mães e crianças - integrou os três encontros de avaliação. Durante estes, os pesquisadores estimularam as participantes a expressar suas opiniões, percepções e sentimentos a respeito da experiência vivida na casa abrigo, assim como seus conceitos no tocante à violência. Finalmente, realizou-se um grupo focal com a equipe técnico-administrativa da casa. As trabalhadoras enfatizaram o quanto esse tipo de trabalho tem sido útil para seu desenvolvimento pessoal e auxiliou a modificar suas vidas.
Palavras-chave Violência Doméstica; Mulheres Maltratadas; Maus Tratos Conjugais; Saúde da Mulher

 

 

"Nós viemos todas de lugares, níveis sociais, educação diferentes, então estas diferenças tem que nos unir e não desunir. Todas nós, apesar das diferenças, temos um ponto comum. O que é? O sofrimento. A dor. E é uma dor igual para todas. Porque todas nós sofremos" (M. M. A. G.)

 

 

Introdução

 

A Casa de Apoio Viva Maria de Porto Alegre (CAVM) é um abrigo protegido para mulheres em situação de violência doméstica e sexual, na qual correm risco de vida e/ou de novo episódio de agressão grave. Desenvolve atendimento psicológico, jurídico, orientação para o trabalho e atenção de enfermagem a mulheres e seus filhos menores em situação de violência. Desde 1992, está funcionando sob a gerência da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre.

O programa da Casa é realizado por uma equipe interdisciplinar. As atividades de apoio são desenvolvidas por intermédio de atendimentos tanto individuais quanto em grupos às mulheres e às crianças. Os objetivos da Casa Viva Maria são: articular o atendimento à família em situação de violência com um sistema de referência e contra-referência nas áreas de saúde, jurídica e social; promover espaços de reflexão e mobilizar, mediante abordagem terapêutica, os recursos pessoais dos indivíduos envolvidos no processo, estimulando a auto-estima e constituindo referências subjetivas próprias e autônomas; fortalecer os vínculos familiares, definindo limites e estimulando a valorização e o respeito mútuo, tendo em vista a dinâmica da violência enquanto processo relacional.

Nesse trabalho está subjacente o conceito de violência, percebido como "... a realização de relações de força tanto em termos de classe social como em termos interpessoais" (Chauí, 1985, apud Azevedo, 1985:18). A violência pode acontecer no âmbito do coletivo - a que existe entre as classes sociais, também chamada violência estrutural - ou entre as pessoas, configurando a violência pessoal. É possível entender a violência estrutural como aquela que surge em decorrência das próprias relações dentro da sociedade, criando as iniqüidades e suas conseqüências. Considera-se a violência estrutural existente em uma sociedade como o determinante maior da violência que acontece dentro da família.

A violência é conceito multidimensional: fala-se em violência simbólica, psicológica, econômica, institucional, entre outras. A violência estrutural oferece um marco à violência do comportamento e cada uma de suas facetas tem dinâmica própria, articulando-se às demais. Estudar o fenômeno da violência desta maneira significa, por um lado, procurar entendê-lo na totalidade da formação social e, de outro, em sua diferenciação e especificidade (Minayo, 1990).

A violência reflete as relações entre as classes sociais, mas expressa também relações interpessoais entre homens e mulheres, adultos e crianças, patrões e empregados. Uma das múltiplas faces da violência interpessoal é a violência doméstica exercida contra mulheres, crianças e idosos.

Falar de violência de gênero pressupõe o entendimento de que homens e mulheres têm participação social não-igualitária em função de sua condição sexual e tomam parte em um universo simbólico que legitima esta desigualdade, normatizando um padrão de relações sexuais hierárquico, também denominado relações sociais de gênero (Azevedo, 1985).

Violência de gênero pode ser definida como qualquer ato de violência que resulta ou pode resultar em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico causado à mulher, inclusive ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade em público ou na vida privada (Araújo, 1996). A vitimização de gênero ou violência doméstica contra a mulher envolve abuso sexual de crianças, estupro e abuso físico e psicológico ocasionado por parceiro íntimo e acarreta uma série de conseqüências na saúde física e emocional das mulheres, fatos exacerbados pelo fato de o agressor ser um conhecido, o que aumenta a sensação de vulnerabilidade, perda, traição e falta de esperança (Giffin, 1994).

Nos seis anos de atuação da CAVM foram atendidas mais de 800 mulheres em situação de violência doméstica. Neste período ocorreram diversas mudanças na atuação da equipe e em seu referencial teórico, podendo-se afirmar que o grupo evoluiu de um modelo em que as mulheres eram vistas como vítimas para uma postura em que se enfatiza a construção de nova identidade para a mulher e o grupo familiar.

Não se pode deixar de pontuar o que a equipe técnica denominou "os sete conceitos novos" que se articularam durante os seis anos de trabalho da Casa de Apoio. Esses conceitos são operados atualmente no cotidiano da Casa e significam não apenas o atendimento das famílias em situação de crise, mas também o acompanhamento além da crise; o entendimento da polaridade dependência X autonomia, por meio da tensão constante originada na proposta de autogestão do espaço de moradia; queixa X responsabilização, através de escuta não julgadora; crianças fora X crianças dentro, pela construção de um espaço próprio para as crianças; homens fora X homens dentro, que permitiu às mulheres mostrarem suas ambigüidades e, mesmo, o desejo de retornar ao companheiro; a desmistificação da equação fechada vítima-algoz para uma equação aberta, na qual a violência é compreendida como relacional; e, por fim, neste contexto e como seu produto, um forte movimento de desvitimização (Camargo, 1998b).

No Brasil, a experiência com casas abrigo aconteceu na última década e não se tem notícia de pesquisas para avaliar tais serviços. A própria incorporação e validação da violência de gênero como objeto de investigações científicas é recente e deve-se, sobretudo, ao mérito do movimento de mulheres nos anos setenta.

Em termos de estratégias a curto prazo para enfrentar a violência de gênero, o sistema de saúde é o locus privilegiado para identificar e referir vítimas. Heise (1994) recomenda que o setor saúde realize pesquisas de incidência e prevalência de violência contra a mulher e sugere o treinamento de profissionais de saúde para assegurar que as vítimas não sejam re-vitimizadas por estes serviços.

Esta pesquisa teve por objetivo traçar o perfil das moradoras da CAVM nos últimos dois anos; analisar as percepções de uma amostra de mulheres vítimas de violência doméstica acerca das vivências que tiveram lugar na Casa abrigo e das mudanças ocorridas após a passagem pela mesma. Buscou também conhecer as impressões da equipe técnica que trabalha na Casa de Apoio, visando propiciar as modificações julgadas pertinentes no atendimento das famílias e oferecer à mulher em situação de violência um acolhimento resolutivo com a dignidade a que tem direito.

 

 

Considerações metodológicas

 

Este é um estudo realizado com uma amostra de mulheres moradoras e ex-moradoras da Casa de Apoio Viva Maria. A análise das informações teve tratamento metodológico quantitativo e qualitativo.

Efetuou-se um levantamento com 110 prontuários de mulheres que estiveram albergadas na CAVM no período compreendido entre janeiro de 1996 a junho de 1998. Estas mulheres estiveram acompanhadas pelos 103 filhos menores, perfazendo um total de 213 pessoas atendidas. Construiu-se um instrumento fechado para cadastrar os dados referentes às mulheres atendidas a partir das informações dos prontuários. Estes dados foram armazenados e analisados, utilizando-se o programa Epi-Info (CDC, 1990/91).

A partir do cadastramento destas 110 moradoras, buscou-se localizar geograficamente os seus endereços na cidade de Porto Alegre. Foram selecionados 75 endereços considerados viáveis para receber visita domiciliar e descartados aqueles pertencentes à Região Metropolitana e municípios do interior, os incompletos ou mal definidos.

Seguiu-se uma etapa de visitas domiciliares às 75 famílias selecionadas. No momento da visita era entregue um convite para que estas participassem de uma série de encontros de avaliação. Além disso, perguntava-se à antiga moradora como estava sua vida após a passagem pela CAVM. Além do convite e do questionamento, deixava-se um envelope pré-selado, no qual havia uma folha de papel em branco para que a mulher escrevesse carta ou desenhasse mensagem para a Casa Viva Maria. Objetivava-se assim receber algum tipo de resposta, mesmo se as mulheres não acorressem aos encontros.

Dos 75 endereços iniciais, foram encontradas 34 mulheres: 21 delas efetivamente entrevistadas e 13, que não se encontravam em casa no momento da visita, para as quais foi deixada a correspondência. As mulheres utilizaram os envelopes pré-selados deixados com elas por ocasião das visitas e enviaram 14 cartas à Casa Viva Maria.

Um dos objetivos da realização das oficinas era o de obter as percepções das ex-moradoras acerca da passagem pela CAVM. A construção das oficinas foi organizada, utilizando como referenciais teóricos a pesquisa-ação, o modelo comportamental dos grupos de auto-ajuda e o da terapia de família, reputando-se esta mescla de referenciais como elemento enriquecedor do trabalho.

Entendeu-se a pesquisa-ação como itinerário político didático, no qual o conhecimento e a consciência se estruturam em processo de ação/reflexão empreendido pelos protagonistas de uma prática social (Brandão, 1980). A pesquisa desenvolveu-se como um trabalho relacional e prático e, principalmente, como interação entre os pesquisadores e os sujeitos investigados que estavam envolvidos no trabalho.

O modelo de grupo empregado como teoria suporte caracteriza o grupo na qualidade de local de encontro e renovação dos indivíduos. Constitui espaço social onde é possível aprender a tecer relações estáveis e nutritivas, interagindo, confiando, apoiando, compartilhando, confrontando, amando e buscando realizar metas de vida pessoal e coletiva. Grupos de auto-ajuda têm-se mostrado eficazes para auxiliar famílias em situação de violência e fazem parte das estratégias de promoção à saúde (MS, 1996).

Ao trabalhar com famílias vitimizadas pela violência, terapeutas de família (Brendler et al., 1994; Kaufman, 1994; Fishman, 1996) enfatizam a importância de um espaço para as pessoas construírem um senso de autoconfiança, utilizarem redes de apoio, estabelecerem limites para comportamentos abusivos e reorganizarem as regras familiares em torno das fronteiras estabelecidas.

As oficinas de avaliação foram construídas coletivamente pelas pesquisadoras e equipe da CAVM, utilizando-se os referenciais explicitados, assim como os resultados de experiências similares desenvolvidas em outros estudos (Bertoncello, 1997; Meneghel et al., 1997).

Delinearam-se três encontros; para cada um deles foi escolhido um tema principal a ser explorado e selecionadas as estratégias de trabalho de grupo. O primeiro encontro buscava a resposta à pergunta: "O que aconteceu comigo depois que saí da CAVM?". O segundo, enfocou a "História da vida amorosa: meus amores, meus casamentos, meus filhos, meu trabalho...". No terceiro, buscou-se construir com as mulheres o conceito atual de violência e estabelecer metas para o futuro.

Enquanto as mães permaneciam nas oficinas, as crianças receberam acompanhamento específico. Após a realização das oficinas foi oferecido um chá para as mulheres e suas famílias, constituindo-se um momento de confraternização.

Optou-se por realizar oficinas que grupavam as moradoras atuais da CAVM e as ex-moradoras, acreditando-se que esta estratégia permitiria identificar mais claramente as mudanças vividas pelo segundo grupo. Além disso, aquelas mulheres ex-usuárias da casa que romperam com a situação de violência, funcionaram como co-terapeutas para as outras, indicando caminhos, partilhando experiências, acenando com perspectivas de superação da crise (Minuchin & Fishman, 1990; Meneghel et al., 1997).

Solicitou-se permissão para filmagem e foram registrados todos os momentos vividos nas oficinas. Os diálogos das fitas de vídeo foram compilados e explorados no intuito de selecionar os depoimentos mais expressivos dentro de cada um dos temas abordados: história da vida familiar, mudanças e conceito atual de violência. A partir da escolha das categorias, as falas das participantes foram recortadas na tentativa de identificar a presença ou ausência de cada categoria, tal como as características peculiares do depoimento de cada uma das mulheres (Minayo, 1992). A análise foi realizada com o objetivo de entender a história particular da violência, articulando-a ao contexto social determinante desta violência. Também foram analisados outros documentos escritos e iconográficos produzidos na CAVM: vídeos, fotografias, relatos, desenhos e produção escrita dos ex-moradores. No final da pesquisa foi editada uma fita com os aspectos principais do trabalho.

Compareceram ao primeiro encontro, sete mulheres albergadas na CAVM, seis ex-moradoras e 19 filhos, perfazendo um grupo de 32 pessoas. As seis participantes externas do primeiro encontro encontravam-se, no momento da pesquisa, separadas de seus companheiros. Certamente ocorreu um vício de seleção na amostra de mulheres que vieram aos encontros, privilegiando aquelas atualmente separadas e fora da situação de violência.

Na segunda oficina estiveram presentes oito mulheres e 27 filhos, constituindo, ao lado das mulheres albergadas, um grupo de quase cinqüenta pessoas. Na terceira oficina compareceram seis mulheres albergadas, nove ex-moradoras e 34 crianças, formando um grupo de 45 componentes.

Realizou-se um grupo focal (Krueger, 1988) com a equipe da Casa de Apoio, procurando identificar as percepções da equipe acerca da violência e as transformações ocorridas no processo de trabalhar na Casa Abrigo. Participaram do grupo focal 26 funcionárias, técnicas e auxiliares.

 

 

Resultados: o perfil das mulheres da casa

 

A média de idade das 110 mulheres atendidas nos últimos anos foi 29 anos de idade, a mais jovem com 16 anos e a mais velha com 51 anos. O homem agressor apresentou a média etária de 33 anos, variando de 18 a 63 anos. No Brasil, os dados da PNAD/88 mostram que a faixa etária dos 18 aos 29 anos é a de maior prevalência de agressão física contra mulheres (74,3%) (IBGE, 1990).

A maioria das mulheres havia cursado de forma incompleta o ensino fundamental (73,6%). O percentual de analfabetismo (12,7% - 14 mulheres) foi superior ao apresentado pela população feminina em idade fértil da cidade de Porto Alegre no Censo de 1991 (3,3%) (Secretaria Municipal de Saúde, 1996) e representa certamente mais uma limitação tanto em termos de auto-estima quanto de inserção no mercado de trabalho.

Estudiosos do problema violência têm afirmado que, em nossa sociedade, o poder é adulto, masculino e branco (Azevedo & Guerra, 1989). Esperava-se, no início desta pesquisa, encontrar elevada magnitude de mulheres negras entre as ex-moradoras da Casa Viva Maria. No entanto, os dados obtidos a partir dos prontuários evidenciaram que apenas 24 das mulheres (21%) foram incluídas na etnia negra. É possível que tenha acontecido um "branqueamento" inconsciente por parte dos profissionais que preencheram os formulários, já que essa informação não é perguntada e sim observada, passando pela percepção do observador.

Nas circunstâncias de violência de gênero, dificilmente a vítima mantém-se em um trabalho permanente fora do espaço doméstico e, muitas vezes, esse é um ponto de conflito visível e relevante na relação violenta rotinizada (Camargo, 1998a). Entre as mulheres atendidas no período em estudo, 28 estavam trabalhando e 41 delas estavam sem emprego há menos de um ano. Quanto à ocupação, a maioria (51,8%) referenciou atividades ligadas ao emprego doméstico ou limpeza: faxineiras, copeiras, serventes e empregadas domésticas. Duas delas referiram a profissão de prostituta e apenas 15 eram donas-de-casa.

Entre os homens agressores, a inserção no mercado informal foi expressiva. Havia cinco desempregados, possivelmente vivendo às custas do trabalho da mulher, e cinco eram "traficantes", tornando patente a realidade do narcotráfico. A prevalência do uso de drogas tanto lícitas quanto ilícitas por parte desses homens é assustadoramente elevada. Segundo o depoimento das mulheres, 69 deles (62,7%) consumiam álcool rotineiramente; 41 (37,2%) usavam maconha e 36 (32,7%), cocaína. Mesmo podendo haver certo exagero por parte das depoentes, esses dados certamente são mais elevados do que no restante da população, vulnerabilizando ainda mais essas famílias.

A média de permanência das famílias na CAVM foi 62 dias. A maioria dos encaminhamentos foi efetuado pelos Conselhos Tutelares da cidade de Porto Alegre: 43 famílias (39,1%). Os Conselhos Tutelares têm sido utilizados como canal de expressão de questões referentes não só à criança e ao adolescente, mas também aos membros adultos da família. Assim, eles têm sido procurados por famílias que vivem experiências fragilizadoras: desde problemas com filhos menores até questões relacionadas com a conjugalidade, incluindo a violência doméstica contra a mulher. Os serviços de saúde, que poderiam constituir a porta de entrada principal da casa abrigo, enviaram apenas 10 mulheres (9,1%) para a CAVM no período 1996/98.

Sabe-se que, dentro do ciclo de violência/ vulnerabilização, configura-se forte tendência ao isolamento da vítima, estabelecendo-se um rompimento de vínculos afetivos e familiares, muitas vezes associado com a destruição de documentos, fotos, roupas ou objetos que representam referências pessoais anteriores distintas daquelas do contexto da relação violenta (Camargo, 1998a). A construção da identidade passa pela confecção de documentos, os quais viabilizam a vida cidadã e comunitária. Constatou-se que apenas sete das usuárias não possuíam documentos ao chegar na casa abrigo.

Quando saem da casa abrigo, muitas mulheres acomodam-se em residências provisórias cedidas por parentes ou amigos. Elas têm apresentado elevada mobilidade, mudando de domicílio com freqüência, tal como os grandes contingentes da população de baixa renda do país. Algumas, depois de abandonar a relação abusiva, mudam-se para bairros mais pobres; outras voltam para a casa dos pais; há ainda as favelizadas e aquelas que perdem as casas para os ex-maridos.

Ao chegarem na Casa de Apoio, as mulheres identificam os três principais motivos de busca de atendimento. A análise do primeiro motivo mostrou que a maior freqüência correspondeu a lesões corporais (54,1%) e ameaças (21,1%). Estupro e abuso incestuoso representaram 14 denúncias (12,7%). A análise do segundo motivo referido revelou que as ameaças constituíram 44,8% das referências e lesão corporal 25,3%. Desta maneira, praticamente 80% das mulheres fez referência a história de lesão corporal. Em 69 prontuários (62,7%) estava registrado que a violência é comportamento usual, freqüente e rotineiro na vida do casal.

Estimativas de violência contra a mulher durante a gravidez têm sido calculadas em torno de 10% das gestações (Rasmunssen & Knudsen, 1996). Na amostra trabalhada, seis mulheres (5,4%) estavam grávidas durante a passagem pela Casa.

Muitas mulheres retornam para a situação de violência com o mesmo companheiro ou outro, independente das condições sócio-econômicas e do amparo emocional, psicológico e jurídico. A passagem pela CAVM não representa a solução que resolverá a crise e problemas estruturais, às vezes, de longa duração na vida dessas mulheres. Enquanto a mulher não entender o papel que desempenha na relação violenta irá permitir o retorno periódico dessa violência. Ela pode refazer a relação com o companheiro em novos moldes de respeito e não-agressão, porém, o retorno ao parceiro tem sido considerado indicador de "permanência na violência". Verificou-se que 68 mulheres (61,8%) não retornaram aos seus companheiros no momento de saída da casa abrigo e 20 (18,2%) retornaram à relação. Uma pesquisa feita no Canadá mostrou que, em 1993, 9% das mulheres abrigadas retornaram à relação abusiva por motivos econômicos (Morrow, 1996).

Realizaram-se algumas análises bivariadas entre os dados coletados. Uma delas foi entre o motivo da busca de atendimento e o retorno ou não ao companheiro. Não apareceu relação estatisticamente significativa entre as variáveis, mas observou-se que as mulheres não retornaram à relação abusiva nas sete famílias nas quais aconteceu abuso incestuoso, geralmente perpetrado pelo pai ou substituto. Não surgiu associação estatística entre escolaridade, inserção no mercado de trabalho, freqüência da agressão, tempo de permanência na casa e o fato de as mulheres retornarem à relação.

As mulheres vitimizadas não apresentam perfil muito diferente das mulheres que não sofrem violência dentro da sociedade. Como em outros trabalhos (Larouche, 1987), ficou explícito que não existem diferenças significativas entre mulheres vitimizadas e as outras de sua cultura ou classe social, embora a apreciação pessoal do valor próprio e da competência diminuam em situações de violência.

 

 

As vozes das mulheres

 

A história de vitimização das mulheres usuárias dos serviços precisa ser ouvida. Em todas as oficinas, a primeira etapa foi o lugar da queixa, o recontar a história da vitimização, as repercussões na vida familiar e as situações que desencadearam a crise.

Ao relatar as histórias de vida, as experiências fragilizadoras (Hita, 1998) e os caminhos encontrados para romper com o determinismo e os abusos, as mulheres declararam a importância da recuperação da autoconfiança. Elas reconstituíram minuciosamente os passos para a aquisição da auto-estima:

"A auto-estima começa com um emprego. Daí tu te anima... Faz a gente enxergar outras coisas, novos valores, uma potencialidade muito grande. A gente vai descobrindo e colocando em prática. Esse exercício é diário. De início é difícil, é muito difícil. A gente descobre uma potencialidade muito grande na gente" (M. M. A. G.)

Afirmaram que a auto-estima é aquisição lenta, paciente, disciplinada e cotidiana. Uma construção deliberada e trabalhosa. Enfatizaram a importância do auto-cuidado nas melhoras e transformações que viveram, passando isso pelos cuidados físicos com o corpo: pintar o cabelo, arrumar-se e emagrecer.

Já na primeira oficina ficou bastante nítida a diferença entre as moradoras atuais da Casa, que estão vivendo momentos agudos da crise, e o grupo visitante, com suas vidas reorganizadas, mais arrumadas e esperançosas. Os próprios corpos destas mulheres expressavam emoções antagônicas. As mulheres albergadas tinham ombros curvados, tristes, olhar parado como tentando descortinar o futuro; as outras, mais falantes e bem-humoradas. O depoimento a seguir é de uma das mulheres albergadas:

"Toda a vez que eu procurava ajuda todo mundo virava as costas. Por isso que eu deixei chegar no ponto que chegou, que ele fizesse o que ele fez comigo. O mundo tinha acabado, eu não ia viver mais, minha vida não tinha mais valor, eu não tinha mais força. Eu não sabia se valia a pena continuar ou me matar. Eu não consegui me encontrar ainda, mas tenho um objetivo: voltar para minha casa, criar minha filha..." (C. T. S. R.).

As ex-moradoras atuaram como co-terapeutas, trazendo, no testemunho, a vontade de prestar auxílio, como em uma irmandade, uma fratria.

"Em casa a gente pensa que nada tem solução, tem um certo tempo que a pessoa não se importa com mais nada, daí pensa mil maneiras de encontrar um saída, que alguém ajude. Muitos casos têm solução devido a ajuda que recebem. Outros não sabem que tem a Casa de Apoio Viva Maria. No momento que a gente consegue sair de casa, mil portas se abrem. Consegue com o tempo não lembrar do passado. Mesmo que os filhos falem do passado, com o tempo a gente vai superando. Graças a Deus eu consegui dar a volta por cima. Nos primeiros meses eu chorava muito. Mas a gente tem que achar forças para se ajudar. Hoje, as portas da felicidade se abriram para mim" (A. M. M.).

As pesquisadoras observaram os hematomas produzidos pela experiências fragilizadoras em várias situações. Um aspecto que chamou a atenção foi o da quantidade de mulheres que não possuem os dentes; uma delas explicou que não usava batom porque não tinha a "mobília" (sic) e que o ex-companheiro havia quebrado os dentes ao agredi-la. Porém, várias delas puderam voltar, mostrar as marcas de guerra, as cicatrizes, e atestar que é possível romper o ciclo de violência/vitimização como afirma Estés (1994:475) "Embora haja cicatrizes inúmeras, é bom lembrar que, em termos de resistência à tração e a capacidade de absorver pressão, uma cicatriz é mais forte do que a pele".

Houve consenso na percepção da função social das casa abrigo, expresso também em outros momentos, como nas cartas enviadas pelas mulheres à Casa:

"Só tenho a agradecer a Deus ter colocado no meu caminho e de meu filho gente tão iluminada como vocês, com tanto carinho e dedicação a dar, obrigada pela Casa de Apoio e obrigada por vocês existirem" (M. M. A. G.).

A segunda oficina foi construída através da confecção de um álbum de fotografias. Pensou-se, assim como Leite (1993:175), que "...o reconhecimento das fotos de família pode funcionar como um desencadeador de lembranças múltiplas e constituir, de um lado, uma forma de resgatar um passado".

O processo de criação destes álbuns apresentou características singulares. Várias das mulheres organizaram suas fotos/figuras em uma linha de tempo, iniciando pela família de origem, passando pelos maridos e finalizando com quadros da família atual reconstituída.

O poder opressor da família é usualmente reprimido, sendo descartadas dos álbuns de família as fotos com pais violentos, crianças chorando e casais em litígio (Leite, 1998). As mulheres utilizaram o subterfúgio do álbum para recontextualizarem fotos aparentemente alegres, usando-as como denúncia de comportamentos abusivos, o não cumprimento de decisões judiciais, as lutas pela guarda de filhos:

"Eu estou bem, estou na minha casa, estou sozinha, graças a Deus, mas a perseguição não acaba. Mas eu não quero mais ele. Não quero. Eu não vou deixar meus filhos por ele. Meu filho mais velho diz: se ele entrar por uma porta, ele sai pela outra e eu nunca mais vou encontrar meu filho. Não quero mais ver meus filhos sofrer" (Z. T. M.).

As fotografias parecem expressar não apenas um tema, uma cena ou um assunto, mas uma ferida, considera Barthes (1984:20): "As fotos mantém, através de sua raiz, uma relação com o espetáculo e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda a fotografia, o retorno do morto". O morto é simbolizado por uma relação violenta, um ex-companheiro ofensor, uma relação de passividade e co-dependência.

Uma das participantes confeccionou um mural em que as fotos foram colocadas em seqüência, chamando atenção a primeira delas, autêntica, mostrando-a quando menina. A partir desse retrato, todas as outras figuras foram recortadas de revistas. A partir da foto autêntica ela prestou a seguinte declaração:

"Esta foto foi tirada logo que eu perdi a minha mãe. Eu não tinha família. Eu tinha doze anos quando tirei esta foto. Daí me levaram para a FEBEM. Até aí eu não tinha nome. Eu chamava de avó uma senhora que eu conheci. Ela me tirou da FEBEM, me botou no colégio. Meu nome não era esse. Ela me deu um nome" (C. A. S.).

A fotografia como duplo é a presença do objeto revelado, mas também sua ausência irremediável, conforme assevera Koury (1998:69): "A tensão da lembrança (despertada pela foto) permite refazer percursos, acalmar ou alimentar saudades, naturalizar as angústias, os anseios e medos ou, enquadrar a própria memória, protegendo-a dos submundos da imaginação, das memórias subterrâneas que fantasmizam a existência presente".

Houve recusa de uma das participantes em confeccionar o álbum de família, embora ela estivesse com as fotos na carteira, estendidas para serem contempladas: o pai, acusado de abuso sexual, a mãe, punitiva, um casal de padrinhos, substitutos idealizados e falecidos. "Se eu fizer este painel vou chorar e eu não quero", afirmou, colocando na mão de uma das pesquisadoras a montagem de instantâneos 3x4, amarelados, esmaecidos, revelados por fotógrafo lambe-lambe. A emoção ficou canalizada nas mãos, como que em uma concha, como nas muitas conchas de proteção que a Casa Viva Maria representa para essas mulheres. Lugar de acolhimento não julgador, âncora para tantos naufrágios. Casa de Apoio - concha.

A exploração verbal deste segundo encontro foi condensada, indicada e calcada na imagem. Ao construir o álbum usando figuras famosas para representá-las e aos familiares, elas expressaram seus desejos nas imagens simbólicas que estas figuras representam. Mulheres com inserção de classe desprivilegiada, com histórias de vida depauperadas, puderam reviver episódios de dor e perdas, mas também, rir e brincar ao colocar como marido/namorado o astro da televisão ou identificar-se com a modelo famosa. Estes sentimentos, aliados com a possibilidade de "reviver" e ressignificar os episódios de violência através da lembrança que as fotos evocaram, bem como à incorporação de novas capacidades, fizeram deste momento um espaço de síntese e construção.

Em nossa cultura, as mulheres têm sido guardiãs da história da família. Além disso, a foto serve como espelho, ensejando, como diz Leite (1998:40), a "oportunidade de ver e saber como os outros nos vêem e como éramos quando não tinha havido ausências e separações". Neste trabalho de criação de álbuns de fotografias confirmou-se a atração que os retratos exercem em mulheres de diferentes camadas sociais e, inclusive, seu papel catalisador de memórias.

Outro tema que apareceu em todos os momentos foi o da relação com o masculino. Algumas mulheres não se permitem reiniciar outra relação amorosa. O assunto "homens" circulou, alternando-se momentos de denúncia e desejo, rejeição e queixa:

"Marido?! Graças a Deus não vi mais. Não sei se tá vivo ou morto. Nem quero saber" (C. R.). "O meu primeiro marido é coisa do passado. Tá morto. Homem prá mim eu vou me benzer um pouco" (S. F.).

Às vezes, esse rechaço ao gênero masculino parecia formal, não só reforço para exorcizar o medo de voltar a viver uma relação violenta, mas também desejo de agradar à Equipe da Casa de Apoio. Estas afirmações estiveram entremeadas de brincadeiras, risadas e piadas sobre ficar e namorar, expressando a ambivalência do papel do masculino em suas vidas, o que, no dizer de Saffioti (1992:184): "Como na dialética entre o escravo e seu senhor, homem e mulher jogam, cada um com seus poderes, o primeiro, para preservar sua supremacia, a segunda para tornar menos incompleta sua cidadania".

No terceiro encontro, o tema central focalizava a percepção atual da violência. Pretendia-se que as mulheres estabelecessem metas para o futuro. Para atingir esse objetivo, confeccionaram uma teia com fios de linha. Cada participante identificava um desejo ou um sonho que esperava acontecer e passava, em seguida, a linha para outra mulher. Elas declararam a vontade de mudar: "eu quero o direito de criar meus filhos com dignidade"; "eu quero que minhas filhas estudem e não tenham esta vida de violência que eu tive". Afirmaram os direitos e o respeito que merecem, a vontade e o sonho da casa própria: "eu quero acertar na Loto e comprar minha casa". A casa própria foi uma categoria presente em todas as oficinas. Casas disputadas, prego a prego, com os ex-companheiros. A frugalidade das vidas dessas famílias é manifesta na rapidez com que as casas são demolidas, transportadas e reconstruídas em outros lugares.

A terceira oficina representou o momento de o "corpo" falar. O sentimento veio à tona na roda dos nomes, no abraço dos fios "... que representam a linha dos limites, mas também a corda da aproximação" (Meneghel et al., 1997:8), nos toques ao escrever as mensagens, umas se apoiando nas outras.

Depoimentos, dramatizações, desenhos, mensagens - múltiplas abordagens para dar voz a essas mulheres. As diferentes histórias de uma mesma violência, contadas e tornadas a contar, ajudando a exorcizar os fantasmas e a reconstruir-se como cidadãs, conforme ressaltado por Hita (1998).

"Partir das falas, dos relatos das mulheres acerca de suas vidas, além do mais, nos permite vislumbrar aspectos relativos à construção mesma de sua identidade, de um senso de si mesmo que emerge a partir da própria história contada. A linguagem, sistema de signos mais importante da sociedade, faz mais real minha subjetividade para mim e para meu interlocutor. Este ponto precisa ser levado mais a sério nos estudos sobre a subjetividade feminina" (Hita, 1998:208).

 

 

As vozes de dentro

 

O conceito de violência foi sendo construído paulatinamente dentro do grupo focal. Algumas das participantes referenciaram as falas de outras, certos termos e referenciais foram reutilizados. Durante a discussão em grupo, o uso das palavras foi sendo refinado e o enfoque ampliado. Esse processo de construção pareceu revelar a própria postura de trabalho interdisciplinar deste grupo, no qual os movimentos de vai e vem fazem parte da dinâmica interna da equipe. Há um sentimento de valorização do trabalho que desenvolvem, mesmo com a percepção das limitações e, de acordo com Minayo & Assis (1994:265), com "...a sensação de impotência que parece ser a parceira mais freqüente dos profissionais que atuam na ponta da rede".

"Aqui na Casa, nós temos o privilégio de trabalhar com este tema que nos faz crescer e repensar diariamente nosso trabalho. Se estivéssemos trabalhando numa unidade sanitária, todo o dia ia ser a mesma coisa - o paciente ia entrar, a gente ia vacinar e pensar que estávamos sendo super eficientes na nossa ação. Aqui, a gente se dá conta o quanto não é eficiente. Todos os dias é preciso repensar o trabalho, se errou, se acertou, se pode ser melhor. Isso nos obriga a descobrir novas leituras. As nossas diferenças somam no trabalho e aprende-se com os colegas como fazer melhor" (A. L. D.).

A violência estrutural da sociedade apareceu articulada com a preocupação de que o trabalho realizado na Casa de Apoio contemple os determinantes sociais do problema:

"A gente entra em contato com histórias pessoais de muita violência, mas se depara de uma forma muito forte com a violência social: onde vão morar, a dificuldade no trabalho, os recursos para os filhos e o entorno de tanta violência que não é específico da questão da mulher, mas da população como um todo" (A. R.).

Os conceitos de violência foram questionados, repensados, reconstruídos.

"Eu achei interessante porque eu trabalho com dois tipos de violência e nunca tinha parado para pensar, depois eu vou ir no dicionário ver o que é" (M. L. D. N.).

Apareceram as identificações que costumam acontecer neste tipo de trabalho e as transformações internas que ele ensejou nos membros da equipe:

"Ah! Violência não é só agressão física, é o que a colega colocou, humilhação, enfim, agredir as pessoas com palavras. Humilhar as pessoas, não é só bater, eu nunca dei um tapa na minha filha, mas eu sei que fui uma mãe muito agressiva com a minha filha e com minha família. Aqui eu aprendi que a gente não pode ser assim. Vi muita coisa que me fez parar e pensar. Mudei muito com as pessoas, família, colegas. As pessoas que me conhecem lá fora notam que eu mudei porque eu sei que as palavras agressivas levam a gente ao pior. Aprendi a ser calma. Meu relacionamento com minha filha era péssimo. Vendo a orientação que a equipe dá para as mães eu levei um pouco de proveito" (G. D. M.).

A segunda questão proposta para reflexão no grupo focal dizia respeito às modificações ocorridas na equipe durante o processo de trabalho. A maioria das mulheres afirmou que o trabalho na CAVM desencadeou mudanças tanto na percepção da violência, quanto na vida familiar e laboral. "Todas nós mudamos os conceitos de violência e a forma como trabalhar" (A. R.). A violência presenciada fê-las identificarem-se com as mulheres-vítimas e repensarem suas vidas e "violências":

"Nesses dois anos que eu estou aqui, eu mudei em muitas coisas. Tive momentos de parafuso, porque num certo momento eu percebi que estava reproduzindo a violência que eu testemunhava, de uma maneira torta, estava reproduzindo principalmente com as crianças. Foi o momento que eu tive que parar para pensar e rever tudo para parar o processo que eu estava iniciando. Também acho que eu não tenho que ser boazinha com todo o mundo, só para ser a boazinha e queridinha. Acho que só passar a mão por cima não serve. Aprendi também a ser firme que era uma coisa que eu não sabia fazer. Ser firme na hora de colocar limites para as pessoas e para as coisas" (M. L. D. N.).

Ao prestar os depoimentos no grupo focal, as mulheres da equipe se comoveram, mostrando uma sempre presente capacidade de sentir compaixão e tolerância para com as outras mulheres. A convivência cotidiana com estas situações de tamanho dilaceramento, o presenciar melhoras em quantidade menor que os retrocessos, exige da equipe técnica clareza na compreensão do fenômeno com o qual trabalham e energia para se auto-abastecerem. A empatia que elas demonstraram, certamente, tem contribuído para torná-las mais fortes, humanizando-as:

"Hoje, em uma relação cotidiana, eu escuto milhares de vezes mais do que escutava antes, percebo milhares de vezes mais a vontade dos outros. Para mim foi uma revolução, eu sou muito grata à convivência que a gente teve aqui, a todo o processo. Não é por acaso que aqui a gente reflete, sente, sofre. Isso é um elemento de não violência no nosso trabalho" (M. C.).

No funcionamento da Casa de Apoio, como em qualquer instituição coletiva, ocorrem conflitos e pressões entre usuárias e equipe de trabalho e, na própria equipe, entre técnicas e auxiliares. De um lado, existem discriminações de classe percebidas pelas auxiliares da equipe e reproduzidas por elas com as moradoras da CAVM, evidenciando a hierarquia no trabalho e as desigualdades sociais. Por outro lado, a inserção de classe das trabalhadoras auxiliares e as mulheres abrigadas é semelhante. As próprias condições de hotelaria do prédio despertam sentimentos de raiva nas trabalhadoras auxiliares, embora a Casa de Apoio apresente instalações austeras: "Elas estão num hotel cinco estrelas maravilhoso, porque quando aconteceu comigo eu não tive 30% da oportunidade que elas têm hoje" (M. R. F.).

Uma questão fundamental que ocorreu com a equipe de trabalho no percurso dos seis anos de Casa Abrigo foi a modificação do entendimento da situação de violência. A transformação da visão inicial de vitimização e exclusão do agressor, para a percepção do fenômeno como dinâmico, relacional e familiar, apareceu no conteúdo das falas, como também nos documentos produzidos pela CAVM. A asserção de que na Casa, segundo Camargo (1998b:12), "a violência não entra", mudou: "Assim, na Viva Maria, a vida nos ensinou que a violência entra sim, trazida pelo padrão de funcionamento da família violenta; trazida pela atuação das mulheres, elas mesmas entre si, no espaço coletivo e com os funcionários.".

Sem dúvida, "este monte de mulheres trabalhando com um monte de mulheres", tornou público, mais uma vez, o amor pela Casa Viva Maria e pelo que ela representa:

"Aqui a gente tem experiências bastante intensas, do ponto de vista da equipe de ter que trabalhar junto, o fato de se trabalhar em uma casa onde as pessoas moram. Eu diria que é uma intensidade de experiências muito forte: nós somos um monte de mulheres trabalhando com um monte de mulheres" (A. R.).

 

 

Considerações finais

 

Esta pesquisa, realizada em curto espaço de tempo (maio/novembro de 98) e utilizando recursos modestos, permitiu olhar as mulheres da CAVM por vários ângulos, traçar um painel da Casa de Apoio - atividades e percepções de suas trabalhadoras - e reunir uma quantidade diversificada de material documental.

Construiu-se um perfil das 110 mulheres albergadas na casa durante os últimos dois anos; realizaram-se 34 visitas domiciliares; organizaram-se três oficinas com as usuárias e dois grupos focais com as trabalhadoras da casa - espaços nos quais foram acompanhadas e ouvidas mais de 100 moradoras e 26 funcionárias.

Os aspectos qualitativos da pesquisa deixaram claro, mais uma vez, a necessidade social das Casas Abrigo e o quanto as mulheres atendidas puderam manifestar seus sentimentos, percepções, vínculos e agradecimentos à Casa de Apoio.

Em último lugar, não se poderia deixar de citar as modificações que ocorreram na equipe de pesquisadoras no transcorrer desta investigação. Trabalhar com temas como esses proporciona o aflorar de sentimentos intensos: as raivas, as feridas e as violências internas de cada um de nós. E também sentimentos de identificação e de solidariedade.

"De que nos serve entender tudo isso? Primeiro serve para trabalhar melhor, com menos angústia e ansiedade frente aos tempos diferenciados de cada mulher neste processo. Serve para nos alertar e comprometer com a desvitimização e não nos enredar na pena e na culpa. Para compreender a circularidade e o caráter relacional da violência. Para compreender as articulações e historicidade. E serve para olharmos de maneira democrática e humana todos os envolvidos, com suas responsabilidades e sofrimentos, com suas fortalezas e fragilidades, inclusive os homens" (Camargo, 1998b:13).

 

 

Agradecimentos

 

Os autores agradecem o financiamento do Ministério da Justiça e da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre.

 

 

Referências

 

ARAUJO, M. F., 1996. Atendimento a mulheres e famílias vítimas de violência doméstica. Perfil. Revista de Psicologia do Departamento de Psicologia Clínica, UNESP, 9:7-17.         

AZEVEDO, M. A., 1985. Mulheres Espancadas - A Violência Denunciada. Rio de Janeiro: Cortez.         

AZEVEDO, M. A. & GUERRA, V. N. A., 1989. Crianças Vitimizadas - A Síndrome do Pequeno Poder. São Paulo: Iglu Editora.         

BARTHES, R., 1984. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.         

BERTONCELLO, M. G., 1997. Crianças Portadoras do Vírus HIV: Abordagem Familiar. Porto Alegre: Hospital da Criança Conceição. (mimeo.)         

BRANDÃO, C. R., 1980. Pesquisa Participante. Brasília: Editora Brasiliense.         

BRENDLER, J.; SILVER, M.; HABER, M. & SARGENT, J., 1994. Doença Mental, Caos e Violência: Terapia com Famílias à Beira da Ruptura. Porto Alegre: Artes Médicas.         

CAMARGO, M., 1998a. Novas Políticas Públicas de Combate à Violência. Porto Alegre: Casa de Apoio Viva Maria, Secretaria Municipal de Saúde.         

CAMARGO, M., 1998b. O Lugar da Mulher na Relação de Violência - O Mito da Passividade e a Construção da Identidade de Gênero em Nossa Sociedade. Porto Alegre: Casa de Apoio Viva Maria, Secretaria Municipal de Saúde. (mimeo.)         

CDC (Centers for Disease Control and Prevention), 1990/91. Epi Info Version 5.01. Stone Mountain: CDC.         

ESTÉS, C. P., 1994. Mulheres que Correm com os Lobos - Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco.         

FISHMAN, H. C., 1996. Tratando Adolescentes com Problemas - Uma Abordagem de Terapia Familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.         

GIFFIN, K., 1994. Violência de gênero, sexualidade e saúde. Cadernos de Saúde Pública, 10(Sup. 1): 146-155.         

HEISE, L., 1994. Gender-based abuse: The global epidemic. Cadernos de Saúde Pública, 10(Sup. 1): 135-145.         

HITA, M. G., 1998. Identidade feminina e nervoso: Crises e trajetórias. In: Antropologia da Saúde - Traçando Identidade e Explorando Fronteiras (P. C. Alves & M. C. Rabelo, org.), pp. 71-94, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.         

IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 1990. Participação Político Social, 1988. Volume 1 - Justiça e Vitimização. Rio de Janeiro: IBGE.         

KAUFMAN, G., 1994. O misterioso desaparecimento das mulheres espancadas dos consultórios de terapeutas de família: Privilégio masculino em conluio com a violência dos homens. In: Os Segredos na Família e na Terapia Familiar (E. Imber-Black, org.), pp. 200-219, Porto Alegre: Artes Médicas.         

KOURY, M. G. P., 1998. Caixões infantis expostos: O problema dos sentimentos na leitura de uma fotografia. In: Desafios da Imagem: Fotografia, Iconografia e Vídeo nas Ciências Sociais (B. Feldman-Bianco & M. M. Leite, org.), pp. 65-74, Campinas: Papirus.         

KRUEGER, R., 1988. Focus Group - A Practical Guide for Applied Research. Newbury Park: Sage Publications.         

LAROUCHE, G., 1987. Agir Contre le Violence. Montréal: Edition la Pleine Lune.         

LEITE, M. M., 1993. Retratos de Família - Leitura da Fotografia Histórica. São Paulo: Edusp.         

LEITE, M. M., 1998. Retratos de família: Imagem paradigmática no passado e no presente. In: O Fotográfico (E. Samain, org.), pp. 35-40, São Paulo: Editora Hucitec.         

MENEGHEL, S. N.; ARMANI, T. B. & SEVERINO, R. L., 1997. Cotidiano Violento - Um Estudo de Promoção de Saúde Mental com Famílias do Bairro Partenon/Porto Alegre. Porto Alegre: Escola de Saúde Pública.          (mimeo.)

MINAYO, M. C., 1990. Bibliografia Comentada da Produção Brasileira sobre Violência e Saúde. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.         

MINAYO, M. C., 1992. O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Saúde. São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro: ABRASCO.         

MINAYO, M. C. & ASSIS, S. G., 1994. Saúde e violência na infância e na adolescência. Jornal de Pediatria, 70:263-266.         

MINUCHIN, S. & FISHMAN, C. H., 1990. Técnicas de Terapia Familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.         

MORROW, E., 1996. Impact of cuts on abused women and shelters. Education Wife Assault, 7:1-4.         

MS (Ministério da Saúde), 1996. Promoção da Saúde - Carta de Ottawa, Declaração de Adelaide, Sundswall e Santa Fé de Bogotá. Brasília: Fundação Oswaldo Cruz, Ministério da Saúde.         

RASSMUSSEN, K. L. & KNUDSEN, H. J., 1996. Violence towards pregnant women. Ugeskrift for Laeger, 158:2373-2376.         

SAFFIOTI, H., 1992. Rearticulando gênero e classe social. In: Uma Questão de Gênero (A. Costa & C. Bruschini, org.), pp. 182-215, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.         

SMS (Secretaria Municipal de Saúde), 1996. Tabulações Especiais do Censo IBGE 1991 para o Setor Saúde. Prá Saber: Informações de Interesse à Saúde 1(1). Porto Alegre: Secretaria Municipal de Saúde.         

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br