ARTIGO ARTICLE
Luiza Garnelo 1 | Doença, cura e serviços de saúde. Representações, práticas e demandas Baníwa Sickness, Healing, and Health Services: social representations, practices, and demands among the Baníwa |
1 Núcleo de Estudos em Saúde Pública, Departamento de Saúde Coletiva, Universidade do Amazonas. Rua Dr. Afonso Pena 1053, Manaus, AM 69020-160, Brasil. 2 Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas. Cidade Universitária Zeferino Vaz, C. P. 6110, Campinas, SP 13081-970, Brasil. | Abstract The research for this paper was conducted in São Gabriel da Cachoeira, in the northwestern Amazon, with the Baníwa indigenous people, in partnership with indigenous organizations, seeking to understand the relations among the group's cosmology, their system of representations of sickness and healing practices, and their transformation through inter-ethnic contact. The recording of myths showed the origin of the diseases and demonstrated the existence of several traditional categories of sickness, guiding traditional healing practices and the incorporation of biomedical knowledge. The Baníwa's cosmology operates like a reception system for biomedical information, which the people grasp according to the logic of mythical thought. Similar cognitive strategies are used to generate the demands that indigenous leaders submit to the Health Councils and Health Services. Key words Health Services; Social Representations; Baníwa; South American Indians
Resumo A pesquisa foi realizada no Município de São Gabriel da Cachoeira, noroeste amazônico, junto ao povo indígena Baníwa, em parceria com as organizações indígenas, visando compreender a correlação entre a cosmologia do grupo, seu sistema de representações de doença e práticas de cura e sua dinâmica de transformação em situação de contato interétnico. O levantamento dos mitos explicativos da origem da doenças demonstrou a existência de diversas categorias tradicionais de doença que orientam as práticas tradicionais de cura e a incorporação dos saberes biomédicos. A cosmologia Baníwa opera como sistema de acolhimento das informações de biomedicina, que são apropriadas e ressignificadas segundo a lógica do pensamento mítico; estratégias cognitivas similares são utilizadas para a geração das demandas que as lideranças indígenas encaminham aos Conselhos de Saúde e Serviços de Saúde. |
Introdução
Os Baníwa são um povo de língua Aruák que habita a região do Alto Rio Negro, Noroeste da Amazônia Brasileira. Sua população atual está estimada em 4.220 pessoas, distribuídas em 84 aldeias (ISA/FOIRN, 1998) nas áreas ribeirinhas dos rios Içana e Aiari, afluentes do Rio Negro. A Figura 1 evidencia a distribuição geográfica dos Baníwa no território rionegrino.
Tal como outros povos indígenas do Alto Rio Negro, sua organização social está baseada em unidades de descendência patrilinear e patrilocal, as quais obedecem à disposição hierárquica dos sibs - o sib congregaria os descendentes de um único ancestral -, que organizam internamente essa sociedade (Wright, 1992). Eles empregam também critérios lingüísticos para a demarcação de identidade, o que facilita o reconhecimento das relações de parentesco e o estabelecimento de laços de solidariedade, alianças e trocas matrimoniais (Jackson, 1983).
Esses grupos praticam a agricultura de coivara e desenvolveram grande habilidade na pesca, que constitui um dos principais recursos alimentares disponíveis. Apesar do longo contato com as sociedades nacionais brasileira, colombiana e venezuelana, esse povo preserva suas tradições e limita, sempre que possível, as intrusões do processo civilizatório em suas aldeias.
O povo Baníwa dispõe de complexo sistema de saberes míticos que orienta sua organização social, bem como as atividades da vida cotidiana que garantem a reprodução da sociedade. Dentre tais saberes, as concepções de doença e as práticas terapêuticas - realizadas por diversos agentes de cura - adquirem especial relevância para a resolução de seus problemas de saúde. Os principais agentes de cura são os xamãs, os conhecedores de plantas medicinais e os donos de cânticos, um tipo de especialista que trabalha com cânticos religiosos nos rituais de cura, de passagem etc. A eles devem somar-se hoje os agentes indígenas de saúde, os profissionais de biomedicina dos serviços de saúde do Brasil e da Colômbia e a automedicação com remédios industrializados. Todos esses elementos formam um conjunto de estratégias terapêuticas acessíveis a esse grupo indígena.
A cosmologia Baníwa é essencial ao entendimento da origem e reprodução das doenças. Nesse contexto surgem personagens como Nhiãperikuli, herói criador da humanidade e responsável por boa parte da organização da cultura Baníwa; Amaru, a primeira mulher, associada às ferramentas fabricadas pelos brancos, ao calor e às doenças febris; Kuwai, filho de Nhiãperikuli e Amaru, um ser dotado de poderes mágicos simultaneamente construtivos e destrutivos, exilado por Nhiãperikuli do mundo ancestral em função de sua periculosidade.
Nos ciclos míticos, o poder mágico de Kuwai - expresso através da música - é gradativamente socializado e transferido aos humanos - mediante os rituais de passagem e o aprendizado das músicas e canções terapêuticas - por Dzuli, um dos irmãos de Nhiãperikuli, que se torna o "dono" das rezas, das plantas medicinais, do tabaco e do paricá, ou seja, dos principais instrumentos de cura Baníwa. Umáuali ou Uliámali é uma serpente ancestral, pai dos peixes, a qual - para os informantes - representa a desordem, a sexualidade irrefreada e a periculosidade de uma natureza ancestral selvagem e hostil à permanência da humanidade no mundo (Hill, 1993).
No início, o mundo ancestral é pequeno e inacabado: pré-cultural, pré-sexual e temporo-espacialmente indiferenciado. O domínio proto-humano é reduzido a uma só aldeia, e os personagens que a habitam vivem em estado permanente de hostilidade e canibalismo, competindo entre si pelo controle do cosmo. Eles guerreiam com os mais diversos tipos de animais/espíritos - em particular, com as serpentes/peixes - que garantirão a principal fonte de alimentação dos futuros humanos. Por meio de seu canto mágico, Kuwai expande o mundo e o povoa ao nominar as espécies animais e vegetais. Gradativamente, ele e Nhiãperikuli estabelecem os fundamentos da vida humana e da organização da sociedade Baníwa. Como marco essencial deste processo, assinalamos a instituição do ritual masculino de passagem, feita por Kuwai. Esse ritual é reproduzido para as futuras gerações humanas. Os símbolos da iniciação masculina são as flautas mágicas que, segundo o mito, surgiram de uma palmeira que cresceu sobre as cinzas de Kuwai, após este ser atirado em uma fogueira por seu pai.
As flautas sagradas tornam-se símbolos da vida, da morte e das regras da sociabilidade humana na cultura Baníwa. Depois do assassinato de Kuwai, instaura-se uma guerra entre homens e mulheres em busca do controle da sociedade humana. Essa luta de gênero materializa-se na disputa pela posse dos instrumentos musicais que orientarão as regras de socialização das futuras gerações. As mulheres, lideradas por Amaru, roubam de Nhiãperikuli as flautas sagradas e, ao tocá-las, conferem ao mundo sua forma atual. Por sua vez, as flautas são retomadas por Nhiãperikuli, que restaura o domínio masculino na sociedade, e, em represália, exila Amaru, que, transmutada magicamente em quatro seres, se desloca na direção dos quatro pontos cardeais, para fora da terra Baníwa, onde se tornam mães ancestrais dos brancos, a quem ensinam o segredo da fabricação dos bens industrializados (Hill, 1993; Wright, 1993).
Esse contexto mítico é essencial ao entendimento das concepções da origem e reprodução da doença. O mundo ancestral é um caótico palco de condutas violentas, as quais inviabilizam a vida humana. Como em muitas outras sociedades, os mitos falam de incesto, canibalismo, assassinato e de outras situações de violência extrema que devem ser dominadas e superadas para que se instale o mundo que atualmente conhecemos. O relato dos mitos tanto permite evidenciar o movimento transicional de instauração da ordem social humana - a superação da violência perpétua do indiferenciado mundo ancestral - quanto as condições geradoras de doença, estreitamente ligadas ao caos, ao comportamento anti-social, à sujeira, à putrefação, às transgressões das regras alimentares, de higiene pessoal e de obediência às gerações mais velhas.
Wright (1993, 1996) - que tem estudado o xamanismo, o trabalho dos donos de cânticos e a construção semântica dos cânticos de cura e de rituais de passagem dos Hohodene, uma fratria Baníwa do rio Aiari - demonstra a íntima articulação, na produção mítica do grupo, entre a atividade xamânica, a manutenção da ordem do cosmos, da sociedade, da identidade e territorialidade dos Hohodene.
Por sua vez, Hill (1993) - trabalhando entre os grupos Baníwa da Venezuela, denominados Wakuenai - tem investigado os cânticos de cura e prevenção de doenças, os malikai, caracterizados como um complexo conjunto de orações, cânticos e canções cantados nos rituais de nascimento, ritos pubertários femininos e de cura. Segundo o autor, estes conformam um sofisticado sistema musical em que se articulam os processos microcósmicos do corpo humano com as transformações da natureza no tempo-espaço mítico dos seres ancestrais.
O mesmo autor sustenta que os processos metafóricos da narrativa mítica não devem ser encarados como uma ordem lógica rígida e formal que programa o pensamento e a ação coletivos, mas devem ser vistos como a expressão de parâmetros de orientação para a ação cotidiana, que pode ser dinamicamente reconstruída segundo as necessidades do contexto e do momento atual da sociedade. Os Baníwa não estão isolados temporal e espacialmente; ao contrário, mantêm estreitas relações com outros povos do Alto Rio Negro e com agentes de três sociedades nacionais. Embora os saberes regulados pelos mitos permaneçam como referência primordial da cognição, da ética e dos princípios de ação, eles são redimensionados na dinâmica histórica a que estes povos estão submetidos. É a partir dessa perspectiva que buscaremos trabalhar aqui suas representações de doença e cura.
Referencial teórico-metodológico
A pesquisa vem sendo realizada no Município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, mediante um trabalho desenvolvido em parceria com as organizações indígenas, visando tanto à investigação dos fundamentos míticos e cosmológicos das representações de doença e práticas de cura Baníwa e Kuripáka - e sua dinâmica de transformação em situação de contato interétnico - quanto ao estímulo do uso da medicina tradicional entre as gerações mais jovens - em particular, pelos agentes indígenas de saúde. As informações foram colhidas junto a homens e mulheres idosos conhecedores de plantas medicinais e das doenças por elas tratadas, benzedores, "donos de cânticos", e xamãs, "capitães" (líderes indígenas), Agentes de Saúde e lideranças de organizações indígenas.
O referencial teórico utilizado apoia-se em perspectiva interdisciplinar, propiciada pelos estudos de Antropologia Social dirigidos aos povos do Alto Rio Negro, pela produção científica sobre a teoria das Representações Sociais, assim como pelo trabalho de autores ligados à Antropologia da Doença. Laplantine (1987), Augé (1986), Zempléni (1985) e Buchillet (1991, 1995), entre outros, contribuem para o entendimento das categorias de interpretação de doença e cura do povo estudado.
Representações sociais são aqui concebidas como categorias de pensamento, formas de conhecimento elaborado e partilhado por grupos sociais, que os auxiliam a interpretar, questionar, atribuir sentido e intervir na realidade (Jodelet, 1989). Embora de natureza abstrata, as representações sociais auxiliam a organizar as relações sociais dos homens entre si e com a natureza, favorecendo a mobilização dos meios materiais que possibilitam a (re)produção da sociedade. Tais estruturas cognitivas permitem a construção de sentidos a respeito de realidades inicialmente ininteligíveis para os atores sociais, os quais estabelecem pontes de raciocínio analógico entre os saberes prévios de que dispõem e as situações novas que exigem a formulação de sentidos adicionais para que possam tornar-se manejáveis pela razão. Semelhantes estratégias são utilizadas para a incorporação de novos saberes de saúde com os quais os Baníwa vêm travando relação ao longo do contato histórico, como as práticas biomédicas a eles acessíveis.
Cabe ressaltar a íntima interação entre representações e práticas sociais. Sua interdependência exigiu uma investigação simultânea da influência das representações de saúde e doença sobre as práticas de cura e do redimensionamento que as ações concretas dos sujeitos podem provocar em sistemas de representação de dada realidade.
Orlandi (1993) parte da premissa de que a linguagem expressa no discurso dos sujeitos é simultaneamente instrumento de construção/ reprodução da realidade e mediação das relações socialmente travadas; é uma forma de trabalho, de produção simbólica e ação social constituída em processo histórico determinado, no qual a linguagem constitui e se constitui na sociedade. Neste sentido, representações e práticas são elementos indissociáveis de uma só realidade, pertencendo ao domínio das relações de poder vigentes e podendo operar tanto como meios de manutenção como de transformação das relações sociais. A abordagem não dissociada de linguagem/pensamento e ação permite situar as práticas discursivas como frutos de uma produção social e não apenas como elaborações de subjetividades individuais (Spink, 1995).
Representações tradicionais de doenças Baníwa
O termo "doenças tradicionais" está explicitando simultaneamente as categorias de doenças indígenas - reconhecidas como tal pelos informantes - e as representações nativas acerca das doenças trazidas pelo contato, que não eqüivalem necessariamente aos diagnósticos biomédicos.
Os Baníwa dispõem de amplo conjunto de representações de doença, cuja lógica interna é inteligível a partir da conexão estabelecida pelas disposições míticas que ordenam sua sociedade. Dentre as principais categorias de doença podemos citar:
Mánhene
Esse vocábulo, traduzido para o português como "veneno da região", refere-se às práticas de colocação de substâncias venenosas na comida, bebida, objetos pessoais e orifícios naturais de um inimigo, visando matá-lo. Algumas formas de envenenamento vegetal podem gerar quadros mórbidos de efeito agudo e morte rápida, ao passo que outras substâncias provocam um processo de doença crônica que enfraquece gradativamente o doente, tornando-o pálido, astênico e com distúrbios de comportamento caracterizados pela adoção de comportamento animal e incapacidade de realizar atividades da vida cotidiana. Para os informantes, essa é a mais grave e freqüente das doenças tradicionais. Sua importância pode ser aquilatada pelo fato de a primeira morte no mundo ancestral ter sido provocada por veneno. A origem dos venenos remete a Kuwai, que os deixou no mundo como vingança por seu assassinato.
Hiuiathi
São rezas/cânticos do mal enviados por pessoas que desejam causar dano aos seus inimigos. Podem ser feitas por pajés, benzedores ou pessoas comuns que conheçam seus conteúdos. Os sopros seguem a mesma lógica dos cânticos, seus opostos simétricos; eles nominam objetos do mal (pássaros/espíritos, peixes, plantas venenosas, espíritos dos mortos etc.), visando causar dano à vítima; seu veículo essencial é a fumaça do cigarro soprada no ar. Existem diversos tipos de hiuiathi, mas um grupo especial deve ser assinalado, aquele que provoca as doenças da feminilidade. Hemorragias pós-parto, excesso de menstruação, morte pré e pós natal do feto, infertilidade, falta de leite materno são condições geradas por sopros que "estragam" a mulher, em geral devido a ciúme de pretendentes desprezados.
Doenças e infortúnios provocados por Iupinai
Os Iupinai são seres espíritos da floresta, das águas e do ar; foram proto-humanos que usaram paricá de forma indiscriminada e irresponsável; enlouqueceram sob seu poder e foram punidos, adquirindo permanentemente a forma animal. Permanecem em estado de guerra latente com os humanos. Esses seres exercem a função de censores sociais no mundo Baníwa, pois o não cumprimento de regras tradicionais de higiene, pensamentos e sonhos libidinosos, a falta de sobriedade e de cumprimento das restrições alimentares, desobediência e inveja são comportamentos passíveis de atrair seu ataque. Os Iupinai podem causar diversas doenças de pele, cegueira e tumores, mas são responsáveis igualmente por tempestades e alterações climáticas passíveis de causar dano aos seres humanos. Podem alvejar os humanos com flechinhas walama, causando igualmente esse tipo de doença. Boa parte das doenças oriundas do contato (doenças de branco) pode ser classificada como um subgrupo dentro desta categoria, pois elas derivam do cheiro do combustível, produto dos Iupinai da terra, utilizado para fabricar as mercadorias. Cabe lembrar que as "doenças de branco" são simultaneamente ligadas a Amaru que, na condição de mãe ancestral dos brancos, é também a origem das fábricas e das máquinas movidas a combustível.
Walama
Walama é o grupo de doenças causadas por flechinhas mágicas que podem ser atiradas por pajé, pelos Iupinai ou pelas estrelas. Sua característica mais essencial é dor súbita e aguda, tipo perfurante. O meio de difusão do Walama é o ar, mas os trovões podem ser mobilizados pelos pajés para causar formas graves de Walama. Existe certa confusão diagnóstica entre Walama e Mánhene de tipo agudo. Nesse caso, o diagnóstico pode ser confirmado apenas pela ação xamânica ou por tentativa e erro de outras opções terapêuticas.
Doenças causadas pelo não cumprimento de regras alimentares
O representante mais expressivo deste grupo é ifiukali, termo que congrega um conjunto de manifestações diarreicas, oriundas de uma associação entre preparação inadequada de alimentos (o peixe ou caça incompletamente limpos ou mal cozidos mantêm seu cheiro específico, o pitiú, que provoca essa doença) e a falta de rituais pós-parto kalidzamai, que visam proteger o recém-nascido e sua família da periculosidade dos alimentos. Dentro desse grupo podem ser situadas outras doenças do contato, como a diarréia com sangue (iraithuli) que acomete pessoas insuficientemente protegidas pelos malikai.
Doenças do Cosmos
Chamadas em Baníwa de hekuapi ipua, são doenças provocadas pelos poderes de seres cósmicos, como as estrelas. Tais doenças estão correlacionadas ao ciclo de maturação das frutas e das estações do ano, eventos demarcados pelo surgimento de constelações no horizonte, a quem são atribuídos poderes de agressão aos seres humanos.
As "doenças de branco"
Não constituem categoria diferenciada; ao contrário, elas se distribuem entre as diferentes categorias mais inclusivas identificadas acima. Para os Baníwa, o traço distintivo das doenças de branco é seu caráter de transmissibilidade, ao contrário das doenças tradicionais, que não costumam gerar epidemias. As principais "doenças de branco" reconhecidas pelos Baníwa são: sarampo, malária (kooname), gripe (hfétchi), diarréia de sangue (iraithuli), varíola (ibichikan), catapora (karaka ibichikan = varíola pequena) e coqueluche (iitsipemi). São reconhecidas ainda a praga ou vela (macumba feita por feiticeiro branco) e a tuberculose (dzéfemi).
Vale enfatizar, porém, que os informantes classificam as doenças decorrentes do contato segundo sua própria lógica, não havendo relação de correspondência direta com as nosologias biomédicas. Assim, qualquer quadro febril que acometa vários indivíduos em espaço curto de tempo, acompanhado ou não de outros sintomas, é susceptível de ser classificado como kooname. Igualmente, toda manifestação crônica de tosse pode ser classificada como iitsipemi; embora os informantes caracterizem com muita precisão a diferença entre esta patologia, de curso prolongado e as manifestações mais agudas (coriza, espirros, febre, mal estar de curta duração) de hfétchi. Essas classificações seguem a lógica intrínseca ao pensamento mítico e não as premissas da microbiologia.
A origem das "doenças de branco" está ligada à morte de Kuwai e ao surgimento das flautas sagradas que ordenam o ritual de passagem masculina. O roubo das flautas pelas mulheres provoca seu exílio para fora do território indígena, onde Amaru se torna mãe ancestral dos brancos, a quem ensina a produzir mercadorias em fábricas. O cheiro do combustível empregado para movimentar as máquinas que produzem os bens industrializados é considerado como causador de boa parte das doenças trazidas pelo contato. Da mesma forma, o calor gerado pela fabricação dos produtos industrializados remete a Amaru, a "dona" do calor que aparece na forma de febre das doenças transmissíveis trazidas pelo contato.
Por sua vez, a proveniência da malária (kooname) é contada em um mito que explica também o surgimento do timbó, a partir do corpo despedaçado de um ser venenoso, Kunáferi, que é espalhado pelos rios da região e depositado em "panelas" (isto é, buracos) de pedra. No período de transição entre verão e inverno, seu veneno mistura-se aos cursos de água, provocando a doença. Neste sentido, a malária pertence simultaneamente ao domínio dos Iupinai - que exercem o controle sobre sua disseminação no meio ambiente - e ao domínio das doenças provocadas por pajés - que podem liberá-las para causar dano a alguém por vingança. A origem da diarréia com sangue aparece em uma variante do mito, que explica a procedência da noite.
Dzéfemi, que é traduzida como tuberculose, é categoria mutável que ora pode ser classificada como mánhene ora como hiuiathi. Os informantes mais velhos rejeitam a idéia de que esta seja doença do contato, não a classificando como doença do branco. Muitos duvidam da existência dessa entidade nosológica denominada de tuberculose pela biomedicina. Os informantes agrupam sob o nome de Dzéfemi todas as manifestações crônicas de fraqueza, emagrecimento, astenia e dificuldade de executar trabalhos cotidianos; tosse e vômitos ou escarro de sangue podem estar presentes ou não. Essas manifestações, quando crônicas, tendem a ser classificadas como mánhene e tratadas como tal através de plantas medicinais e dieta própria para veneno. Quando o quadro não se resolve, o doente pode recorrer ao pajé, caso tenha meios de pagar pelo seu trabalho. Se os tratamentos utilizados não forem bem sucedidos há tendência em reclassificá-la como hiuiathi e tratá-la com rezas e dieta. Muitos doentes completam o tratamento biomédico para tuberculose, mas mantêm o tratamento para mánhene simultânea ou seqüencialmente àquele. Para os informantes, a origem de Dzéfemi é referida à origem geral de todos os mánhene, remetendo, portanto, à Kuwai. Também não descartam a eventual participação dos Iupinai, que podem provocar tumores dentro do peito do doente, gerando tosse crônica.
Segundo Wright (1993/1994), o cosmos Baníwa deve ser pensado em dois eixos: um, vertical, que trata da linha de continuidade temporal dos ciclos de vida que se iniciam nas gerações de ancestrais míticos e se reproduzem entre os humanos que os sucedem, permanecendo até os dias atuais. Outro, o eixo horizontal, trata da reprodução das relações de guerra, aliança, consangüinidade e afinidade entre grupos sociais humanos e destes com a natureza; trata-se aqui do âmbito das relações de reprodução da sociedade, no qual a caça, a pesca, a roça, os casamentos, nascimentos, as trocas e as guerras são elementos constitutivos (Wright, 1996). Situamos a origem da doença e das estratégias de prevenção e cura no eixo vertical do cosmos e sua perpetuação no mundo no plano de reprodução da vida social, ou seja, no eixo horizontal.
No eixo vertical/temporal, o surgimento da doença e infortúnios diversos estão intimamente conectados aos mitos de Nhiãperikuli, Amaru, Kuwai e Umãuali, que fornecem um substrato explicativo lógico para esses eventos e subsidia a elaboração das categorias a priori (Sindzingre & Zempléni, 1981) de reconhecimento das doenças anteriormente descritas. A lógica explicativa da origem geral das doenças demonstra que não devem ser tomadas como categorias estáticas, sendo freqüentes as mudanças de diagnósticos em função do fracasso de uma eventual terapêutica instituída. A transfiguração de uma categoria nosológica em outra encontra explicação na dinâmica de sua origem mítica; assim, quadros de walama podem confundir-se com doenças provocadas por Iupinai e/ou pelas estrelas. O que parece ser uma confusão no âmbito do diagnóstico recobre a origem comum de todos esses personagens que, no tempo ancestral, constituíam grupos de parentes e afins, capazes de perpetrar agressões mútuas com zarabatanas e outros meios mágicos. Doenças aparentemente díspares recobrem uma rede de relações partilhadas e reproduzidas no mundo dos ancestrais e dos humanos.
A reprodução social da doença no mundo Baníwa deve ser entendida no plano horizontal através da movimentação dinâmica dos agentes e vítimas da doença no interior e nas fronteiras sócio-geográficas da sociedade Baníwa. A lógica subjacente enfatiza o movimento "centro" da cultura Baníwa versus "periferia", que é recorrente em vários relatos míticos. Esse plano de análise remete às relações de troca, alianças e disputas entre grupos de parentes e de afins, em que se situam as doenças que se reproduzem no interior das fronteiras da sociedade, isto é, nas relações travadas entre humanos. Nesse plano podem ser agrupadas doenças como mánhene e hiuiathi, que são formas de agressão dos homens entre si, inscrevendo-se no circuito das tensas relações entre consangüíneos e afins que comportam vinganças, inveja e desentendimentos de todos os tipos, travados sempre no interior das fronteiras da sociedade. As doenças de origem cósmica representam os conflitos potenciais estabelecidos entre seres humanos e cósmicos. Remetem à íntima interação que humanos, animais e espíritos partilhavam nos tempos ancestrais. Aqui se situam as Hekuape Ipua, o grupo especial de sopros (hiuiathi) provocados pelos espíritos dos mortos Inyaime e as doenças decorrentes de alterações climáticas e cósmicas desencadeadas por pajés poderosos. Esse nível de causalidade mais abrangente representa também a idéia de que todos os agravos ocorridos nos outros níveis estão aqui contidos. Todo evento patológico, longe de ser ocorrência individual, é evento de âmbito simultaneamente social, sobrenatural e cósmico, ameaçando a estabilidade e a ordem deste e do "outro mundo" (Wright, 1996; Zempléni, 1985).
O grupo de doenças Walama decorre simultaneamente de conflitos entre humanos, situação em que a doença é mandada pelo pajé, e de flechas de Iupinai e/ou das estrelas, ambos antigos humanos transfigurados em animais e astros. As doenças de branco ocupam posição fronteiriça, mas sua origem ocorre fora das fronteiras da cultura Baníwa, apesar de mediada por elementos a ela pertencentes.
Representações sociais sobre biomedicina e serviços de saúde
As produções míticas e representações tradicionais de doenças operam como sistema de acolhimento que permite "ancorar", ressignificando-os, os saberes biomédicos que perpassam o mundo Baníwa. O conceito de "ancoragem" foi cunhado por Moscovici (1989) para expressar um processo do pensamento que consiste em classificar, nomear e inteligir - a partir de categorias, imagens e juízos já conhecidos - aquilo que é novo e desconhecido para o sujeito. Utilizando este tipo de estratégia cognitiva, o pensamento Baníwa pode gerar idéias sobre "doenças de branco" e serviços de saúde que só adquirem inteligibilidade plena quando contextualizadas no âmbito da cosmologia acima descrita.
Essa discussão remete às mútuas interações entre representações e práticas sociais. As representações geradas no âmbito da cosmologia produzem elementos cognitivos que orientam a ação. Tais ações comportam hoje não apenas práticas sociais orientadas pela tradição, mas igualmente aquelas engendradas pelas relações de contato interétnico, capazes de redimensionar a produção mítica que opera como estruturante do "ethos" Baníwa.
O estudo de representações sociais evidencia que elas são simultaneamente estáveis e dinâmicas. São fruto de consenso coletivo, porém apresentam, da mesma forma, fortes variações individuais. Tais características contraditórias deve-se à coexistência entre o que é denominado núcleo central e elementos periféricos de um sistema de representações sociais (Abric, 1994). Este autor, investigando esta curiosa contradição das representações sociais, desenvolveu a idéia de que os sistemas de representações sociais contêm um núcleo central, capaz de organizar e unificar a memória coletiva, ademais de dar sentido de continuidade aos saberes partilhados, garantindo assim a perenidade e estabilidade das representações de um grupo social. Segundo Sá (1996), o núcleo central estrutura e atribui sentido a outras representações não consensuais e não hegemônicas presentes no grupo.
Além disso, por serem dinâmicas, as representações sociais freqüentemente são contraditórias e sofrem transformações históricas. Essa constatação levou Jean Claude Abric a identificar que, além do núcleo central, existem elementos periféricos, mais permeáveis às mudanças do contexto social. Embora estruturados pelo núcleo central, eles são a expressão individualizada de diferentes formas de apropriação, pelos sujeitos, da dinâmica da realidade concreta, que nem sempre é congruente com as produções consensuais da tradição. Os elementos periféricos de um sistema de representações sociais promovem a interface entre a realidade social e o conjunto de elementos cognitivos que formam o núcleo central do grupo social (Sá, 1996).
Tais características são aplicáveis aos saberes da tradição Baníwa, em que o pensamento mítico opera como núcleo central, ordenando e atribuindo significado às idéias e práticas referentes à saúde, doença e cura. A memória coletiva reproduz certos níveis de consenso sobre o tema, apesar dos percalços do contato e das mudanças introduzidas pela modernidade no modo indígena de viver. A produção mítica desse povo agrega atualmente tanto as informações oriundas da cultura tradicional quanto as de biomedicina. A partilha de idéias a respeito dos diversos sistemas médicos que nela coexistem é bastante rica, variando conforme a posição que os sujeitos ocupam na cena social. Mulheres, Agentes de Saúde, xamãs, lideranças etc. expressam, através dos elementos periféricos de seu cogito, diferentes formas possíveis de apropriação dos saberes tradicionais e daqueles decorrentes das relações de contato interétnico.
No momento atual da história das relações de contato no Alto Rio Negro, as informações da biomedicina parecem formar parte dos elementos periféricos do sistema de representações Baníwa, caracterizando-se como um tipo de representação emancipada, isto é, um conjunto de saberes que, embora apropriados por membros do grupo social, ainda não se disseminaram pelo tecido social em intensidade capaz de redimensionar o conjunto de representações hegemônicas, mesmo sendo passíveis de influenciá-lo (Sá, 1996). Embora os povos indígenas do Alto Rio Negro tenham bastante familiaridade com idéias e conceitos biomédicos veiculados em interações diversas com as agências de contato, como os serviços de saúde, a escola, as relações comerciais, veículos de comunicação de massa e o processo de capacitação dos agentes indígenas de saúde, as formas de apropriação dessas idéias caracterizam-se como bricolage, pautadas pela lógica do pensamento mítico, que promove considerável ressignificação do sentido original com que foram enunciados no discurso científico.
Analisando as representações indígenas sobre a tuberculose pode-se observar que os casos identificados pelos indígenas como tuberculose ou Dzéfemi recobrem amplo conjunto de sinais e sintomas crônicos de fraqueza, astenia, emagrecimento, tosse, escarros com sangue e palidez que podem ser classificados tanto como mánhene ou como hiuiathi. A transmissibilidade da tuberculose é conhecida entre os informantes, porém não é atribuída a ação de bactérias. O adoecimento por Dzéfemi decorre da deliberação de outro ser humano, que envia um sopro ou um veneno para a vítima. O doente também não é isento de responsabilidade na eclosão da doença, pois ele torna-se suscetível ao veneno ou ao sopro porque não realizou adequadamente seus rituais de liminaridade, desobedeceu regras de conduta ou algo similar. Existe responsabilidade compartilhada entre o doente e o agressor. A interpretação nativa rejeita a idéia de acaso ou transmissão aleatória própria da explicação microbiológica.
O mánhene povoa todos os espaços; todos estão sob risco constante de envenenamento, qualquer episódio de doença pode ser interpretado como a ação de veneno. Essa idéia orienta grande parte das demandas de atendimento de saúde tradicionais ou biomédicas. O deslocamento para a cidade com permanência na Casa do Índio é evento temido, já que lá existem funcionários de outros grupos étnicos - em particular, as cozinheiras -, colocando os doentes em situação de extrema vulnerabilidade. As pessoas temem o alimento preparado por membros de grupos inimigos. À fragilidade do estado de doença soma-se o perigo de envenenamento da comida.
Dentre as demandas levadas para os Conselhos de Saúde, pode-se observar a proposta de retirada de funcionários indígenas da Casa do Índio - em especial, de pessoas oriundas do Uaupés, consideradas ameaça maior que aquela representada pelos brancos. As reivindicações pela melhoria do atendimento priorizam a identidade clânica ao propor a alocação de funcionários que não representem ameaça de envenenamento. Neste contexto, a alocação de mão de obra indígena nos serviços pode adicionar novos elementos de tensão inter e intraétnica.
Ao medo de ser envenenado soma-se o receio de não seguir a dieta adequada nos serviços de saúde. Os Baníwa praticam uma dietética bastante restritiva para os doentes - em particular, aos acometidos de mánhene, a quem é vetado o consumo da maioria das fontes de proteína animal, diversos tipos de frutas e pimenta. A internação no hospital e/ou na casa do Índio implica em ruptura com essas regras, gerando verdadeiro pavor de morrer devido a estas transgressões. O mánhene também orienta boa parte da demanda por exames laboratoriais. Os informantes reivindicam a realização periódica de exames de sangue e "do fígado", a fim de que possam avaliar se há presença de veneno em seu corpo e tomar as medidas cabíveis ao caso.
Uma das características clínicas essenciais do mánhene crônico é a fraqueza, sendo freqüente a prática de automedicação, na qual remédios considerados "fortes", como os antibióticos, ou que "dão força", como os suplementos vitamínicos e o sulfato ferroso, vêm sendo utilizados para o tratamento desta nosologia indígena.
As noções de parasitas intestinais e de microorganismos disseminadas pelos professores e profissionais de saúde são, da mesma forma, ressignificadas. Para muitos informantes, eles são, na verdade, Iupinai. As características de ação descritas para os micróbios são identificadas como as formas de atuação dos Iupinai, que atacam as pessoas mais vulneráveis. Em termos biomédicos, essa vulnerabilidade pode eqüivaler, por exemplo, à baixa resistência imunológica; para os Baníwa, trata-se de pessoas enfraquecidas pelo descumprimento de regras alimentares, de liminaridade ou de conduta. Graças à capacidade de transformação dinâmica de seus termos, própria do pensamento mítico, pode haver transmutação de micróbios em parasitas intestinais e vice-versa. Igualmente, as afecções que provocam podem ser doenças de Iupinai e/ou, em caso de manifestações digestivas com sintomas consumptivos, o diagnóstico pode ser mudado para Ifiukali. Os vermes/micróbios podem acometer os seres humanos através de sua presença na comida - em particular, aquelas com cheiro forte (pitiú) como peixes e caças -; neste caso, o cheiro é indicativo da capacidade agressora do ser. O cheiro, a parte que magicamente representa o todo, é capaz de gerar o processo mórbido mesmo que o verme/micróbio, em si, não esteja presente no alimento. Parasitas encontrados em frutas concretizam esta idéia, associando a doença à putrefação (atual ou potencial) dos alimentos. A goiaba, por exemplo, é considerada uma fruta de alto grau de patogenicidade, dada a freqüência de "vermes" que já contém mesmo sem estar putrefata.
Tais representações influenciam a adoção ou, pelo menos, a recomendação de práticas de higiene individual, que só superficialmente se assemelham às prescrições higienistas da biomedicina. Em muitas aldeias existe forte cobrança de que os Agentes de Saúde fiscalizem o grau de limpeza dos utensílios usados no preparo do alimento e as condições de limpeza corporal das mulheres que os preparam. Essas medidas visam evitar a proliferação de odores nas mulheres e/ou vasilhas propiciatórios de ataques e Iupinai e favorecedores de Ifiukali. O bom desempenho do Agente de Saúde, neste caso, nada tem a ver com os preceitos higienistas veiculados em seu treinamento. Trata-se de exigir que ele faça cumprir regras de comportamento congruentes com costumes e prescrições míticas. Assim, sob aparente identidade, nas práticas de higiene convivem lógicas muito díspares entre si.
Os vermífugos são desvalorizados porque as pessoas os tomam, mas "não botam verme"; os informantes tecem comparações com manifestações visíveis de cura dos antigos "purgantes", que eliminavam os parasitas intestinais, e com a extração de pêlos, pedras e outras substâncias retiradas do corpo do doente nas sessões de pajelança.
Uma das mais freqüentes reivindicações indígenas é a de realização de viagens periódicas de assistência à saúde nas aldeias. Os discursos dos informantes evidenciam a apropriação de um modelo assistencial voltado para a atenção médica curativa à demanda espontânea, praticado historicamente pela FUNAI, missionários e militares, que se situa como hegemônico em relação a outras práticas sanitárias centradas em modelos preventivos e de determinação social da doença. Apesar disso, a apropriação desse modelo deve ser problematizada. Existe a expectativa de que os doentes sejam atendidos, mas, similarmente às terapêuticas tradicionais, os tratamentos deveriam ser estendidos aos familiares. Espera-se igualmente que as equipes de saúde cumpram as regras de convivência social Baníwa, que incluem a partilha de alimentos, a troca de gentilezas e informações com as lideranças locais, os ritos de higiene corporal, enfim, as atitudes que caracterizam as regras de boa convivência social. De acordo com essa óptica, os profissionais de saúde devem inserir combustível e medicamentos no circuito de troca de presentes, distribuindo-os com generosidade. Observa-se que as práticas sanitárias assumem a forma de normas de comportamento social e de mercadorias, objetivadas em produtos, como os remédios, exames e combustível.
A demanda por medicamentos industrializados é bem conhecida por todos os que trabalham com a prestação de serviços de saúde para populações indígenas. Lideranças, Agentes de Saúde, professores indígenas, todos pressionam para obter o maior número e quantidade possível para suas aldeias. A investigação demonstra que medicamentos e outras mercadorias têm funções simbólicas semelhantes, associadas ao poder mágico do branco. O consumo de medicamentos deve ser analisado à luz do uso geral de bens industrializados, em processo de consumo de símbolos não apenas de saúde, mas também de padrões ocidentalizantes de comportamento. Historicamente, os medicamentos têm sido parte das estratégias de aliciamento dos agentes civilizatórios, que os ofereciam como meio de viabilizar as relações de contato, entre outras mercadorias, abrindo caminhos para a subsequente exploração de mão-de-obra nativa. O desejo dos medicamentos pela população deve ser analisado à luz desse contexto, pois, como em outras realidades não indígenas, a atribuição de sentido ao medicamento é mais ampla que sua dimensão terapêutica: seu consumo sempre comporta múltiplas dimensões, simbólicas, mágicas, de mercadoria etc. (Lefèvre, 1991). Na realidade estudada, para além dos aspectos de eficiência e eficácia terapêutica, o desejo/consumo de medicamentos e de outras mercadorias - como gasolina e vestuário - simbolizam o acesso ao processo civilizatório, que é vivenciado por muitas lideranças como objetivo bastante desejável, embora cresça no seio do movimento indígena a negação dessa forma de socialização.
O manejo de medicamentos pode representar também uma forma de prestígio nas relações comunitárias. Entre as práticas de cura coexistem graus de esoterismo diversos, variando em função do tipo de estratégia terapêutica adotada. Observa-se uma expectativa social de que o Agente Indígena de Saúde detenha a exclusividade de certos saberes; a "caixa de remédio", que simboliza a capacidade de curar do Agente de Saúde, materializa um saber não partilhável com outras pessoas da aldeia. Entre os Agentes de Saúde é generalizado o desejo de aprender um número cada vez maior de medicamentos para serem usados em suas práticas de cura.
Embora reconheçam a resolutividade dos medicamentos industrializados nos quadros de doença trazidas pelo contato - em especial, em situações epidêmicas -, a faceta mais valorizada desta eficácia situa-os no âmbito do poder mágico dos brancos apontado reiteradamente nos mitos Baníwa. Ao aprender as regras de uso dos remédios do branco, os Agentes de Saúde habilitam-se a uma partilha parcial desse poder. Os medicamentos parecem ser assimilados aos instrumentos do pajé. O controle de maior número de espíritos e de poder é simbolizado, na sessão xamânica, pelo uso do maracá, pedras, tabaco e paricá, elementos que expressam materialmente este poder. Similarmente, o uso dos medicamentos industrializados caracteriza o poder de cura do Agente de Saúde. Mesmo que sejam capazes de usar soro caseiro, organizar reuniões e atividades de educação em saúde, participar da vacinação ou dos conselhos de saúde, encaminhar reivindicações e levar pacientes para o hospital, nenhuma dessas habilidades é capaz de superar o prestígio conferido pela capacidade de nominar doenças e oferecer remédios para tratá-las. Sem eles, os Agentes se declaram impotentes e são reconhecidos como tais nas comunidades.
Apesar da oposição dos profissionais de saúde, é inegável que os medicamentos estão inseridos no circuito de trocas comunais. Sempre que se medica um doente, este retribui com uma fruta, um beijú, ou outro objeto. Apesar dos esforços dos Agentes de Saúde para restringir a distribuição de remédios aos casos em que haja indicação farmacológica, mantendo-os fora dos circuitos de reciprocidade, eles cedem freqüentemente às pressões comunitárias. Nestes casos, tentam evitar a distribuição de remédios perigosos, oferecendo placebos ou vitaminas nas relações de troca que são forçados a estabelecer.
Além de ser um bem de prestígio, o medicamento industrializado também representa uma comodidade quando comparado às terapêuticas tradicionais. Boa parte delas exige tratamentos prolongados e, às vezes, penosos, como a adoção de dietas que, por vezes, reduzem o doente à ingestão de mingau, de beijú e de alguns poucos tipos de peixe. O uso de remédios de branco gera a possibilidade de resolver a doença sem fazer os sacrifícios e restrições alimentares e sexuais inerentes às prescrições tradicionais. Atualmente é bastante freqüente que o medicamento industrializado se coloque como primeira escolha, mesmo para o tratamento de doenças reconhecidas como indígenas. A dinâmica do processo de contato interétnico gera necessidades de consumo de produtos de saúde que se mostrem congruentes com as condições atuais de vida; fatores como os deslocamentos para a cidade, a necessidade de produzir para o mercado e as obrigações escolares dificultam a aderência aos tratamentos tradicionais. Embora não haja abandono da base mítica que rege as representações de doença e as práticas de cura, estas últimas já não se colocam como a primeira escolha entre os Baníwa.
No estudo que realizou junto aos Zoró, Brunelli (1989) assinala que a compreensão das escolhas terapêuticas de um povo depende do entendimento do contexto social que confere inteligibilidade às concepções de seus sistemas médicos e/ou daqueles que não lhe pertenciam tradicionalmente, mas com os quais são colocados em contato em decorrência da dinâmica das interações sociais do mundo atual. Estas complexas relações não são necessariamente de oposição ou de exclusão, mas podem encobrir interações que ultrapassam as concepções próprias do campo da saúde ou aquelas do investigador. São influenciadas por fatores sociais, econômicos, políticos e outros que não costumam ser reconhecidos como pertencentes ao campo da saúde, quando considerados a partir da óptica biomédica.
Embora não controlem o processo de distribuição e circulação dos recursos terapêuticos industrializados, os Baníwa gozam de considerável autonomia de escolha, inclusive de rejeitá-los, dentro do leque de opções terapêuticas para eles disponibilizado. Dificuldades de acesso aos medicamentos simbolizam, para as lideranças indígenas, seu prolongado processo de exclusão dos benefícios sociais; elas sabem que os melhores e mais eficazes recursos terapêuticos ficam nas cidades, não chegando até suas aldeias. O sentido de exclusão incrementa as tensões e desconfianças em relação aos brancos e define o perfil das demandas de saúde. Com freqüência, as reivindicações visam mais a redução do processo de desigualdade social através da busca progressiva de maiores quantidades de bens de saúde do que a efetiva melhoria da qualidade dos serviços de saúde.
Considerações finais
Nas páginas acima buscamos uma perspectiva êmica para efetuar uma análise dos campos discursivos em saúde no Alto Rio Negro, onde se evidencia um espaço de negociações de sentido na construção de estratégias de ação em busca de posições hegemônicas na cena social. No contexto estudado, a apropriação do discurso autorizado - seja o tradicional/mítico ou o científico para subsidiar e legitimar as práticas e demandas de saúde - é uma das estratégias valorizadas pelos sujeitos sociais como forma de cumprir suas próprias finalidades políticas e sociais e não para atender os desígnios e prioridades das agências de contato. As explicações biomédicas são aproveitadas quando apresentam relações de congruência com os saberes preexistentes e quando se adaptam às necessidades determinadas pelas condições atuais de vida. Tais produções sociais operam simultaneamente no âmbito da vida cotidiana, orientando as condutas e as relações de comunicação entre os indivíduos no campo afetivo/cultural - exercendo funções de legitimação da identidade indígena - e no campo cognitivo - criando mecanismos de entendimento da realidade e propiciando meios para a familiarização dos elementos novos trazidos pela dinâmica do contato interétnico (Spink, 1993). Nesse processo de transformação constante, as representações sociais orientam práticas e são por elas influenciadas. Os sujeitos sociais - inseridos em um processo de transformação histórica e em contato com diversas formas de saber e de organização de atitudes frente ao fenômeno de doença - desenvolvem práticas e concepções científicas, míticas e de senso comum, que se imbricam e se reproduzem em processo de interferência mútua e retroalimentação contínuas.
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