ARTIGO ARTICLE

 

 

Laura Pérez-Gil 1


O sistema médico Yawanáwa e seus especialistas: cura, poder e iniciação xamânica

The Yawanáwa medical system and its specialists: healing, power, and shamanic initiation

1 Nucleo de Saúde e Saberes Indígenas, Departamento de Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina. C. P. 5015, Campus Universitário, Florianópolis, SC 88040-970, Brasil. laurapg@altavista.com lperez@cfh.ufsc.br   Abstract A wide variety of terms are used in Yawanáwa shamanism to name both healers and the relations between these specialists and techniques of healing and aggression, a characteristic that appears heterogeneous and complex. However, there is unity behind this appearance, because all the techniques are based on the same concepts of power and knowledge. To show how these ideas are conceived by the Yawanáwa, this article explores the process by which power and knowledge are acquired: shamanic initiation.
Key words Shamanism; Thecniques of Healing; Medical System; Ethnomedicine; South American Indians  

 

Resumo Uma das particularidades do xamanismo Yawanáwa é a multiplicidade de termos existentes para designar seus especialistas, bem como a associação com diversas técnicas de cura e agressão, característica que lhe dá aparência heterogênea e complexa. Contudo, uma unidade subjaz a esse aspecto, já que todas essas técnicas compartilham concepções idênticas a respeito da realidade e baseiam sua eficiência nos mesmos conceitos de poder e de conhecimento. Para pesquisar a forma como o poder e o conhecimento - alicerces das práticas relacionadas com a cura - são concebidos entre os Yawanáwa, o artigo explora e analisa o processo por meio do qual o especialista os adquire: a iniciação xamânica.
Palavras-chave Xamanismo; Técnicas de Cura; Sistema Médico; Etnomedicina; Índios Sul-Americanos

 

 

Os Yawanáwa e o xamanismo

 

Este estudo fundamenta-se em seis meses de trabalho de campo entre os Yawanáwa, grupo pertencente à família lingüística pano que ocupa, na atualidade, parte da Terra Indígena Rio Gregório, no Estado do Acre, partilhada com os Katukína-Páno. Os Yawanáwa estão em contato com o homem branco desde as primeiras décadas do século, quando peruanos e brasileiros penetraram naquela região para explorar o caucho e a borracha. Durante muito tempo trabalharam para patrões seringalistas, mas, em 1984 - quando foi demarcada a área indígena e foram expulsos os funcionários da empresa que tinha comprado as terras anos antes -, teve início uma nova etapa na história dessa comunidade indígena, marcada pela autogestão e implementação de projetos - em parceria com empresas estrangeiras e nacionais - que visam ao desenvolvimento sustentável da aldeia.

Atualmente, o campo médico Yawanáwa caracteriza-se pela presença e concorrência de diversas opções terapêuticas, as quais nem sempre convivem de forma pacífica. A biomedicina está representada de várias formas, em especial, pelos agentes indígenas que administram o posto de saúde situado na aldeia; todavia, na vida da aldeia, são importantes também as ações realizadas por instituições governamentais (Fundação Nacional de Saúde - FUNASA, Fundação Nacional do Índio - FUNAI) e não governamentais (Comissão Pró-Índio do Acre).

A presença dos missionários das Novas Tribos - que se instalaram na aldeia por vários anos, até que foram expulsos pelos Yawanáwa, embora permaneçam na aldeia dos Katukína-Páno - tem repercussão importante na prática referente à saúde e à cura. Além desses representantes da biomedicina, os membros do grupo valem-se ainda dos seringueiros brancos da região, que praticam um tipo de medicina baseada no catolicismo popular.

Nesse contexto plural, deparamo-nos com a medicina praticada tradicionalmente pelos especialistas Yawanáwa, a qual se caracteriza por estar inserida em um sistema de tipo xamânico similar aos descritos por outros autores a respeito de sociedades amazônicas (Chaumeil, 1983; Langdon, 1974).

O sistema xamânico é aqui considerado um marco conceitual e cosmológico, cuja manifestação não se limita à prática do especialista, mas permeia outros aspectos da cultura. Seguindo a proposta de Langdon (1996), o xamanismo é entendido como sistema de representações coletivas (Langdon, 1996) que se expressa e se atualiza não apenas nas ações específicas e próprias do xamã - e nos rituais que ele realiza -, mas também na forma como os demais membros do grupo, os não especialistas, pensam e lidam com seu cotidiano e, concretamente, com a doença. Conforme comenta Calavia a respeito dos Yamináwa, lingüística e culturalmente próximos aos Yawanáwa, "o xamanismo Yamináwa está em toda e em nenhuma parte; é possível passar meses na aldeia sem enxergá-lo, e depois percebê-lo associado a todos os aspectos da vida cotidiana" (Calavia, 1994:105).

Essa visão mais abrangente permite, segundo uma perspectiva comparativa, entender o xamanismo Yawanáwa como manifestação dessa instituição social e cosmológica presente em muitas outras sociedades amazônicas, sem renunciar às especificidades e particularidades que ele apresenta e, de acordo com uma perspectiva interna ao próprio grupo, possibilita estudar e analisar, dentro do mesmo marco, práticas e técnicas diversas. Por sua vez, ainda que esta abordagem não defina o xamanismo por meio de técnicas e características concretas e essenciais, ela dá conta dos processos de adaptação e mudança que o xamanismo está conhecendo em muitas sociedades amazônicas, sem que, com isso, deixe de ser reconhecível e reconhecido como tal.

Vários autores constataram a capacidade de adaptação dos sistemas xamânicos à realidade cambiante e às novas circunstâncias (Chaumeil, 1983; Townsley, 1993). Como propõe Chaumeil, o estudo acerca do xamanismo não se deve limitar a uma leitura sincrônica, precisando considerar a dimensão diacrônica do fenômeno. Neste sentido, em seu estudo acerca do xamanismo, Townsley (1993) conclui que este, mais do que um conjunto constituído de saberes, conteúdos e crenças, mais do que um sistema de fatos conhecidos, é um conjunto de técnicas para conhecer. Esta característica do xamanismo Yamináwa fornece-lhe uma capacidade criadora que o faz adaptável às novas circunstâncias em que vive hoje esse grupo pano. Como ressalta o autor, o poder do xamã funda-se, em parte, no extenso conhecimento que detém no tocante à ontologia e ao modo de ser das coisas, e é este saber que lhe fornece a capacidade de atuar sobre a realidade.

 

 

Conceito de "yuxin" na cosmologia Yawanáwa

 

Para os Yawanáwa, a maioria dos seres com os quais compartilham seu universo - animais, plantas e outros homens -, assim como muitos elementos da natureza - as pedras, por exemplo -, os acidentes geográficos - rios, barrancos e florestas - e fenômenos meteorológicos - trovões e relâmpagos - têm, além de seu aspecto corporal ou físico, outro, que é associado ao yuxin. Yuxin é o conceito polissêmico e complexo, central nas cosmologias Páno em geral (Carneiro,1964; Lagrou 1998; Townsley, 1988) e que podemos definir em função de duas questões. Em primeiro lugar, o yuxin é força vital que permeia todos os seres e os dota de características próprias. É importante fazer notar que as substâncias corporais - em especial, o sangue - são portadores de yuxin. Nesta acepção, yuxin é princípio espiritual sem vontade marcada. No entanto, a noção refere-se também a diversos tipos de seres não mais indefinidos ou impessoais, como o princípio vital, mas personificados. Assim, na segunda acepção, yuxin designa os seres espirituais que conformam, junto com o corpo, a pessoa - huru yuxin ou yuxin dos olhos; nia vaka ou sombra; nisu yuxin ou yuxin da urina -; os espíritos dos mortos que habitam o céu; os entes dos diversos elementos da natureza (meshkiti yuxin ou yuxin da pedra; waka yuxin ou yuxin da água; nii yuxin ou yuxin da mata etc.); e, por fim, os representantes de certas espécies animais, os yuxinhu.

Os homens são formados por vários componentes de diferente natureza, ligados de tal forma que o que acontece a algum deles influi irremediavelmente nos outros. A visão que os Yawanáwa têm a respeito da pessoa e, em geral, acerca da realidade, é holística. Neste sentido, o corpo não é exclusivamente matéria: é matéria sempre permeada e animada de yuxin. Outros autores que trabalharam com sociedades amazônicas constataram esta estreita relação entre corpo e entes espirituais na concepção émica da pessoa e destacaram a importância de seu estudo para que se possa aprofundar a própria idéia de doença em um marco de tradição xamânica (Chaumeil, 1983; McCallum, 1998; Pollock, 1996).

O que importa ressaltar a esse respeito é que entre o âmbito do corporal e aquele referido ao yuxin existe comunicação e interação contínua: o que acontece em um deles, tem sempre conseqüências e efeitos no outro. Os homens vivos experimentam o aspecto yuxin da realidade de diversas formas. A mais cotidiana e normal acontece durante o sonho. Os Yawanáwa consideram que, quando a pessoa dorme, seu huru yuxin sai do corpo e vaga pelo mundo afora, encontrando-se com os huru yuxin de outras pessoas e com outros entes. Os sonhos são, portanto, as vivências do huru yuxin fora do corpo, e o que quer que aconteça durante a experiência onírica, repercute irremediavelmente na pessoa como um todo. De fato, os sonhos de um doente são os elementos nos quais o xinaya se baseia para diagnosticar a doença, porque, através deles, pode saber quem e como agrediu seu paciente.

Os especialistas na prática xamânica adquirem conhecimento aprofundado quanto a esse aspecto yuxin mediante visões induzidas por certas substâncias alucinógenas. No entanto, as pessoas percebem, em geral, e experimentam o âmbito do yuxin que se manifesta de inúmeras maneiras no decorrer da vida cotidiana, como, por exemplo, se alguém cai de forma absurda, é porque foi empurrado por um yuxin; quando paus e ossos caem inexplicavelmente, provocando barulho, trata-se do espectro de algum parente recentemente falecido, que não se conforma com sua sorte e incomoda os vivos. Da mesma forma, não é incomum o registro de depoimentos de pessoas que tiveram encontros com o yuxin de um parente morto ou com outros tipos de seres que moram na floresta. As doenças são provavelmente as manifestações mais repercutentes da ação e da influência dos yuxin na vida dos homens, por considerar-se freqüentemente que estes seres são os causadores de muitas doenças. É significativo, a este respeito, que várias doenças relacionadas com a quebra de tabus sejam denominadas "vingança de yuxin" (yuxin kupia) (Pérez, 1999).

 

 

Técnicas xamanísticas de cura e de agressão e seus especialistas

 

Existem, na atualidade, sete indivíduos entre os Yawanáwa que são reconhecidos como especialistas em alguma técnica tradicional de cura. Cinco deles são niipuya, sabedores do uso das plantas da mata (rau). As outras duas pessoas, Gatão e Vicente, são xinaya, palavra que é traduzida literalmente como "aquele que tem pensamento" e que se refere, em geral, às pessoas que praticam a técnica da reza (shuãka). Além desses dois termos, registramos vários outros utilizados para fazer referência às pessoas iniciadas nas prática xamânica: kushuintia, tsimuya, yuvehu e shuintia. Em alguns casos, não é fácil definir, com exatidão, o conteúdo e significado dos termos. Cada um deles está associado, em geral, a uma técnica xamânica concreta ou a determinada função do especialista. É possível, então, estabelecer as seguintes correspondências que, no entanto, não são rígidas (Tabela 1).

 

 

O termo tsimuya - mencionado anteriormente, mas que não aparece na Tabela 1 - é o mais difícil de definir. Literalmente significa "aquele que tem o amargo", fazendo assim referência a esta categoria gustativa tão importante no xamanismo Páno. Entre vários grupos dessa família lingüística - como os Kaxináwa (Lagrou, 1998) e os Matis (Erikson, 1996) -, o poder xamânico está associado ao "amargo", de forma que, como será descrito adiante a respeito dos Yawanáwa, a introdução de substâncias classificadas sob esta categoria é imprescindível para o xamã adquirir e desenvolver seu poder. Diferentemente do que acontece com os outros termos, Tsimuya é denominação projetada no passado, porquanto, ainda que alguns velhos saibam histórias concernentes aos antigos tsimuya, não conheceram pessoalmente nenhum. Talvez seja esta a razão pela qual seus atributos são mais imprecisos e nunca coincidam nos casos que foram narrados a respeito de tsimuya. Contam, de um tsimuya, que ele podia virar onça à vontade ao entrar na água; de outro, que se fazia obedecer pelos yuxin, sabia canções para engravidar mulheres estéreis e conhecia os donos dos "lotes" da mata. Diante dessa indeterminação, os outros termos têm definições mais exatas. A única das técnicas apresentadas na Tabela 1 que nenhum dos especialistas pratica atualmente é a de incorporar yuxin, mas os mais velhos foram testemunhas e lembram das sessões de possessão de um antigo yuvehu, João Grande, pai do atual xinaya Vicente.

Deparamo-nos, portanto, com uma multiplicidade de termos indígenas destinados a designar diferentes tipos de especialistas. Não é incomum encontrar várias denominações que distinguem tipos de especialista entre os grupos pano. Em geral, discriminam-se duas categorias na maior parte dos sistemas xamânicos pano, que se diferenciam pelo grau de poder, como acontece entre o xinaya e o shuintia Yawanáwa: o primeiro termo designa o especialista que superou um período de iniciação de três ou quatro anos e possui um poder e conhecimento maiores do que o segundo, que apenas completou iniciação inferior a um ano. Assim acontece também entre o muraya e o unaya shipibos (Cárdenas-Timoteo, 1989), tal como entre o ñuwe e o koshuitia Yamináwas (Calavia, 1994; Pérez, 2000). Entre os Katukína (Lima, 2000) e os Marúbo (Montagner-Melatti, 1985) há distinção entre o "rezador" (shointia e quechitxo, respectivamente), cuja atividade é similar à do xinaya Yawanáwa, e o romeya, que se caracteriza principalmente pela prática da sucção de objetos patogênicos do corpo do paciente - como técnica de cura, por possuir dardos ou pedras mágicas dentro do corpo, os quais podem ser colocados e tirados à vontade - e, no caso dos Marúbo, pela capacidade de incorporar yuxin.

O fato de haver diversos termos para designar os especialistas, não quer dizer que um indivíduo deva pertencer apenas a uma dessas categorias; pelo contrário, o mesmo especialista pode receber diferentes denominações, dependendo das técnicas que aprendeu durante sua iniciação, da técnica que esteja executando em determinado momento e à qual esteja aludindo, ou da característica do especialista que o falante esteja querendo salientar. Se, por exemplo, Vicente está atuando como mestre de um iniciante, não se referirão a ele como xinaya, mas como yuvehu; por sua vez, se alguém quer desvalorizar seu poder e conhecimento, o designará de shuintia.

Entre os Yawanáwa, é normal que um especialista domine várias técnicas. Para exemplificar tem-se que Gatão sabe rezar (shuãka), mas instruiu-se também no uso das plantas; Vicente, além de rezar, conhece o canto de cura (mëka) e a utilização sheyua, um tipo de massagem terapêutica utilizada por alguns xamãs Yawanáwa para tratar dores localizadas; já o pai de Vicente, João Grande, tinha a capacidade de incorporar espíritos e era considerado grande especialista em remédios vegetais; e o mestre de Gatão e Vicente, Antônio Luiz, era grande rezador, mas era versado no uso das plantas, o mëka e o sheyua. Assim, verifica-se que a configuração do conjunto de técnicas que cada um deles domina é diferente.

Na Tabela 1, cada uma das técnicas aparece associada a determinadas substâncias alucinógenas. Em certos casos, esta correspondência refere-se apenas ao processo de iniciação. Assim, por exemplo, para aprender o canto de cura (mëka), o iniciante deve ingerir o caldo de tabaco (nawënë), mas, se já é especialista, não consumirá nenhuma substância quando quiser pôr em prática este saber. O yuvehu, ao utilizar o mëka para curar alguém, senta na rede, durante o dia, em lugar que não precisa ser fechado nem privado, e canta para o doente ouvi-lo.

Diferentemente, a ayahuasca é consumida tanto no processo de iniciação como nas cerimônias de cura ou de agressão. A execução das rezas com fins terapêuticos é feita em ritual celebrado à noite, quando as pessoas da aldeia já estão dormindo, de forma que acontece em ambiente restrito. A cerimônia pode ser realizada conjuntamente por um ou por vários xinaya. Normalmente, o doente não está presente ao ritual. Os xinaya, sob os efeitos da ayahuasca, cantam suas rezas sobre um pote cheio de uma bebida fermentada de mandioca (a caiçuma) que o paciente beberá depois. Este ritual não está completamente restrito aos curadores, uma vez que pessoas que estejam se iniciando ou desejem simplesmente tomar ayahuasca, o assistem normalmente.

Se, pelo contrário, o xinaya quer agredir alguém, procura um lugar bem escondido na mata, embaixo das grandes sapopemas de uma samaúma, e entoa as rezas sobre o pote cheio de restos corporais da vítima (unhas, cabelos, cuspe, urina, fezes...). Outra técnica de agressão é aquela realizada pelo kushuintia. Este, se quer vingar-se por ter sido ofendido mediante ato ou palavras de alguém, mastiga pó de pimenta ou rapé de tabaco, misturando-o devagar com sua saliva, molha suas mãos com o suor que transpira da própria testa e axilas, junta-as em frente a sua boca e assopra, entre elas, sobre o rasto da vítima, enquanto pensa na forma como esta vai morrer: uma picada de cobra venenosa, uma queda etc.

Apenas no caso de algumas técnicas, o especialista recorre a substâncias que o ajudam a entrar em estados alterados de consciência. O alucinógeno mais forte entre os conhecidos pelos Yawanáwa é a datura (xupa), usada antigamente para curar e para agredir. As narrações que foram registradas quanto aos casos em que um especialista utilizou a datura para efetuar uma cura, tratam do que se conhece usualmente como "perda de alma": o huru yuxin do paciente é roubado e escondido pelo agressor em algum lugar do universo, de forma que o yuxin do curador deve sair do corpo para procurá-lo.

Os Yawanáwa não julgam que seu huru yuxin abandone o corpo quando a pessoa ingere ayahuasca, em contraste com outros grupos pano, tais como os Kaxináwa (Lagrou, 1996) ou os Yamináwa do Purús (Townsley, 1988). Eles enfatizam o papel que o pensamento, o sentimento, a intencionalidade - a ação consciente, afinal de contas - joga quando o xinaya está rezando. O xinaya, como indica seu nome, atua através de seu pensamento, canalizado e materializado nas rezas e nas percepções sinestésicas a elas associadas e que são experimentadas pelo especialista sob os efeitos da ayahuasca. Percebe-se assim que cada uma das substâncias utilizadas pelos Yawanáwa tem características, efeitos e usos próprios, diferentes do de outras.

Em geral, no xamanismo pano, os principais alucinógenos são a ayahuasca e o tabaco. Assim acontece entre os Kaxináwa (Lagrou, 1998), os Shipibo (Illius, 1992), os Yamináwa do Purús (Townsley, 1988) ou os Katukína (Lima, 2000). No entanto, o uso e conhecimento de várias outras substâncias xamânicas encontradas entre os Yawanáwa são mencionadas por seus informantes, além do tabaco e da ayahuasca, tais como a pimenta (yutxi), o rare (não identificada), o xupa (provavelmente, datura), o kapi (provavelmente, "mata-pasto") - que também são citadas a respeito dos Marúbo (Montagner-Melatti, 1985) e dos Yamináwa; entre o grupo das Cabeceiras do Rio Acre, segundo o trabalho de Calavia (1994), e, de acordo com a pesquisa de campo deste trabalho, entre os Yamináwa do Rio Mapuya (Alto Ucayali, Peru).

A multiplicidade de nomes destinados aos especialistas tanto de técnicas quanto de substâncias empregadas faz do xamanismo Yawanáwa um campo complexo e heterogêneo. A análise deste, provoca a reflexão no tocante a como estes diferentes conhecimentos e poderes são adquiridos pelos especialistas nos processos de iniciação.

 

 

Processo de iniciação xamânica

 

Embora haja diferenças marcantes no desenvolvimento das iniciações concretas dos diversos especialistas Yawanáwa, distinguem-se claramente quatro processos que estão presentes em todos os relatos, ainda que não com o mesmo destaque: a memorização de boa quantidade dos saberes (rezas, cantos de cura, uso de plantas...); a ingestão de substâncias alucinógenas; a realização de resguardo rigoroso; e, por fim, a superação de certas provas.

Esses quatro processos não constituem etapas sucessivas da iniciação, mas se desenvolvem paralelamente. O primeiro passo é obviamente tomar a decisão de iniciar-se. Os relatos feitos pelos especialistas Yawanáwa ressaltam, como uma das principais razões que os levaram a submeter-se a este processo, a necessidade de poder resolver os problemas de doenças que afetam a própria família, sem precisar recorrer a outra pessoa. O outro, quando uma pessoa que não é parente ou não é suficientemente próxima é vista como possível fonte de conflito e prejuízo. Em várias ocasiões, foi a doença de um familiar querido o que impulsou os especialistas à iniciação. Existem, sim, como acontece em outros grupos, certos encontros com seres sobrenaturais que são tidos como sinais de que a pessoa deve iniciar-se, todavia, nesses casos, as explicações dadas enfatizam aspectos práticos, pois o poder xamânico é garantia de segurança para si mesmo e para a própria família.

É comum que, antes de ter decidido submeter-se à iniciação xamânica, a pessoa esteja familiarizada com as cerimônias, com certos conhecimentos e com algumas bebidas alucinógenas, em especial, a ayahuasca. Em geral, os homens adultos, ainda que não sejam especialistas, costumam assistir aos rituais e consumir ayahuasca não apenas nas cerimônias mais fechadas, dedicadas geralmente à cura, mas também em determinadas festas públicas (Carid, 1999).

Tomada a decisão de iniciar-se, o aprendiz deve cumprir uma dieta, a qual reduz drasticamente a quantidade de alimentos que podem ser ingeridos, elimina o consumo de alimentos doces e permite apenas beber bebidas azedas, como a caiçuma (bebida fermentada de mandioca). Além disso, o iniciante deve reduzir no máximo suas relações sociais, evitando qualquer contato com as mulheres e isolando-se temporariamente na floresta, longe da aldeia. Ao mesmo tempo, começa a consumir ayahuasca e tabaco diariamente, bem como passa a assistir sistematicamente às cerimônias de cura, durante as quais deve memorizar as rezas entoadas pelos outros xinaya e shuintia. O processo se completa com a superação de certas provas iniciatórias. Quem quer aprender o uso dos rau, segue processo similar, embora, nesse caso, deva acompanhar o mestre à floresta quando este vai procurar algum remédio, assistindo os tratamentos que realiza.

Existem fundamentalmente três provas associadas à iniciação xamânica: chupar o coração da sucuri (uinti aka), ingerir bebida alucinógena feita de uma planta chamada rarë (rarë ruwa waki) e derrubar uma colmeia do alto de uma árvore, agüentando, com firmeza, as ferradas das abelhas. É necessário que o iniciando supere alguma destas provas, mas cada um decide a qual ou a quais quer se submeter. Quantas mais destas provas supere uma pessoa, mais conhecimentos e poder acumulará. Cada um desses "mistérios" - como os denominou um informante - implica necessariamente um tempo de resguardo rigoroso. Seu descumprimento não apenas impossibilita a iniciação, mas tem conseqüências negativas para o iniciante, como expresso nos casos de Raimundo e Gatão.

Raimundo é um velho líder Yawanáwa, filho primogênito de Antônio Luiz - um grande xinaya e igualmente chefe Yawanáwa desde o contato com os brancos até a sua morte, na década de 70 -, que empreendeu o caminho da iniciação xamânica em sua mocidade por algum tempo. Seu pai deu-lhe o coração de uma sucuri para chupar, depois do que deveria cumprir duro resguardo pelo espaço de um ano. Faltando dois meses para a finalização, Raimundo quebrou a dieta. Desde então, ele vive doente e, tanto ele como os outros especialistas da aldeia, julgam que isso decorre precisamente do fato de ele não ter finalizado o resguardo de maneira adequada: o yuxin da cobra morta vingou-se por ter sido desrespeitado. Variantes dessa prova iniciatória são informadas a outros grupos pano (Calavia, 1994; Lagrou, 1996; Siskind, 1973). É preciso notar que, no xamanismo pano, a sucuri aparece freqüentemente como fonte do conhecimento e poder xamânicos (Lagrou, 1996; Lima, 2000; Pérez, 1999).

Outro exemplo significativo do que acontece quando os resguardos não são cumpridos adequadamente é aquele do xinaya Gatão. Além de aprender as rezas e o uso das plantas, Gatão ingeriu caldo de tabaco (nawënë) para aprender um tipo de canto de cura (mëka) usado no tratamento de certas doenças. No entanto, comeu um peixe proibido durante o período de dieta e, em seguida, adoeceu. Foi tratado por seu mestre Antônio Luiz e sarou, mas esqueceu o canto para sempre e ficou impossibilitado de aprendê-lo.

Vê-se então que o descumprimento das dietas, o afrontamento das provas ou a ingestão de substâncias xamânicas têm, como conseqüência, a interrupção da iniciação e o adoecimento do aspirante. Se a superação de provas e resguardos fortalece o especialista, tornando-o sábio e poderoso, o fracasso no empreendimento o enfraquece, transformando-o em pessoa doente.

É interessante constatar que o objetivo do iniciando ao afrontar uma prova pode não coincidir com o resultado obtido. Assim, por exemplo, contam de Valdemar - um homem que insiste em ter poder e conhecimentos xamânicos, porém não é acreditado nem reconhecido por seus congêneres -, que derrubou uma colmeia para aprender a rezar, mas, em vez disso, converteu-se em caçador de mérito. Da mesma forma, Vicente explica que sua intenção, quando tomou rarë, era iniciar-se na reza e no uso dos rau; contudo, apenas aprendeu a primeira dessas práticas. Do quê depende o resultado dessas provas não é algo que fique claro: ora parece dever-se à vontade dos yuxin implicados (da cobra, do rarë...), ora ao comportamento e capacidades do iniciante.

Afora encarar essas provas, os aprendizes ingerem diversas substâncias que produzem estados alterados de consciência: ayahuasca (uni), caldo de tabaco (nawënë), rapé de tabaco (nawë) e pimenta (yutxi). O consumo desses produtos deve ser acompanhado de resguardo. Semelhantes processos seguem uma lógica comum que tem, como finalidade, o mesmo objetivo, desdobrado em duas facetas: de um lado, a incorporação do conhecimento e, de outro, a aquisição de poder. Realmente, a iniciação xamânica não visa outra coisa senão alcançar estes dois fins, em razão de ser fundamentalmente um processo de transformação. Apenas através dessa transformação torna-se possível adquirir o poder necessário para que os conhecimentos praticados sejam efetivos, isto é, tenham a capacidade e a virtude de modificar a realidade segundo a vontade do especialista.

Até o momento falamos em "iniciação", no singular, mas seria mais adequado falar em "iniciações", já que o aprendiz passa por tantas delas durante sua vida quantos conhecimentos e técnicas queira aprender. Nesse sentido, a iniciação é processo intermitente e aberto que, na maioria dos casos, apenas finaliza com a morte do mestre. A iniciação compõe-se de períodos sucessivos de resguardo e do aprendizado de técnicas diferentes. Acontece também que rezas, uso de plantas e cantos somente podem ser aprendidos quando colocados em prática para atender um caso real, posto que sua execução tem sempre efeito e é perigoso fazê-lo quando não aplicado a objetivo concreto. Por isso, o aprendiz tem a oportunidade de aprender muitos deles apenas depois de ter concluído o período de resguardo. A atitude do especialista, portanto, é de contínua disposição a instruir-se a respeito de novos conhecimentos sempre que surge a oportunidade.

Vários especialistas comentaram que, depois de se iniciarem, ficaram envergonhados, sem colocar seus saberes em prática abertamente por muito tempo, receosos de que os outros - em especial, seus mestres - rissem deles. Apenas experimentavam os poderes recém adquiridos longe dos olhares dos outros. Em virtude disso, em muitos casos, foi apenas a partir da morte do mestre que a pessoa começou a exercer a prática xamânica de forma aberta.

 

 

Incorporação do conhecimento

 

Em geral, no processo de iniciação, a figura do mestre é fundamental. Normalmente é ele quem incentiva o iniciante, dirige o processo, acompanha-o quando ingere as substâncias xamânicas e, durante as provas, é quem dita as dietas, a fonte dos saberes que serão aprendidos.

É igualmente possível que uma pessoa aprenda de vários mestres. Usualmente, o mestre é parente próximo; ninguém quer ensinar alguém com quem não tem vínculos de sangue, pois seria como pôr armas nas mãos do inimigo. Na maioria dos casos, a figura do mestre é essencial para que a iniciação possa ser realizada. No entanto, entre os Yawanáwa, encontramos o caso de um niipuya, Pereira, que jamais contou com alguém que lhe ensinasse e, apesar disso, conseguiu iniciar-se. Este homem é de origem Saináwa - outro povo Páno situado na região acreana de Bagé -, mas casou com uma Yawanáwa e foi morar na aldeia do Rio Gregório. Quando era jovem, tinha muito interesse em iniciar-se, mas não tinha parente próximo que quisesse lhe ensinar e andava sempre às escondidas, espreitando os velhos quando iam pegar alguma planta na mata. Foi por sua conta, segundo ele narra, que ingeriu o rarë. Depois de instalar-se entre os Yawanáwa, também não teve mestre, pois, sendo de outro grupo e não tendo relações de consangüinidade com nenhum Yawanáwa, ninguém queria iniciá-lo. Atualmente, se esse homem é reconhecido como niipuya, o é fundamentalmente por seu esforço. O caminho foi muito mais difícil para ele do que para os outros, já que a sua, foi uma auto-iniciação.

A transmissão do conhecimento, todavia, aparece de várias formas nas histórias que os especialistas Yawanáwa constroem a respeito de suas iniciações. De um lado, está muito ligado à figura do mestre, porém a forma como este passa seu saber é sempre indireta: o aprendiz apenas memoriza os segredos de determinada técnica xamânica, assistindo no momento em que é executada. Tudo é aprendido em tempo real; o que o iniciante não retiver nos momentos em que as rezas, cantos e outras técnicas forem colocados em prática, não poderá aprendê-lo mais. Este aspecto da transmissão do conhecimento - que não é exclusivo do xamanismo, mas que é próprio e característico de qualquer processo de aprendizado entre os Yawanáwa - reflete-se na linguagem: um xinaya nunca fala que conhece (tapi) as rezas, mas que as escutou (e nikia); da mesma maneira, um niipuya, para expressar que sabe o uso de determinada planta, dirá que o viu (e uiya). Tais considerações coincidem com aquelas feitas por outros pesquisadores (Kensinger, 1995; McCallum, 1998) no tocante à forma como os Kaxináwa - igualmente Páno - concebem que os conhecimentos são adquiridos através dos sentidos corporais.

Este aspecto do ensino tem conseqüência importante: em princípio, se algum iniciante não tem a oportunidade de assistir à execução de determinada reza ou técnica ou não presencia a utilização de uma planta, esse saber se perderá para ele. É por esta circunstância que o aprendiz, durante, a iniciação deve estar em disposição adequada para memorizar e instruir-se nas técnicas que sejam colocadas em prática. Este estado é conseguido por intermédio do jejum e da ingestão de certas substâncias. A memorização dos conhecimentos xamânicos requer sofrimento, e é através da abstinência alimentar e sexual, assim como das provas iniciáticas descritas, que esse estado ideal é alcançado. O iniciante deve chegar a um estado total de concentração e autocontrole para poder reter tal quantidade de saberes na memória. Ademais, a ingestão de substâncias alucinógenas - em particular, a ayahuasca - exerce papel importante nesse processo de aprendizado das rezas e dos mitos. Dizem os Yawanáwa que, sob os efeitos dessa beberagem, o iniciando é capaz de visualizar mentalmente o conteúdo do narrado ou falado pelos xinaya que estão atuando em uma cerimônia e, assim, o conhece, memoriza e incorpora. Através dos estados alterados de consciência produzidos por estas substâncias, o aprendiz entra em contato com o domínio dos yuxin, que transparece em mitos e rezas. O conhecimento deste meio é essencial à atividade xamanística, uma vez que o xamã, em qualquer de suas facetas, é mediador entre ambos os aspectos da realidade.

Sob os efeitos dos alucinógenos, os iniciantes dizem receber ensinamentos de seus ancestrais mortos. Uma das visões ou sonhos que aparecem nas histórias é ver-se assistindo um ritual de cura realizado pelos mestres e outros especialistas vivos ou já mortos. Uma vez acordado, o iniciante experimenta e pratica os conhecimentos que aprendeu durante o sonho. Durante o estado onírico, em algum momento da iniciação, ele recebe objetos significativos - uma lança, um cocar... - como sinal de que o empreendimento está sendo legitimado por esses especialistas que encontra e lhe ensinam. Pelo contrário, se esses indivíduos não falam ou não dão nada nos sonhos para o iniciante, é sinal de que a prática não terá bom término. O recebimento desses objetos por parte do aprendiz é designado nos relatos como "revelação". A partir desse momento, é impossível esquecer o aprendido, que fica gravado como uma tatuagem indelével no corpo.

Ao mesmo tempo e pelos mesmos processos que o iniciante adquire os conhecimentos, acumula também o poder. Ambos os aspectos são inseparáveis; faltando um, a prática do xamanismo não é possível.

 

 

Transformação do corpo: o poder

 

Embora o papel do mestre tenha muita importância no processo de iniciação, a aquisição de poder e conhecimento depende fundamentalmente do esforço do aprendiz. Diferentemente do que acontece entre outros grupos Páno - como os Shipibo-Conibo (Illius, 1992), Marúbo (Montagner-Melatti, 1985) - ou amazônicos, em geral - como os Achuar (Crépeau, 1988), em que o mestre transmite o poder ao iniciante seja através de um escarro que o primeiro cospe e o segundo deve engolir, seja de pedras ou dardos mágicos que o mestre tira de seu próprio corpo para colocá-los no do iniciante -, entre os Yawanáwa, o poder não é transmitido nem traspassado; adquiri-lo depende exclusivamente da capacidade do aspirante.

Para alcançar o poder xamânico, o iniciante deve submeter-se a processos que têm, como resultado, a transformação do corpo e, conseqüentemente, de seu ser. Essa transformação, junto com o conhecimento adquirido, fornece-lhe a capacidade de transitar entre os dois aspectos da realidade e de operar neles. Como comenta Crépeau (1988) a respeito dos Achuar, por intermédio da iniciação, o xamã alcança um estado permanente que o caracteriza como "mais-do-que-humano", mas "menos-do-que-espírito". A metamorfose operada durante a iniciação aumenta o grau de alteridade do especialista a respeito dos homens, mas o aproxima do domínio do yuxin. Esta posição intermediária é a que o faz capaz de desempenhar sua função mediadora entre os dois âmbitos.

O processo de transformação do corpo do iniciante efetua-se paralelamente e pelos mesmos meios que a incorporação do conhecimento. O sofrimento ao qual se submete o iniciante através das privações alimentares e sexuais e seu afastamento da vida cotidiana da aldeia são aspectos essenciais que contribuem para que se realize essa mudança. Em todo o processo, a introdução no corpo de substâncias classificadas pelos Yawanáwa como tsimu cumpre papel fundamental. Esta categoria, cuja importância é igualmente registrada entre outros grupos pano (Erikson, 1996; Lagrou, 1998), traduz-se geralmente como "amargo"; no entanto, seu significado é mais abrangente.

Agentes tsimu por excelência são as substâncias xamânicas que já foram mencionadas: ayahuasca, tabaco, pimenta, rarë e datura. Seu consumo não tem como única função a indução de estados alterados de consciência, mas também aumentar o grau de tsimu no corpo do iniciante. O mesmo papel têm as ferradas dos insetos que o iniciante sofre quando derruba uma colmeia de abelhas: seu veneno e a dor provocada são tsimu. A procura do tsimu, no entanto, não é exclusividade dos especialistas. Os Yawanáwa contam que, antigamente, os homens buscavam ser picados por insetos, já que a introdução de tsimu no corpo resultava, por exemplo, na melhoria da capacidade cinegética.

A lógica da dieta que os aprendizes devem respeitar durante a iniciação tem dois aspectos principais. De um lado, a quantidade dos alimentos ingeridos deve ser escassa, podendo comer animais pequenos, algumas aves e peixes miúdos dos riachos. O iniciando deve suportar o estado de fome, controlar as necessidades de seu corpo e concentrar a mente no aprendizado. De outro, os alimentos e bebidas consumidos devem pertencer à categoria de tsimu (amargo); todas as comidas são temperadas com pimenta; as únicas bebidas permitidas são as fermentadas (em especial, a caiçuma azeda de mandioca); qualquer alimento bata (doce) é evitado, tal como a água e qualquer produto vindo do homem branco; os alimentos apenas podem ser assados. A transformação do corpo produz-se, portanto, pela introdução de substâncias amargas e pelo aumento de sua resistência ao ser submetido a condições limites de sofrimento.

A dor, o amargo e o sofrimento, associados às provas iniciáticas e aos resguardos, revelam-se, em conseqüência, como elementos que constituem e definem a iniciação xamânica, além de serem processos sem os quais não é possível alcançar e acumular poder. A eficácia das ações de um especialista - seja xinaya, niipuya ou qualquer outro - é atribuída, pelos Yawanáwa, à rigorosidade com que ele cumpriu os preceitos dos resguardos durante a iniciação. Segundo Gatão, por exemplo, qualquer tipo de tratamento realizado por seu mestre Antônio Luiz obtinha rapidamente o resultado desejado, enquanto as curas que o próprio Gatão empreende demoram mais em ter o efeito pretendido. A explicação do informante é que isto se deve a seu mestre ter cumprido os resguardos e abstinências por mais tempo e com mais rigor do que ele próprio.

Outro caso interessante a esse respeito é o de Raimundo, que já foi comentado. Embora considerado um dos maiores conhecedores do saber xamânico na aldeia- não apenas é grande contador de mitos, mas memorizou muitas rezas e sabe os segredos das plantas - não tem poder, ou melhor, seu poder, como ele declara, 'ficou preso' dentro dele por ter quebrado o resguardo durante a iniciação e não tê-lo retomado mais. A única forma de poder exercitar sua sabedoria seria submetendo-se de novo aos resguardos, de modo a completar o processo de iniciação.

Outro aspecto fundamental do poder xamânico é sua ambivalência. Para o iniciante experimentar o poder adquirido não basta curar alguém; deve também provocar doenças e desgraças: a cura e o feitiço são as duas caras da mesma moeda, não existe uma sem a outra. Para o iniciante saber curar é preciso que saiba, ao mesmo tempo, como provocar as doenças; se quer ter o poder de sarar alguém, deve ter o poder de matar e necessita provar que o possui.

 

 

Sócio-política e transmissão do conhecimento xamânico

 

Os aspectos particulares do desenvolvimento de cada iniciação desenvolvidos nos itens anteriores permitem perceber que o conhecimento xamânico não funciona como conjunto fechado de conteúdos que vai sendo transmitido como um todo, senão que o que cada qual aprende, depende de seu interesse, de sua capacidade para realizar a iniciação, das possibilidades de ser ensinado por outra pessoa e das circunstâncias que envolvem sua vida. Embora durante a iniciação o aprendiz deva memorizar conhecimentos muito concretos - como rezas ou uso de plantas -, o processo consiste principalmente no aprendizado de meios e técnicas para conhecer e atuar sobre a realidade (Townsley, 1993).

A abordagem feita neste estudo revela que o xamanismo Yawanáwa conta com uma teoria acerca do conhecimento e do poder na qual se fundamenta sua prática, a qual é comum a todas as técnicas utilizadas pelos especialistas. O uso de plantas, a utilização de rezas e de cantos de cura, a incorporação de espíritos e a agressão através do assopro compartilham a mesma forma de entender a relação entre poder e conhecimento na qual se baseia sua eficácia. Todas estas técnicas formam parte do mesmo marco conceitual de tipo xamânico. É por isso que, no caso Yawanáwa, não é possível separar - como o fazem alguns autores (Buchillet, 1991; Gallois, 1991; Pollock, 1994) a respeito de outros grupos amazônicos - a terapia xamânica, destinada a tratar as "causas últimas", da fitoterapia para tratar os sintomas corporais. Entre os Yawanáwa, o uso de rau é terapia de tipo xamânico, que conta com seu próprio campo de ação e cujo funcionamento funda-se nas mesmas concepções relativas ao conhecimento e ao poder, bem como na mesma cosmologia que o resto das práticas xamânicas.

Dada esta forma de entender o poder xamânico, é difícil estabelecer uma hierarquia entre os diversos tipos de especialistas anteriormente definidos. Entre os Yawanáwa, os termos empregados para designar os especialistas não definem, na realidade, tipos classificatórios, já que a mesma pessoa pode iniciar-se e praticar diversos aspectos e técnicas xamânicas. O poder não depende do tipo de conhecimento que um especialista possua, mas da quantidade de técnicas que ele conhece e tem capacidade de praticar com eficácia, afora o tempo e o rigor com que fez os resguardos durante a iniciação. A hierarquia não se estabelece de forma teórica entre tipos de especialistas, mas de forma prática e concreta entre indivíduos.

Embora os conhecimentos xamânicos sejam de tipo esotérico, é comum que as pessoas não iniciadas possuam noções a esse respeito. Acontece que a maior parte dos homens mais velhos realizaram algum período mais ou menos curto de iniciação xamânica durante sua vida e, mesmo que não se tenham tornado grandes especialistas, alcançaram certo estágio de poder e conhecimento. A iniciação dos grandes especialistas não difere destes casos em natureza, mas em grau, por possuírem conhecimento muito mais aprofundado e sua capacidade para atuar sobre a realidade ser mais potente e efetiva. De fato, a comparação dos dados Yawanáwa com a situação dos Yamináwa do Mapuya (Alto Ucayali, Peru) - entre os quais também foi feito trabalho de campo - permite pensar que antigamente, em ambos os grupos, a iniciação xamânica era um processo ao qual se submetiam quase todos os homens durante sua juventude, embora por período mais curto do que aquele superado pelos especialistas. A tendência recente de restringir a iniciação exclusivamente à formação de especialistas implica processo de esoterização do conhecimento xamânico (Pérez, 2000). Neste contexto, a idéia de xamanismo não se refere exclusivamente à prática de determinadas técnicas por parte dos especialistas, mas constitui um sistema de caráter cosmológico, uma visão do mundo, partilhada por todas as pessoas que formam parte da cultura em questão.

Outro aspecto interessante do funcionamento do xamanismo entre os Yawanáwa é a associação que existe entre a transmissão de conhecimentos xamânicos e o relacionamento que o grupo mantém com outros povos indígenas. Esta sociedade pano esteve e está inserida em um contexto de relações sociopolíticas que ultrapassa a própria comunidade e que inclui outros grupos, tanto da mesma família lingüística - Rununáwa, Katukína-Páno, Saináwa, Iskunáwa - quanto de outras - Kámpa, Kulína, Kanamarí (Carid, 1999). Tal situação implica a contínua circulação de pessoas entre uns grupos e outros, e, com elas, o tráfico de conhecimentos, práticas e costumes. A maior parte dos Yawanáwa são, na atualidade, descendentes de membros de outros grupos que foram sendo incorporados através dos processos que regem as relações entre as diferentes comunidades - guerras e alianças - ou daqueles desencadeados com a chegada do homem branco - incorporação a outros grupos de famílias remanescentes de comunidades que sofreram a desaparição de grande parte de seus membros.

Acerca da relação entre esses processos sócio-políticos e a incorporação de práticas e conhecimentos de tipo xamânico, constata-se que vários dos especialistas Yawanáwa aprenderam seus conhecimentos com especialistas de outros grupos, seja porque sua própria origem é externa e se uniram aos Yawanáwa depois de terem sido iniciados, seja porque certos especialistas de outros grupos viveram entre eles e praticaram e transmitiram seus conhecimentos a membros da comunidade - caso de vários dos niipuya que moram atualmente na aldeia -, ou porque pessoas interessadas saíram da comunidade para ter iniciação com especialistas reconhecidos de outros grupos vizinhos. Situações similares em que conhecimentos e práticas xamânicas circulam entre grupos que mantêm entre si relações de diversos signos são constatadas também por outros autores entre povos indígenas da Amazônia (Chaumeil, 1988; Langdon, 1974).

Todas essas considerações apresentam o xamanismo não como instituição imóvel e rígida, destinada a perecer no atual contexto de mudança, mas como sistema aberto e fluido, sujeito e motor de modificações e mudanças, objeto de troca e elemento essencial, em seu aspecto sociológico, nas relações intra e intergrupais de muitos grupos amazônicos.

 

 

Referências

 

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