OPINIÃO OPINION
Sergio Koifman 1 | Geração e transmissão da energia elétrica: impacto sobre os povos indígenas no Brasil Electric power generation and transmission: the impact on indigenous peoples in Brazil
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1 Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil. koifman@ensp.fiocruz.br | Abstract This paper presents an overview of the effects of electric power generation and transmission on indigenous communities in Brazil. According to data from FUNAI (the Brazilian government's Board of Indian Affairs), there are 156 cases of direct impact, present or future, of the electric power sector on Indian settlements geographically distributed throughout Brazil, 65% of which are located in the Northern Region of the country. The principal complaints by indigenous communities relate to the direct effects of flooding following construction of hydroelectric dams, destruction of sacred sites like cemeteries, mosquito proliferation, and health-related hazards such as malaria and other infectious diseases, decrease in game for hunting, crowding out of farm land, and increased invasion of indigenous lands. Future perspectives include a scenario with further construction of hydroelectric dams, especially in the Amazon region, with possible similar effects on indigenous communities. Key words Electricity; Environmental Impact; South American Indians
Resumo Este trabalho busca retratar a distribuição de intercorrências nas comunidades indígenas no Brasil associadas à geração e à distribuição da energia elétrica. De acordo com dados da Fundação Nacional do Índio, há 156 áreas geograficamente distribuídas no país caracterizadas por afetarem, presente ou futuramente, assentamentos indígenas através da expansão do setor elétrico - 65% das quais situadas na Região Norte. As principais reclamações destas comunidades dizem respeito aos efeitos diretos acarretados pelo alagamento originado com a construção das barragens hidroelétricas: submersão de territórios sagrados (como cemitérios); proliferação de mosquitos (ampliando a difusão da malária e de outras doenças infecciosas); escassez de caça; restrição das terras para a agricultura; e a criação de condições facilitadoras da invasão de terras indígenas. O cenário de perspectivas futuras é esboçado em quadro marcado pelo planejamento da construção de novas usinas hidrelétricas - em especial, na região amazônica - com possíveis efeitos similares nas comunidades indígenas. |
A expansão do setor elétrico no Brasil tem acarretado historicamente situações de conflito direto ou latente com diversas comunidades indígenas. Este fato tem ocorrido sobretudo em decorrência das conseqüências advindas da construção de usinas hidrelétricas e de linhas de transmissão de alta tensão elétrica no interior ou nas proximidades das terras indígenas.
Entre as principais interferências diretas e indiretas oriundas pela expansão do setor elétrico nas áreas indígenas, destacam-se: a realocação de comunidades para outras regiões, muitas vezes acompanhada de rupturas em seus estilos de vida; o alagamento de grandes parcelas territoriais, incluindo áreas consideradas sagradas, como os locais tradicionais de sepultamento; a invasão das terras indígenas, facilitadas indiretamente pela expansão das instalações do setor elétrico; a diminuição da disponibilidade da caça e a redução das áreas cultiváveis; e a proliferação da população de vetores, incluindo artrópodos e moluscos, levando ao aumento na incidência de malária e outras doenças infecciosas (Arruda, 1985; Bulcão, 1994; Consolini et al., 1990; Couto, 1996; Guimarães et al., 1997; Tadei, 1994).
Relatos desta natureza têm sido feitos por diferentes comunidades, conforme apresentado na Tabela 1. Alguns exemplos poderiam ser citados, como os Avá-Guaraní, em decorrência da construção da Usina Itaipu-Binacional; os Parakanã, após a construção da Usina de Tucuruí; os Pankararu, com o funcionamento da Usina Luiz Gonzaga. A construção de linhas de transmissão de alta tensão elétrica no interior das terras indígenas tem sido outro importante fator de litígio, como os Parakatejé, no Pará; os Pankararu, em Pernambuco; os Nambikwára, em Mato Grosso, e os Kaigáng, no Paraná, entre outras comunidades. Embora estas tenham sido construídas após a assinatura de acordos, seja com o pagamento de indenizações e/ou instalação da rede elétrica nos domicílios das aldeias, o sentimento de não aceitação de seus termos persiste em diferentes comunidades (Ferraz, comunicação pessoal).
Neste trabalho, procuraremos dimensionar a magnitude das interferências em diversas comunidades indígenas acarretadas pela expansão do setor elétrico no país. Antes de retratá-la, contudo, é oportuno caracterizar as diferentes etapas envolvidas no processo de construção de uma usina hidrelétrica, desde a de planejamento até a sua entrada em operação.
De acordo com as Centrais Elétricas Brasileiras S. A. (ELETROBRÁS, 1990), a primeira etapa diz respeito ao inventário da bacia hidrográfica, quando são realizados estudos a respeito de seu potencial, de como a eletricidade gerada poderá ser aproveitada, bem como são analisadas as opções para a localização da barragem. Segue-se a fase de estudos de viabilidade, em que há análise de casos específicos e da relação custo-benefício de cada projeto. Estas geram o desenho de um Projeto Básico, que se constitui na última etapa dos estudos, subsidiando as decisões do setor elétrico e incluindo os impactos negativos acarretados pela obra. Passa-se então à etapa do Projeto Executivo, quando se inicia a construção da barragem e, com esta, a execução das atividades de desmatamento e alteração do curso fluvial, acelerando o processo migratório para a área. Finalmente, após seu término, inicia-se a etapa de operação com a geração e distribuição da energia elétrica através das linhas de transmissão de alta tensão, quando surgem os riscos decorrentes da formação dos grandes lagos e proliferação de vetores.
Segundo dados fornecidos pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1996 (comunicação pessoal), existiam 156 Áreas Indígenas com algum tipo de contestação em decorrência de litígios com empresas do setor elétrico (Tabela 1). Estas apresentavam a seguinte distribuição geográfica: 39 no Estado do Amazonas; 22 em Mato Grosso; 21 no Pará; 14 em Mato Grosso do Sul; 13 em Rondônia; oito no Rio Grande do Sul; sete no Paraná; seis em Tocantins; quatro cada em Pernambuco, Bahia e Santa Catarina; três em Minas Gerais; dois cada em Alagoas e Maranhão; e um em cada um dos estados de Goiás, Espirito Santo, Paraíba, Roraima, Sergipe, São Paulo e Amapá. Percebe-se assim não só um padrão nacional de distribuição da problemática, mas também sua concentração na Região Norte, com mais de 65% dos litígios referidos pelas comunidades indígenas com o setor elétrico (FUNAI, 1996, comunicação pessoal).
Em conjunto, as populações destas comunidades capazes de virem a ser afetadas direta ou potencialmente pela expansão deste setor totalizam ao redor de 117.837 indígenas segundo estatísticas da FUNAI, aproximadamente um terço de toda a população indígena no país (MS, 2000). Neste sentido, o principal fator envolvido diz respeito à construção de usinas hidrelétricas, respondendo por 104 (67%) das interferências documentadas com áreas indígenas, estando 26 destas em operação. A segunda causa mais freqüente de interferência foi a implantação de linhas de transmissão de alta tensão elétrica no interior das terras indígenas (26 relatos), seguindo-se cinco relatos referentes à proximidade destas com áreas limítrofes à comunidades indígenas.
Em relação às usinas hidrelétricas planejadas, alguns exemplos tipificam as dimensões do problema em análise. Assim, a construção das usinas hidrelétricas Monte Cristo, Santo Antonio, São Jirau e Madeira Bin afetaria 32 áreas indígenas nos estados do Amazonas e Rondônia (comunidades Múra, Sateré-Mawé, Parintintín, Pirahã, Tenharím, Pakaanóva, Karipúna e Munduama), totalizando 5.123 pessoas, para não mencionar os grupos ainda isolados vivendo na região.
Outro exemplo é o da construção, em Mato Grosso, das usinas hidrelétricas de Torixoréu (planejada) e aquelas em estudo de viabilidade (Barra do Peixe, Couto Magalhães e da Foz do Nodoire), cuja entrada em funcionamento afetará diretamente ao redor de 4.000 indígenas das nações Xavánte e Boróro. Ainda neste sentido, a construção do complexo Altamira no Rio Xingu, no Pará, inundará cerca de 7.400km2, atingindo as áreas indígenas Kararaô, Mekragorotire, Gorotire, Kikretum, Kubenkrankégn, Aukre, Kokraimôro, Xikrín, Araweté, Asuriní, Arára, Parakanã, Jurúna, Curukua e Xipáya, totalizando cerca de 3.600 pessoas (Mullen, 1991).
Uma das experiências de implantação de barragens pelo setor elétrico mais estudadas é a da hidrelétrica de Tucuruí no Pará, a qual inundou 2.430km2, atingindo diretamente, através do alagamento, as áreas indígenas Asuriní, Gavião, Suruí, Parakanã e Xikrín, bem como as áreas Guajará e Krikatí pela construção das linhas de transmissão (Santos & Nacke, 1988, 1991). Além dos efeitos diretos acarretados pelo alagamento de extensas áreas, como, por exemplo, o aumento da densidade de mosquitos (Bulcão, 1994; Couto, 1996; Figueiredo & Ricci, 1989; Tadei, 1994) e a circulação do plasmódio em animais (Arruda, 1985), a utilização de potentes desfolhantes como o Tordon 101 BR (picloran 2,4 D) e Tordon 155 (picloran 2,4,5 T) para a limpeza das áreas de servidão das linhas de transmissão (800km de extensão e 100m de largura) entre Tucuruí e Barcarena com fins de controlar o crescimento da vegetação, resultou na morte de animais, contaminação dos cursos de água e episódios de intoxicação exógena aguda (Couto, 1996). Em uma das comunidades indígenas afetadas na área de construção de Tucuruí, a dos Gaviões, observou-se na década seguinte a ocorrência inusitada de dois casos de câncer (uma leucemia e um sarcoma de partes moles) em adultos jovens da Área Indígena Mãe-Maria, vivendo nas proximidades de linhas de transmissão de alta tensão elétrica (Koifman et al., 1998; Vieira Filho, 1994). A observação destes casos de câncer adquire relevância, considerando-se o persistente debate na comunidade científica acerca da possível natureza causal da associação entre a exposição aos campos eletromagnéticos de baixa freqüência, como aquela observada nas proximidades de linhas de transmissão elétrica, e o desenvolvimento de tumores malignos, sobretudo leucemia e tumor de cérebro (Preece et al., 2000).
Sendo a região amazônica depositária das maiores reservas hídricas disponíveis com potencial hidrelétrico no país, a proposta de sua plena utilização deu lugar à elaboração do Plano 2.015 (Figura 1), que prevê a implantação de 121 usinas hidrelétricas naquela região, das quais 85 já estão em fase de estudos (Couto, 1996). Sucede que as áreas habitadas por diversas comunidades indígenas superpõem-se àquelas em processo de implantação de barragens, ou que serão direta ou indiretamente afetadas pela expansão desenhada para o setor elétrico. Assim, antecipa-se a ocorrência de amplo impacto sócio-econômico e epidemiológico sobre os povos indígenas da Amazônia.
Desta maneira, em futuro imediato, estaremos confrontando, por um lado, os benefícios trazidos pela ampliação de recursos energéticos para o país, a industrialização da região norte, o crescimento da oferta de emprego e os benefícios sociais acarretados por este processo; por outro lado, a experiência recente das últimas décadas tem revelado a séria ameaça acarretada sobre a perda da biodiversidade, bem como sobre as condições de vida, saúde, cultura e sobrevivência daquelas populações diretamente afetadas, sobretudo das comunidades indígenas. A reflexão a respeito das conseqüências deste processo e o diálogo com a sociedade civil - incluindo todos os grupos diretamente afetados - deveriam representar novo marco na modificação do processo de geração e transmissão da eletricidade no país, garantindo assim a ampliação do debate acerca de sua implantação e limitação dos danos acarretados à sociedade, como um todo, e às nações indígenas, em particular.
Referências
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