Edinilsa Ramos de Souza

Debate sobre o artigo de Mary Jane P. Spink

Debate on the paper by Mary Jane P. Spink

Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. edinilsa@claves.fiocruz.br

 

Quando viver é o grande risco-aventura

 

 

Antes de tecer qualquer consideração, quero dizer do meu contentamento em debater o presente artigo, que traz importante contribuição à reflexão filosófico-científica no tema abordado.

O artigo é profícuo e dá margem a uma série de questões, mas gostaria de me ater, inicialmente, a uma delas. Mais precisamente, quero questionar sobre um ponto que me chamou a atenção no título, que foi o uso da partícula na modernidade tardia, dando a entender que haveria outras metáforas possíveis no período referido, ao invés da conotação de que o risco-aventura seria, por excelência, a metáfora da modernidade tardia, o que parece ser a tônica do artigo. Gostaria, portanto, que a autora explicitasse suas idéias em relação à essa questão.

Esperei ao longo de toda a leitura, que a abordagem do risco no campo da saúde pública fosse aprofundada. Sendo essa minha área de atuação e a da revista na qual o artigo está sendo publicado, confesso que me senti um pouco frustrada no desejo de ver o conceito em questão mais discutido nessa área do conhecimento.

A partir da leitura, fiquei tentada a fazer um exercício reflexivo, aplicando algumas das teses defendidas no artigo, ao tema específico da violência em um grupo particularmente vitimizado por esses eventos - os jovens.

Nas sociedades contemporâneas os jovens têm sido as principais vítimas da violência, apresentando elevadas taxas de morbimortalidade devido às suas mais diversas formas - homicídios, suicídios, agressões não fatais, maus tratos, negligência, dentre outras. Essa vitimização de jovens, tem se apresentado de modo globalizado, tal qual alguns dos fenômenos discutidos no artigo, mesmo que em sua dinâmica atuem fatores regionais ou locais específicos, como lembra Michel Wieviorka (1997) em seu texto O Novo Paradigma da Violência, no qual o autor busca explicá-la no mundo moderno. O caso do narcotráfico exemplifica bem as idéias desse autor. Dentre os fenômenos infra-políticos identificados por ele, o narcotráfico constitui uma atividade ilegal e criminosa global, mas que tem particularidades no seu processo de produção, distribuição e comercialização inter e intra países. E esse fenômeno tem envolvido principalmente uma parcela da população jovem.

No caso da violência contra os jovens, os estudos têm consolidado resultados que indicam que as principais vítimas são os mais pobres, com baixa ou nenhuma escolaridade e qualificação profissional, provenientes de famílias constituídas por mulheres chefes de família, com baixa renda e residentes nas periferias das grandes áreas urbanas. É também nesses mesmos espaços sociais de onde costumam ser recrutados para o exercício de atividades ilegais e criminosas, engrossando as crescentes estatísticas de infrações por eles promovidas e tornando frágil e volátil a linha divisória entre a legalidade e a ilegalidade.

Trata-se, portanto, de um grupo que para conseguir usufruir, minimamente, dos benefícios das sociedades de consumo precisa assumir riscos. E esses riscos são assumidos por ele, seja pela mera aventura da busca de sentido e prazer na vida, seja porque é a única forma possível de sobreviver e ter algum direito, sobretudo ao reconhecimento, ao respeito no interior de seu grupo e ao consumo, mesmo que conseguido de modo ilegal e violento. Nesse caso, percebe-se que o risco assume o significado de atributo individual, comumente adotado pela epidemiologia (enquanto probabilidade de sujeitos sofrerem danos ou agravos à sua saúde devido ao comportamento de se expor a determinado fator). Por outro lado, também não se pode negar a existência de fatores que transcendem à vontade desses sujeitos e que transformam o risco em algo para além dos comportamentos e desejos individuais. Esse risco é então abordado como uma vulnerabilidade própria de certos grupos ou espaços sociais específicos, como querem os cientistas sociais e os estudos epidemiológicos de âmbito ecológico. Trata-se de um risco que significa uma exposição a determinado(s) fator(es), independente da vontade de se expor individualmente a ele(s). Em outras palavras, encontram-se sob risco devido a circunstâncias particulares de vida - como pertencer a determinado grupo social ou residir em determinada comunidade - mesmo que não tenham a intenção, sequer inconsciente, de se expor. Como afirma J. L. Vethencourt (1990) em trabalho intitulado Psicología de la Violencia, muitos desses jovens, certamente, jamais "optariam" (grifo meu) por se arriscar em situações violentas se tivessem outras possibilidades e condições de vida.

Transpondo o pensamento da autora para esta reflexão, tendo a concordar que a violência que hoje vitimiza os jovens, é também expressão da destradicionalização de instituições como a escola, a família e a religião. Tratar-se-ia de um processo inverso àquele identificado por Chesnais (1981) em seu livro Histoire de la Violence, no qual a constituição de instituições como a escola e a polícia, em determinada época histórica, foi paulatinamente garantindo os direitos de cidadania e o controle da criminalidade em países da Europa. A meu ver, a destradicionalização de certas instituições, sobretudo em sociedades capitalistas tardias, como é o caso do Brasil, está se dando sem que direitos básicos tenham sido sequer conquistados. Em outras palavras, já se destradicionaliza o que sequer chegou a se consolidar plenamente nas democracias mais recentes.

Hoje, pensar a situação do jovem nas sociedades contemporâneas, significa buscar compreender as situações de exposição a riscos e/ou vulnerabilidade, como queiram os especialistas de diferentes áreas do conhecimento, e se indignar com o fato de que cerca de sete em cada dez jovens estão morrendo por uma causa violenta, como acontece nas grandes metrópoles brasileiras.

É preciso admitir que existe uma parcela de jovens que não "escolhe" o risco-aventura dos esportes radicais. Para eles, viver é o grande risco-aventura. Em meio às mais inóspitas condições, esse risco-aventura é cotidiano e até por isso mesmo banalizado, seja no uso da arma de fogo real como brinquedo, seja na quase indiferença diante da morte freqüente de amigos e parentes.

Portanto, é para este grupo que se precisa aprofundar o conhecimento, visando a políticas alternativas e integradoras, sobretudo de inserção de camadas cada vez mais significativas de jovens. O artigo em debate, certamente, tem uma contribuição a dar nessa reflexão.

 

 

CHESNAIS, J. C., 1981. Histoire de la Violence. Paris: Robert Laffont.

VETHENCOURT, J. L., 1990. Psicología de la violencia. Gaceta de la Asociación de Profesores de la Universidad de Venezuela, 62:5-10.

WIEVIORKA, M., 1997. O novo paradigma da violência. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 9:5-41.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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