ARTIGO ARTICLE

 

Gloria Valeria da Veiga 1
Luciene Burlandy 2

Indicadores sócio-econômicos, demográficos e estado nutricional de crianças e adolescentes residentes em um assentamento rural do Rio de Janeiro

 

Socioeconomic and demographic indicators and nutritional status of children in a rural land settlement in Rio de Janeiro

 

1 Instituto de Nutrição, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Brigadeiro Trompowsky s/n, Centro de Ciências da Saúde, Bloco J, 2o andar, Cidade Universitária, Rio de Janeiro, RJ 21941-590, Brasil. gvveiga@gbl.com.br
2 Faculdade de Nutrição, Universidade Federal Fluminense. Rua São Paulo 30, 4o andar, Valonguinho, Niterói, RJ 24015-110, Brasil.
burlandy@uol.com.br
 

Abstract This study evaluated socioeconomic indicators and nutritional status in 201 children and adolescents in a rural land settlement in São José da Boa Morte, Rio de Janeiro. Nutritional deficit was defined as a value below -2 z score for the reference median from the National Center for Health Statistics (NCHS) for weight-for-age (W/A) and stature-for-age (S/A) for children under five years of age and weight-for-stature (W/S) and S/A for children from 5.0 to 9.9 years. For adolescents, the study used cut-off points at the 5th percentile (thin) and 85th percentile (overweight) from the distribution of body mass index (BMI) in the Brazilian population. According to the study, 53.8% of the households had 4 to 6 members, 34.5% had rudimentary cesspools, 31.2% had no running water, 11.0% had no bathroom, 58.2% burned or buried their garbage, and 13.6% of the mothers were illiterate. No case of nutritional deficit was found in the 0-4.9 year age bracket, and in the 5-9.9 year bracket there were one underweight and three overweight children. The authors concluded that the low prevalence of nutritional deficits in the study group, despite the exposure to risk factors, may be related to the presence of protective factors like access to health services, and that there was an important rate of overweight among adolescents (13.3%).
Key words Rural Settlements; Nutrition Assessment; Child Health

 

Resumo Avaliou-se indicadores sócio-econômicos e perfil nutricional de 201 crianças e adolescentes do assentamento rural de São José da Boa Morte, Rio de Janeiro. Considerou-se déficit nutricional valores abaixo de -2 escore z da mediana da referência National Center for Health Statistics (NCHS) para os índices peso para idade (P/I) e estatura para idade (E/I) para os menores de 5 anos e peso para estatura (P/E) e E/I entre 5,0 a 9,9 anos. Para os adolescentes utilizou-se os cortes inferiores ao percentil 5 (magreza) e superiores ao percentil 85 (sobrepeso) da distribuição de índice de massa corporal (IMC) da população brasileira. Encontrou-se: 53,8% dos domicílios com 4 a 6 moradores, 34,5% com fossa rudimentar, 31,2% sem água canalizada, 11,0% sem banheiro, 58,2% queimavam ou enterravam o lixo e 13,6% das mães eram analfabetas. A faixa de 0 a 4,9 anos não apresentou nenhum tipo de déficit nutricional e entre 5 a 9,9 anos apenas um apresentou baixo peso e três sobrepeso. Concluiu-se que a baixa prevalência de déficits nutricionais no grupo estudado, apesar da exposição a fatores de risco, pode relacionar-se com a presença de fatores de proteção como o acesso a serviços de saúde e que o sobrepeso em adolescentes (13,3%) foi relevante.
Palavras-chave Assentamentos Rurais; Avaliação Nutricional; Saúde Infantil

 

 

Introdução

 

O estado nutricional de crianças é considerado um instrumento importante na aferição das condições de saúde e de vida de uma população. A análise de três estudos sobre a situação nutricional da população brasileira, realizados em 1974-1975, 1989 e 1996, indica que crianças pertencentes ao estrato rural apresentam situação nutricional mais desfavorável do que as de estrato urbano, em decorrência de piores condições de vida. Apesar da queda importante na prevalência da desnutrição infantil observada entre os três estudos (Monteiro, 1995, 1997a, 1997b), esta redução se deu de forma diferenciada no território nacional, intensificando-se as desigualdades entre as regiões brasileiras (Sul e Sudeste versus Norte e Nordeste), entre níveis sócio-econômicos (pobres e ricos) e entre estratos urbano e rural. Em 1989, o contraste urbano-rural era de bem menor magnitude do que o regional. Em 1996, observou-se uma melhoria do diferencial regional e agravamento do urbano-rural.

Muito pouco se conhece quanto às áreas de assentamento rural, definido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA, 1996), como uma unidade empresarial associativa, de base familiar, autônoma e gerida pelos trabalhadores, que visa o desenvolvimento econômico e social do conjunto de assentados. Supostamente eles apresentariam características especiais que os diferenciariam de outros grupos sociais.

Os grupos populacionais residentes em áreas de acampamentos, ocupações e assentamentos vêm crescendo, especialmente na última década (Mafioletti, 1997). Em 1996, havia 1.123 assentamentos no país, com 139.223 famílias em 7.253.594 hectares (Comissão Pastoral da Terra, 1996). Onde os assentamentos se implantaram, geraram rendas maiores para seus beneficiários do que aquelas geradas em atividades equivalentes, em outras formas de exploração da mesma área (Guanziroli, 1994; Mafioletti, 1997). As famílias assentadas parecem estar, no mínimo, conseguindo a sobrevivência física em níveis mais elevados do que os marginalizados urbanos (Paulilo, 1994). Todavia, esta situação não é uniforme para todos os assentamentos no país, já que se observa uma grande variabilidade nas condições sócio-econômicas entre eles e entre as famílias residentes em um mesmo assentamento, dependendo da região onde se localiza (Guanziroli, 1994).

O assentamento de São José da Boa Morte fica localizado no Município de Cachoeiras de Macacu, no Estado do Rio de Janeiro. Sua especificidade refere-se ao fato de que a desapropriação da área, feita pelo governo federal em 1964, foi revertida e somente em 1981, por pressão dos trabalhadores, a área foi novamente desapropriada. Atualmente, o assentamento é subdivido em oito glebas, com, aproximadamente, 359 famílias assentadas, constituindo o maior do Estado do Rio de Janeiro (Sartorato, 1996).

O longo processo da luta pela terra, a singular relação destes pequenos produtores com o Estado, o ineditismo da experiência, a origem destes homens que passaram do campo para a cidade, retornando ao campo com relações com a terra diferentes das de seus antepassados, faz com que esta população apresente características muito especiais que a diferencia dos demais grupos sociais, até mesmo de pequenos agricultores vizinhos, o que motiva os pesquisadores a estudar os assentamentos por diferentes ângulos (Palmeira, 1994).

Dada a escassez de dados sobre as condições de vida e saúde dos assentados, particularmente na região do Rio de Janeiro, realizou-se o presente estudo que teve por objetivo descrever algumas características sócio-econômicas, demográficas e de saúde das famílias e avaliar o estado nutricional das crianças e adolescentes filhos de agricultores residentes na área de assentamento rural de São José da Boa Morte, Rio de Janeiro.

 

 

Metodologia

 

A inserção do projeto numa pesquisa multidisciplinar

 

Este estudo é do tipo descritivo, transversal e foi parte de um projeto de pesquisa intitulado Saúde e Uso do Solo: Um Estudo Muldisciplinar no Assentamento Rural de São José da Boa Morte - Cachoeiras de Macacu - Rio de Janeiro, que analisa as relações entre saúde e meio ambiente, envolvendo profissionais das áreas de medicina, nutrição, geociências, ciências sociais e biológicas, que compõem o Núcleo de Estudos de Saúde e Uso da Terra da Universidade Federal Fluminense. Na primeira etapa do projeto foi realizado um levantamento da situação sócio-econômica, condições de vida e saúde, dados de produção, consumo e comercialização agropecuária das famílias através de entrevistas realizadas com moradores de 50% das 359 unidades domiciliares do assentamento, totalizando 180 unidades amostrais (lotes). A seleção de unidades foi feita a partir da geração de números aleatórios destinando-se a um adicional de 10% para substituições, perfazendo um total de 200 unidades selecionadas. Com base neste levantamento, foi construído um cadastro básico dos residentes de cada lote do qual foi gerada a casuística trabalhada neste estudo.

 

Casuística

 

Foi composta de 273 crianças, consistindo o total delas na faixa etária de 0 a 17,9 anos, residentes nas unidades domiciliares que fizeram parte do projeto inicial, para as quais foram analisadas características sócio-econômicas, demográficas e de saúde de suas famílias. A avaliação nutricional foi feita em 201 crianças, visto que cinqüenta não foram encontradas por ocasião do retorno ao assentamento para avaliação nutricional, após três tentativas de localização, dois não quiseram participar do estudo, 18 adolescentes já haviam ultrapassado o limite de idade pré definido, uma adolescente estava grávida e um era deficiente físico, totalizando perda de 26,4%.

 

Caracterização sócio-econômica, demográfica e de saúde das famílias

 

A partir dos dados coletados na primeira etapa do projeto, realizada no período de 7 a 11 de outubro de 1996, foram obtidas informações para cada unidade domiciliar, referentes a: percentual de mulheres chefes de família; nível de escolaridade das mães (segundo anos de estudo); utilização de serviços de saúde; número de moradores e condições de saneamento do domicílio (tipo de escoadouro do esgoto, presença ou não de canalização da água, tratamento dado à água, existência ou não de sanitário e destino dado ao lixo). Para as crianças menores de cinco anos foram também analisados, a partir de entrevistas com as mães: peso ao nascer, tempo de aleitamento materno, condições de vacinação e freqüência de doenças infecto-parasitárias, dada sua comprovada relação com o estado nutricional de crianças (Monteiro & Iunes, 1993; Souza, 1992; Victora et al., 1988). Na análise das freqüências destas variáveis, quando era permitida mais de uma resposta, os percentuais foram calculados sobre o total de respostas e não sobre o número de crianças, sendo incluída, em cada análise, a categoria "sem resposta".

 

Avaliação nutricional

 

Dados sobre o estado nutricional foram coletados entre outubro de 1997 a dezembro de 1998, pelos pesquisadores autores e dois bolsistas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), após processamento e análise do banco de dados original que permitiu localizar as famílias que tinham crianças na faixa etária do estudo. As dificuldades de locomoção dentro do assentamento e de acesso e localização dos domicílios, bem como a falta de infra-estrutura para permanência em campo, fizeram com que os pesquisadores visitassem o Assentamento localizado a uma distância de, aproximadamente, 80km da cidade de Niterói onde residiam (indo e voltando no mesmo dia), por vários dias e meses, visto que a cada visita só era possível avaliar cerca de 5 a 8 crianças, o que explica o longo período de coleta de dados.

A avaliação nutricional foi feita com base nas medidas antropométricas de peso e estatura, conforme metodologia de Lohman et al. (1988), complementadas com avaliação de composição corporal e maturação sexual para os adolescentes, que serão apresentados em publicação posterior. Utilizou-se balança de plataforma eletrônica, com variação de 200g, para as crianças maiores de dois anos e balança eletrônica pediátrica, com variação de 10g para as menores de dois anos. A estatura (maiores de dois anos) foi obtida com uma fita métrica fixada em régua de madeira, em parede sem rodapé e o auxílio de um esquadro de madeira, estando a criança em posição ortostática (em pé, com os calcanhares unidos e em apnéia respiratória). O comprimento (menores de dois anos) foi obtido com um antropômetro de madeira (infantômetro), estando as crianças deitadas. Os dois instrumentos apresentaram variação de 0,1cm e as medidas foram tomadas duas vezes, tirando-se a média das duas medidas.

Todas as crianças foram avaliadas quanto ao índice estatura para idade (E/I). Peso para idade (P/I) foi usado só para as de 0 a 4,9 anos e peso para estatura (P/E), só para as de 5 a 9,9 anos. Apesar da WHO (1995) não recomendar distinção de uso de índices antropométricos por faixa etária e sim em função dos objetivos da avaliação nutricional, neste estudo optou-se pelo uso de índices diferenciados, seguindo a metodologia mais usada pelos especialistas na área, que geralmente usam P/I, particularmente para avaliar déficit ponderal em menores de cinco anos (Monteiro, 1995, 1997b), e P/E para avaliar tanto déficit quanto sobrepeso em maiores de cinco anos (Anjos, 1989; SMS-RJ/ SME-RJ, 2000), permitindo uma análise comparativa dos resultados obtidos com os de outros estudos. Adotou-se o ponto de corte de < -2 desvios-padrão (z escore) da mediana do referencial National Center for Health Statistic - NCHS (OMS, 1983) para designar déficits pôndero-estaturais e > 2 desvios-padrão para designar sobrepeso. Para os adolescentes (igual ou acima de 10 anos, segundo OMS, 1977) além de E/I utilizou-se o índice de massa corporal (IMC = Peso em kg/Estatura2 em m) sendo considerados com baixo peso e com sobrepeso os que apresentaram valores de IMC inferiores ao percentil 5 e superiores ao percentil 85, respectivamente (WHO, 1995), em relação à curva de percentis de uma amostra probabilística de crianças e adolescentes brasileiros, distribuída por gênero e faixa etária, com base em dados da Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição - PNSN, realizada em 1989 (Anjos et al., 1998). A escolha de uma curva de percentis de IMC nacional se deu pela própria recomendação da WHO (1995) de que a referência americana para valores de IMC deve ser usada com cautela em virtude da elevada prevalência de obesidade naquela população. A análise dos dados foi feita pelo programa Epi Info, versão 6.0 (Dean et al. 1994), sendo apresentadas as freqüências de estado nutricional por faixa etária.

 

 

Resultados

 

Foram encontradas 273 crianças na faixa etária de estudo, 51,3% do gênero feminino e 48,7% do masculino, estando 19,0%, 26,4% e 54,6% nas faixas etárias de 0 a 4,9, 5 a 9,9 e 10 a 17,9 anos, respectivamente. Verificou-se que: 53,8% dos domicílios tinham 4 a 6 moradores e 28,2% 7 a 9. Apenas 2,9% das famílias eram chefiadas por mulheres; 13,6% das mães eram analfabetas, 6,2% sabiam apenas escrever o nome e 42,1% tinham de 1 a 3 anos de estudo (Tabela 1).

 

 

Quanto às condições de saneamento dos domicílios, verificou-se que 34,5% escoavam esgoto através de fossa rudimentar, 31,2% e 11,0% não tinham água canalizada e banheiro, respectivamente; em 58,2% o lixo era queimado ou enterrado no lote, em 19,7% era jogado em terreno baldio e em 39,6% a água ingerida não era filtrada (Tabela 2).

 

 

Quanto ao acesso dos moradores aos serviços públicos de saúde, 26,6% referiram ausência de casos de doença nos últimos três meses e 47,8% referiram algum tipo de atendimento médico, seja em posto de saúde ou em hospital, e apenas 8,3% utilizaram algum tipo de recurso caseiro (Tabela 3).

 

 

Entre as crianças avaliadas quanto ao estado nutricional: 54,2% eram do gênero feminino e 45,8 % do masculino, estando 32 (15,9%), 64 (31,9%) e 105 (52,2 %) nas faixas etárias de 0 a 4,9, 5 a 9,9 e 10 a 17,9 anos, respectivamente, no momento da avaliação antropométrica (Tabela 4). Oito crianças (4,0%) apresentaram déficit estatural, sendo que sete eram adolescentes, correspondendo a 6,7% do total de adolescentes. A prevalência de sobrepeso (7,9%) foi maior do que de baixo peso (2,9%) para o total de crianças avaliadas, sendo que, entre as menores de cinco anos, nenhuma destas alterações foi encontrada. A maior proporção de sobrepeso foi encontrada nos adolescentes (13,3%), sendo maior nas meninas (14,5%) do que nos meninos (11,6%).

 

 

A análise dos indicadores de saúde, específicos para as crianças menores de cinco anos, mostra que 78,3% nasceram com peso adequado (superior a 2.500g); 82,6% receberam a vacinação tríplice, 95,6% a BCG e 95,6% a Sabin. Quanto à morbidade nos últimos três meses, 87,0% das mães referiram a ocorrência de gripe nas crianças, 52,2% de febre, 39,1% de diarréia e 13,0% de doenças do pulmão. Nestas situações de doenças, 69,5% das mães relataram a procura de serviços de saúde e 39,1% utilizaram algum tipo de cuidado caseiro.

 

 

Discussão

 

Uma análise preliminar das condições sócio-econômicas, demográficas e de saúde dessas famílias configura um contexto de vulnerabilidade social, visto que um contingente expressivo vive em domicílios com 7 a 9 moradores e têm mães analfabetas ou com baixo nível de escolaridade. Esse quadro constitui, num primeiro plano analítico, um alerta em termos de risco nutricional, considerando que outros estudos já associaram um risco maior à desnutrição a crianças cujas mães têm baixa escolaridade ou que residem em domicílios com alta concentração de moradores (Ward & Almeida, 1977 apud Souza, 1992). A precariedade das condições de saneamento, por sua vez, potencializa os riscos de doenças infecto-parasitárias.

No entanto, a avaliação nutricional das crianças residentes no assentamento não confirma essa suposição. As prevalências de déficits pôndero-estaturais como indicadores de desnutrição foram baixas e inferiores aos encontrados por Ferreira et al. (1997), em estudo com crianças de 1 a 10 anos residentes em invasão do "Movimento Sem-Terra" em Alagoas, na Fazenda Conceição, onde as prevalências foram de 19,6%, 39,8% e 2% com base nos índices P/I, E/I e P/E, respectivamente. A baixa prevalência de déficits nutricionais no presente estudo é também contrastante com os resultados de estudos nacionais onde os déficits de estatura, em crianças menores de cinco anos pertencentes ao estrato rural, foram de 22,7% (1989) e 19% (1996) (Monteiro, 1997a).

Comparando os valores do presente estudo com o perfil nutricional de crianças de 7 a 10 anos, avaliadas pela Pesquisa sobre Padrões de Vida (PPV) realizada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nas regiões Sudeste e Nordeste entre março de 1996 e março de 1997, destaca-se ainda mais a peculiaridade da situação encontrada em São José da Boa Morte. Do total de crianças avaliadas pela PPV, 13,2% apresentavam desnutrição por déficit de estatura, com maior prevalência no Nordeste rural (22,0%) e menor no Sudeste rural (8,5%) (Burlandy & Anjos, 1999). Como então explicar o perfil tão distinto e favorável das crianças residentes no assentamento de São José da Boa Morte?

Cabe, inicialmente, destacar que os menores percentuais de déficit estatural, conforme indica a PPV, foram encontrados no Sudeste rural o que diferencia, em algum aspecto, esta região. Por outro lado, as informações sobre acesso dos moradores do assentamento de São José da Boa Morte aos serviços públicos de saúde sugerem que, possivelmente, a assistência à saúde contribua para contrabalançar esse processo já que, quase a metade das famílias com crianças e adolescentes referiram algum tipo de atendimento médico, em posto de saúde ou hospital em caso de doença nos últimos três meses. Especificamente para as crianças menores de cinco anos este contingente foi de, aproximadamente, 2/3. Os dados de vacinação também indicam um acesso positivo aos serviços, considerando que a grande maioria das crianças já havia recebido a vacinação tríplice, BCG e Sabin. Apesar da precariedade de disponibilidade de profissionais no único posto de saúde do assentamento, segundo relato dos moradores, a proximidade com centros urbanos amplia as chances de acesso a serviços de saúde.

Ainda para as crianças de 0 a 5 anos, outros indicadores revelam condição favorável: o elevado percentual de peso adequado ao nascer (78,3%), de aleitamento materno exclusivo até os três primeiros meses (69,5%) e de desmame posterior ao primeiro ano de idade (43%). Os dados do estudo nacional realizado em 1996, indicaram que aproximadamente, 60% das crianças menores de dois meses se alimentavam exclusivamente de leite materno (MS, 1996).

Em outro plano deve-se considerar que, apesar do quadro precário de acesso a serviços de saneamento geral, a comparação das condições deste assentamento com os demais situados no Estado do Rio de Janeiro indica um cenário favorável, provavelmente pelo fato de ser um dos mais antigos do estado. Essa situação positiva se intensifica se considerarmos que as condições gerais dos assentamentos do Estado do Rio de Janeiro são mais favoráveis que a média nacional pelo significativo grau de urbanização e, principalmente, por sua localização geográfica próxima a centros urbanos. O censo dos assentamentos rurais, realizado pelo INCRA entre novembro de 1996 e fevereiro de 1997, indica que os assentamentos deste estado apresentam, em média, 76,0% das casas em alvenaria, 57,8% de água canalizada, 64,5% de domicílios com fossa, 72,9% com cisternas e 57,8% com banheiros (Medeiros, 1999).

A proximidade com centros urbanos pode favorecer o acesso a bens e serviços como, por exemplo, luz elétrica (que no caso do assentamento estudado inexiste apenas em uma gleba), escolas (três situadas no interior do assentamento) e postos de saúde, como já referido. Alia-se a isso o longo processo de consolidação destas famílias no local.

Desta forma, se por um lado os indicadores sócio-econômicos apontam para uma situação desfavorável, os indicadores de saúde e de acesso a serviços de assistência à saúde caminham na contramão desta tendência, podendo repercutir positivamente no perfil nutricional das crianças avaliadas. Sem dúvida a localização do assentamento favorece a utilização desses serviços, criando uma certa peculiaridade em relação a outras áreas.

Alguns problemas metodológicos do estudo poderiam também ser apontados como possibilidades para explicar a suposta incoerência entre os resultados obtidos, referentes aos indicadores sócio-econômicos e a baixa prevalência de déficits nutricionais encontrada. Tais problemas se referem à defasagem temporal entre o período de coleta de dados sócio-econômicos e a avaliação antropométrica, o longo período para esta avaliação e as perdas em decorrência da não localização das crianças no momento da avaliação. Quanto à defasagem temporal é provável que não tenha comprometido a análise, uma vez que o estudo não se propõe a estabelecer relações causais entre os diferentes fatores, mas sugere possíveis explicações para o perfil nutricional encontrado, a partir de diferentes informações disponíveis sobre a população estudada, particularmente sócio-econômicas e demográficas, que são inéditas. Por outro lado, a oferta de serviços públicos como saneamento, água potável, coleta de lixo e atenção à saúde, não sofreu qualquer alteração durante os dois anos em que os pesquisadores acompanharam, semanalmente, as condições gerais de vida no assentamento. Quanto ao número significativo de crianças que não foram encontradas por ocasião da coleta de informações antropométricas, isto pode ser explicado pela expressiva mobilidade espacial das famílias residentes no assentamento. Este fato se acentua no período da adolescência devido à busca de novas oportunidades de estudo ou trabalho fora do assentamento, o que explica que entre as 72 pessoas não avaliadas antropometricamente, a maior parte (69,0%) eram adolescentes. É importante analisar se existiram diferenças entre os avaliados e os não avaliados, quanto aos fatores de risco para o estado nutricional, que pudessem interferir nas prevalências encontradas. Comparando as características dos dois grupos (avaliados e não avaliados antropometricamente) com base nos dados coletados na primeira etapa do estudo, não foram verificadas discrepâncias quanto ao número de moradores no domicílio (53,2% e 55,5% com 4 a 6 moradores), quanto a famílias chefiadas por mulheres (2,5 e 4,2%), quanto ao número de mães analfabetas (13,9 e 12,5%), quanto aos domicílios que escoavam o esgoto em fossa rudimentar (32,8 e 39,2%) ou vala (10,0 e 9,5%), que não tinham água canalizada (31,3 e 30,5%) ou banheiro (10,9 e 11,1%), quanto à proporção que queimava ou enterrava o lixo e/ou jogava em terreno baldio (78,3 e 76,4%) e quanto ao acesso a atendimentos médicos em caso de doença (49,1 e 42,4%). Em relação à distribuição por sexo verificou-se, entre os que não foram avaliados, uma maior proporção de meninos (45,8 e 56,9%) e maior média de idade (9,2 ± 4,4 e 11,8 ± 5,3). Um possível viés decorrente da redução da amostra inicial, seria a redução do grupo populacional com idade inferior a dois anos, visto que muitos já teriam ultrapassado esta idade no momento da avaliação antropométrica. Uma vez que trata-se de uma faixa de vulnerabilidade a desnutrição, é possível supor que a não identificação de déficit ponderais, ou episódios agudos de desnutrição, estivesse correlacionada a estas perdas. No entanto, este fato parece não modificar as conclusões mais gerais do estudo, particularmente no que se refere à ausência de déficits estaturais que pudesse refletir um comprometimento nutricional de longo prazo. Dessa forma, ainda que as crianças pudessem ter apresentado comprometimento ponderal ou episódios agudos de desnutrição na faixa de 0 a 2 anos, os possíveis fatores de risco não se perpetuaram a ponto de ocasionar um comprometimento estatural de longo prazo. Além disso, estudos de âmbito nacional vêm indicando declínio de desnutrição em crianças na faixa etária de 0 a 5 anos (Monteiro, 1997a) estando em consonância com os dados encontrados.

Os resultados deste estudo reforçam que o acesso à terra e os benefícios oriundos da reforma agrária, interferem de forma substancial na qualidade de vida das famílias e de suas crianças. Maffioletti (1997) ao estudar áreas de reforma agrária do estado do Paraná, verificou que a prevalência de desnutrição crônica em crianças menores de cinco anos, filhos de trabalhadores rurais residentes em acampamentos (sem acesso ao uso da terra para plantio) e em áreas de ocupação (ainda não assentados pelo INCRA), foi significativamente superior (17,9% e 20,8%, respectivamente) à observada em crianças residentes em assentamentos, sejam individuais (12,3%), sejam coletivos (7,2%), sendo estes valores bem inferiores aos encontrados em áreas rurais em estudos nacionais.

Por fim, destaca-se ainda neste estudo que a alteração nutricional de maior relevância foi o sobrepeso (7,9%), particularmente entre os adolescentes (13,3%), semelhante ao observado na PPV (9,6%) (Burlandy & Anjos, 1999). Isto vem de encontro às mudanças no perfil nutricional, observadas na população brasileira, que apontam para o aumento na prevalência de obesidade e outras doenças crônico degenerativas a ela associadas na vida adulta, sendo a adolescência uma fase crítica para esta transição (Monteiro, 1995). Diante das peculiaridades da avaliação nutricional de adolescentes, que exigem informações sobre composição corporal e dados de maturação sexual, esta análise será aprofundada em publicação posterior.

 

 

Referências

 

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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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