REVISÃO REVIEW
Ana Cristina Santos 1 | Sexualidades politizadas: ativismo nas áreas da AIDS e da orientação sexual em Portugal
Politicized sexualities: AIDS activism and sexual orientation in Portugal |
1 Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra. Apartado 3087, Coimbra 3001-401, Portugal. | Abstract This article analyzes how both the Portuguese state and civil society have addressed the AIDS issue, focusing on participation by the lesbian, gay, bisexual, and transsexual community (LGBT) in the struggle against AIDS. The article begins by describing the situation of LGBT individuals in Portugal during the 1990s, when the Portuguese LGBT movement emerged and grew, and then characterizes the evolution of HIV/AIDS in Portugal, analyzing the relationship between civil society and sexuality in general and the situation of the epidemic in the country in particular, considering key facts, nongovernmental organizations, and state initiatives. Special attention is given to the role played by LGBT organizations in the struggle against HIV. Finally, the article reflects on the future of the struggle against both AIDS and discrimination in the 21st century, considering recent events in the country and the guidelines recommended by international policies.
Resumo O presente artigo analisa a forma como o Estado português e a sociedade civil têm tratado a questão da AIDS, enfatizando o envolvimento da comunidade lésbica, gay, bissexual e transexual (LGBT) no combate ao vírus. Começamos pela descrição da situação dos membros dessa comunidade em Portugal ao longo da década de 90, período da emergência e consolidação do movimento LGBT português. Num segundo momento, caracterizamos a evolução do complexo HIV/AIDS no citado país, analisando a relação entre a sociedade civil e as questões relacionadas com a sexualidade em geral, por um lado, e a situação da epidemia, por outro, considerando fatos, iniciativas estatais e associações existentes. Num terceiro momento, consagramos especial atenção ao papel desempenhado pelas associações LGBT na luta contra o HIV/AIDS. Finalmente, refletimos acerca do futuro da luta contra a epidemia e a discriminação no século XXI, tendo em conta os desenvolvimentos verificados no País e as linhas orientadoras da política de combate à AIDS adotadas por organismos internacionais. |
Introdução
Historicamente, a sexualidade tem sido condicionada por padrões morais mais ou menos arbitrários, suportados quer por determinações de caráter religioso, quer por argumentos médicos. De fato, se a religião pode ser considerada um elemento incontornável na regulação da sexualidade humana - papel que, no caso português, atingiu o seu auge com a instituição dos Tribunais da Santa Inquisição, em 1536 (J. J. A. Dias, comunicação pessoal; L. Mott, comunicação pessoal) -, a medicina não esteve, de forma alguma, ausente desse mesmo processo de legitimação ou rejeição sexual, ainda que a sua influência seja mais recente do que a religiosa.
Na verdade, em especial com a emergência do vitorianismo britânico no século XIX, os destinos da sexualidade tomaram outro rumo, uma vez que, tal como assinalou Foucault (1994), a pesada repressão sexual acabou por colocar o sexo no centro de uma atenção pública e privada sem precedentes. Essa súbita efervescência da sexualidade traduziu-se por uma classificação médica detalhada de todos os desvios conhecidos, entre os quais se contavam a histeria, a ninfomania, a homossexualidade, a prostituição e a masturbação. Com o surgimento da Sexologia, as diversas orientações, as preferências e os desvios sexuais, que, entretanto, foram sendo conhecidos, eram atribuídos a tendências do foro íntimo que poderiam ser ajustadas se sujeitas a uma terapia médica adequada. Foi nessa altura, nomeadamente em 1869, que o termo homossexual foi cunhado pela médica húngara Karoly Maria Benkert.
No século XX, as investigações conduzidas por Alfred Kinsey na década de 30 - das quais resultou a publicação dos conhecidos Sexual Behaviour in the Human Male, em 1948, e Sexual Behaviour in the Human Female, em 1953 -; os estudos de Masters & Johnson - aos quais se reconhece a maior contribuição da Sexologia em prol da sexualidade da mulher (Hawkes, 1996) - e as teorias desenvolvidas por Freud - que, ao relacionar fatores psicológicos, psicossexuais e sociais, afastam pela primeira vez o monopólio explicativo que a natureza detivera até então, para aproximar o sexo do social - constituem marcos incontornáveis na relação entre medicina e sexualidade.
Com o desenvolvimento da ciência médica e da Sexologia, em particular, podemos afirmar que a ciência ocupou, de forma progressiva e segura, o lugar da religião no que se refere à determinação da normalidade e do desvio, com a correspondente substituição do velho "pecado" pela então emergente "patologia" (Segal, 1997). Nas palavras de Foucault, "talvez a intervenção da igreja na sexualidade conjugal e a sua recusa das 'fraudes' à procriação tenham perdido, de há duzentos anos para cá, muita da sua insistência. Mas a medicina, essa entrou em força nos prazeres do casal: inventou toda uma patologia orgânica, (...) classificou cuidadosamente todas as formas de prazeres anexos, (...) chamou a si a sua gestão" (Foucault, 1994:44-45).
Retomando a nossa afirmação inicial, tanto a religião quanto a medicina têm em comum um passado que visa conhecer para melhor controlar, fato particularmente visível em matéria de sexualidade. Se considerarmos o exemplo da extensa enunciação dos pecados nos Manuais dos Confessores e as classificações de doenças utilizadas ainda hoje, verificamos que, em ambos os casos, a homossexualidade tem sido objeto de constantes e empenhadas tentativas de controle, contenção e posterior normalização comportamental. Na verdade, ao contornar o modelo do sexo reprodutivo - e, como tal, socialmente legitimado -, os homossexuais foram, durante séculos, perseguidos e acusados de imoralidade, depravação e corrupção, estigma que prevalece até o presente, ainda que sob formas de discriminação porventura mais sutis. Assim se justifica que os primeiros casos notificados de contaminação com o Vírus de Imunodeficiência Humana (HIV) e de Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS), doença transmitida também por via sexual, tenham sido rapidamente associados aos homossexuais, desde sempre conotados com uma certa permissividade sexual.
É nessa encruzilhada histórica, entre a religião e a medicina, que se constroem os caminhos da sexualidade contemporânea, regulados pela ação (também por omissão) das políticas públicas. A esse respeito, o complexo HIV/ AIDS constitui um exemplo incontornável de articulação entre, por um lado, a avaliação moral da Igreja Católica sobre uma doença fortemente associada a comportamentos desviantes - e note-se, nesse caso, que a ação da Igreja Católica portuguesa em relação à homossexualidade tem uma longa tradição que, embora atenuada com o decorrer dos tempos, não deixa de marcar os ritmos das políticas públicas em matéria de sexualidade - e, por outro lado, a legitimação científica da medicina sobre uma epidemia de efeitos devastadores que pode, contudo, ser prevenida.
No presente artigo, analisaremos a forma como o Estado português e a sociedade civil têm tratado a questão da AIDS, enfatizando o papel desempenhado pela comunidade lésbica, gay, bissexual e transexual (LGBT) portuguesa no processo de combate ao vírus. Para esse efeito, começa-se pela descrição da situação dos membros dessa comunidade em Portugal ao longo da década de 90, enfatizando-se a emergência e consolidação do movimento LGBT português. Num segundo momento, caracteriza-se a evolução do complexo HIV/AIDS em Portugal, analisando-se a relação entre a sociedade civil e as questões relacionadas com a sexualidade em geral e inventariando-se a situação da epidemia no País, com base em estatísticas oficiais, associações existentes, iniciativas públicas e atitudes do Estado, a fim de conhecermos o passado da luta pela prevenção e tratamento. Num terceiro momento, consagra-se especial atenção ao papel desempenhado pelas associações LGBT na luta contra o HIV/ AIDS. Finalmente, reflete-se acerca da luta contra a epidemia e a discriminação no século XXI, tendo em conta os desenvolvimentos verificados no País e as linhas orientadoras da política de combate à AIDS adotadas por organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) ou a União Européia (UE).
Breve história do movimento LGBT português
Não é nossa intenção enredar o leitor naquilo que poderia bem ser uma história exaustiva da afirmação de um movimento não heterossexual em Portugal. No entanto, para refletir sobre a forma como as questões em torno do complexo HIV/AIDS têm sido abordadas em Portugal, torna-se necessário conhecer, desde o começo, o percurso do ativismo LGBT, precisamente por este constituir o movimento social mais envolvido na luta contra a AIDS. Sendo este o nosso propósito, importa sumariar os principais acontecimentos que marcaram a emergência desse movimento, sem, entretanto, detalhar etapas menos determinantes, embora igualmente interessantes para quem se interessa pelo estudo das sexualidades. Por isso, começamos esta incursão no período imediatamente posterior à transição democrática.
Após a revolução de abril de 1974, que marca o início da democracia em Portugal, o clima de abertura ideológica parecia permitir a aceitação daqueles que o regime ditatorial silenciara por quase meio século. Nesse período, emergiram algumas manifestações de mobilização LGBT no País. Em 1974, durante a primeira comemoração do Dia do Trabalhador, na cidade do Porto, aparece um cartaz onde se podia ler "Liberdade para os Homossexuais". A 13 de maio desse mesmo ano, o Diário de Lisboa publicava o Manifesto do Movimento de Ação Homossexual Revolucionária (MAHR), intitulado Liberdade para as Minorias Sexuais. Esse manifesto caracterizava-se por uma consciência política identificada com a esquerda revolucionária e apelava para a luta conjunta de todos os cidadãos contra a repressão sexual, exigindo simultaneamente a implementação de uma disciplina de Educação Sexual em todas as escolas e alterações jurídicas no sentido da descriminalização da prática homossexual que, com base numa lei de 1912, equivalia ao crime de vadiagem, sendo punível com pena de prisão (Bastos, 1997).
Seis anos depois, a 25 de outubro de 1980, nasceu o Coletivo de Homossexuais Revolucionários (CHOR). Nessa primeira reunião, à qual compareceram cerca de duzentas pessoas, foi decidido elaborar um jornal, construir um centro de convívio e ter iniciativas conjuntas com outros movimentos sociais, como o Movimento de Defesa dos Reclusos. Apesar da sua importância como primeiro motor de dinamização coletiva dos LGBT portugueses, o CHOR acabou por desaparecer dois anos depois. Durante a década de 80, registram-se ainda outros acontecimentos que afetaram diretamente o meio "lesbigay" português. Em 1982, teve lugar no Centro Nacional de Cultura, em Lisboa, o ciclo de debates "Ser (Homo)sexual", considerado como o primeiro grande debate público sobre o tema. Durante o 1o e o 2o Congresso Nacional de Sexologia, realizados respectivamente em Lisboa (1984) e em Coimbra (1987), o tema da homossexualidade constituiu um dos painéis de discussão. Exceção feita a esses eventos, a década de 80 acabou por ficar aquém das expectativas de muitos, em face do que tinha sido iniciado logo após 1974 e do que vinha sendo uma realidade em países como os Estados Unidos, a França ou o Reino Unido.
Os anos 90, contudo, recuperaram o ativismo aparentemente perdido, dado que a extinção dos movimentos anteriores foi contrabalançada pelo aparecimento de novos grupos e associações LGBT. Segue-se uma breve apresentação dos mesmos, bem como do trabalho efetuado na última década.
O ativismo LGBT português: 1990-2000
Se a década de 80 se pautou por uma série de pequenos acontecimentos dispersos, em especial debates, os anos 90 foram marcados pela emergência e pelas ações que as diferentes associações LGBT portuguesas levaram a cabo. No início da década, em 1991, nasceu a Organa - Publicação Lésbica de Portugal, que agregou um grupo de mulheres interessadas em debater questões relacionadas com a homossexualidade e em encurtar as distâncias entre a capital e o resto do país. Em 1993, a Organa deu lugar à Lilás, uma revista trienal de divulgação, informação e defesa dos direitos das lésbicas, que têm vindo progressivamente a assumir-se como um grupo com características associativistas, promovendo a realização de encontros, sessões de poesia, discussões literárias e cinematográficas e a reflexão conjunta, numa tentativa de combater o preconceito e o isolamento das mulheres lésbicas portuguesas.
O Grupo de Trabalho Homossexual (GTH) constituiu-se no seio do Partido Socialista Revolucionário, em 1991, com o objetivo de "consciencializar a sociedade portuguesa para a repressão e discriminação exercida pela moral sexual dominante" (GTH, 1991). Atualmente presidido por Sérgio Vitorino, o GTH tem organizado algumas ações de rua, em protesto contra atitudes de homofobia, tal como foi o caso das manifestações, em 1996, contra as definições de homossexualismo e lesbianismo fornecidas pelo Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora (1986) ou, mais recentemente, contra a inclusão da homossexualidade na Classificação Nacional de Deficiências publicada no Diário da República (Portugal, 1999a). Para além dessas atividades de denúncia, o GTH está diretamente envolvido na luta por alterações no nível da Constituição e do Código Civil e Penal português.
Em 1995, a delegação portuguesa da International Lesbian and Gay Association (ILGA-Portugal) iniciou as suas atividades, obtendo reconhecimento oficial em abril de 1996, quando João Soares, então Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, inaugurou a sede do novo Centro Comunitário Gay e Lésbico, num espaço igualmente concedido pelo Município. A ILGA-Portugal, presidida atualmente por José Manuel Fernandes, é a maior organização LGBT portuguesa, quer em número de sócios (estimados entre quinhentos e seiscentos), quer pelas iniciativas que tem desenvolvido. Desde 1997, é realizado anualmente o "Arraial do Orgulho Gay", em memória do 29 de junho de 1969, mundialmente reconhecido como o primeiro dia de celebração do orgulho LGBT. Paralelamente ao Arraial, desde 1997, a ILGA acolhe também a organização, todos os anos, do Festival de Cinema Gay e Lésbico. Ambas as iniciativas contam com o patrocínio da Câmara Municipal de Lisboa. Naquele mesmo ano, a associação deu início à Marcha em Memória e Solidariedade para com as Vítimas do HIV/AIDS, atividades que decorrem invariavelmente na cidade de Lisboa (ver adiante). A ILGA é responsável por diversos folhetos informativos que dão um especial relevo a questões relacionadas com a AIDS e com o enquadramento jurídico da homossexualidade em Portugal. O centro comunitário da ILGA conta ainda com um centro de documentação, um bar e um serviço semanal de atendimento psicológico e jurídico, adaptando o seu espaço sempre que necessário para acolher peças de teatro, exposições, festas e sessões de poesia.
A 28 de janeiro de 1996, nasceu o Clube Safo. Ainda sem sede física, o clube conta atualmente com uma centena de sócias e simpatizantes, responsáveis pela realização de debates, encontros e atividades desportivas e pela organização anual do único acampamento sáfico do país. Com uma periodicidade tendencialmente bimestral, o Safo edita, desde setembro de 1997, o boletim Zona Livre, um espaço de informação e divulgação de caráter lésbico, que tem vindo a crescer no seu potencial de combate à discriminação.
Em setembro de 1996, foi criada pelas mãos do seu editor e redator principal, Isidro Sousa, a revista trimestral Korpus. Constituindo a única publicação periódica gay portuguesa, a Korpus apresenta uma cobertura dos eventos LGBT nacionais, entrevistas com as principais figuras do movimento homossexual português, artigos de opinião e divulgação de atividades e diversas informações de conteúdo afim. A revista é vendida de norte a sul do País.
A Opus Gay surgiu em 1997, resultando da vontade expressa de António Serzedelo, seu atual presidente, em fazer trabalho na área dos direitos humanos dos homossexuais. Com sede física em Lisboa desde setembro de 1998, a Opus possui ainda delegações, mais ou menos informais, no Porto e em Coimbra. Dentre as atividades realizadas por essa associação, destaca-se a primeira comemoração do Dia do Orgulho Gay, realizada na cidade do Porto a 19 de junho de 1999, na discoteca Gente Gira. Entre outras atividades, em 2001 a Opus Gay preparou, em colaboração com a revista Korpus, a publicação da 1a Antologia de Literatura Homoerótica Portuguesa, reunindo textos em prosa ou poesia de autores portugueses. Essa organização disponibiliza vários serviços para a comunidade LGBT, entre os quais se destacam o dog & cat sitter, o serviço de limpezas domésticas, a imobiliária, o atendimento jurídico, médico e psicológico, as consultas de tarô e o clube de filatelia.
Em maio de 1998, as mulheres da ILGA-Portugal decidiram organizar o Grupo de Mulheres (GM), com um conjunto de reivindicações e um manifesto próprios. Responsável, desde janeiro de 1999, pelo boletim Lesbiana, o GM tem vindo a marcar posição no meio lésbico através de debates, almoços, passeios e outras atividades lúdicas. Em 1999, organizou um ciclo de filmes lésbicos, exibidos aos sábados na sede da ILGA-Portugal, que contaram com um público regular quase exclusivamente composto por mulheres. O GM tem tido uma participação regular na seleção e legendagem dos filmes para mulheres que são exibidos durante o Festival de Cinema Gay e Lésbico.
Finalmente, em 2000, duas outras associações LGBT foram criadas. Em maio, na cidade do Porto, nasceu o NÓS, com o intuito de ser um movimento universitário para a libertação sexual. Essa associação organizou a maior parte das atividades desenvolvidas no âmbito da 1a Semana de Orgulho LGBT naquela cidade (em 2001), nomeadamente debates, exibições de filmes, sessões de poesia e campanhas de informação. Em setembro, Simão Mateus fundou o Grupo Oeste Gay, com o principal objetivo de incluir na comunidade LGBT pessoas que vivem na parte Oeste do País, dinamizando debates e desenvolvendo espaços de convívio.
Desde o seu início, o momento de maior visibilidade pública na história do movimento LGBT português aconteceu em 2000. Foi este o ano em que José Manuel Fernandes foi eleito presidente da ILGA-Portugal, e com ele a estratégia do próprio movimento parece ter evoluído no sentido de uma organização mais visível e estruturada, um movimento conjunto de todas as associações homossexuais portuguesas, visando a uma real transformação política no processo de luta contra a discriminação com base na orientação sexual. Se não, vejamos. Em 2000, foi publicado em Portugal o Manual de Sexualidade Lésbica, uma obra que visa ao esclarecimento de uma área tradicionalmente remetida à ignorância ou à rejeição, traduzida e editada por Ana Pinheiro, responsável pela editora Zayas, também criada em 2000. Foi também nesse ano que, pela primeira vez em Portugal, realizou-se a Marcha de Orgulho Homossexual, pelas ruas de Lisboa, durante o dia, e com a adesão de cerca de quinhentas pessoas, a maior parte das quais desfilou sem utilizar máscaras. Tendo início no Jardim do Príncipe Real, uma região conotadamente homossexual, onde abundam os bares e as discotecas LGBT, a marcha percorreu artérias vitais da cidade, terminando na Praça do Município, espaço reservado para o Arraial, que se prolongou durante toda a noite. A marcha contou com a participação de outras organizações sociais e políticas, como o SOS-Racismo e o Bloco de Esquerda. Durante todo o percurso, foram visíveis muitas bandeiras do arco-íris, emblemas de triângulos pretos e rosa, laços vermelhos assinalando o envolvimento da luta contra a AIDS e cartazes com palavras de ordem profundamente politizados e adequados ao momento que se vivia no País. Nessa ocasião, reivindicou-se a legalização das uniões de fato homossexuais - o que veio a acontecer a 15 de março de 2001, com a aprovação pela Assembléia da República da Lei 7/2001 (Portugal, 2001), que atribui direitos e benefícios fiscais aos casais LGBT que vivam juntos há mais de dois anos -; o fim da discriminação legislativa; a equiparação dos direitos sexuais aos direitos humanos e o direito de se escolher livremente a quem se ama. Essa marcha teve uma cobertura sem precedentes pelos meios de comunicação social de Portugal. Por fim, o Arraial 2000 constitui o culminar dessa celebração de orgulho massiva: na primeira vez em que o Arraial foi organizado conjuntamente pelas principais associações LGBT, as barraquinhas das diversas associações, bares e discotecas ladearam por completo a Praça do Município, acolhendo a maior de todas as afluências de pessoas num evento do gênero.
Zygmunt Bauman (1999:19) foi quem afirmou que "toda a história do sexo é a história da manipulação cultural do sexo". Por isso, a exposição dos fatos mais marcantes na construção do movimento LGBT português fornece um enquadramento útil à compreensão do que será tratado nas próximas seções. Centrando o nosso olhar sobre a história mais recente do País, debruçar-nos-emos, pois, sobre o papel desempenhado quer pelo Estado português, quer pela sociedade civil - enfatizando particularmente as associações LGBT -, na construção de políticas e atitudes coletivas em face da AIDS no Portugal contemporâneo.
A AIDS em Portugal: atitudes, fatos, iniciativas
Uma reflexão sobre orientação sexual, AIDS e políticas públicas exige que (re)conheçamos o campo sobre o qual estamos a trabalhar. Esta seção pretende informar o leitor sobre alguns elementos relacionados mais diretamente com a evolução da epidemia da AIDS em Portugal. Para esse fim, propomo-nos dividir a análise em três partes: na primeira, procuramos caracterizar genericamente o comportamento sexual dos portugueses, com base em estudos acadêmicos realizados na última década; na segunda, efetuamos uma descrição numérica e cronológica da realidade da AIDS no País, com base em informações estatísticas; por fim, procedemos a uma reflexão qualitativa sobre as iniciativas no âmbito do combate e prevenção do HIV/AIDS, desenvolvidas tanto pelos organismos estatais, quanto pela sociedade civil. Para essa análise, recorremos à literatura interna das associações, aos depoimentos e entrevistas com os seus líderes e às informações obtidas através de um observatório da imprensa escrita portuguesa, realizado entre 1994 e 2001.
O sexo dos portugueses
A virada democrática de Portugal em 1974 traduziu-se por uma progressiva alteração de crenças e comportamentos dos cidadãos, cujo impacto se fez sentir também na esfera da sexualidade. Uma das tendências verificadas foi a crescente secularização do casamento: se, em 1970, a porcentagem de casamentos católicos em Portugal era de 86,6%, esse valor desceu para 74,7% no espaço de dez anos (Reis, 1984). Paralelamente, houve um crescimento acentuado do número de divórcios: desde o aumento imediatamente posterior ao Decreto-Lei 261/75 - que passou a permitir o divórcio a quem tivesse contraído matrimônio pela Igreja Católica -, a taxa de crescimento dos divórcios mantém-se elevada - entre 1995 e 1996, o número de divórcios aumentou 9% (Vicente, 1998).
Nos anos 90, para além de se confirmarem as tendências anteriores, assiste-se à introdução da sexualidade na esfera pública. Um dos momentos em que a sexualidade foi mais debatida publicamente foi em 1998, a propósito da lei sobre a despenalização do aborto, aprovada na Assembléia da República a 5 de fevereiro daquele ano. A lei acabou por ser posteriormente sujeita a referendo nacional a 28 de junho, suscitando uma grande movimentação social em torno das diferentes posições, que se alastrou às ruas e aos meios de comunicação social nacionais. O resultado do escrutínio acabou por frustrar a decisão parlamentar, por uma diferença de 1,82% entre os portugueses que votaram a favor da despenalização (49,09%) e os que a recusaram (50,91%).
O papel central que o sexo passou a desempenhar é evidenciado por diferentes estudos feitos sobre a sociedade portuguesa durante a década de 90. Uma sondagem realizada em 1995 a 268 residentes nas áreas urbanas de Lisboa e do Porto revelou uma percentagem de cerca de 71% para quem o sexo é muito ou mesmo muitíssimo importante (Ruela, 1995). Tal centralidade é também evidente no sucesso da Sexualidade em Linha, linha telefônica gratuita lançada em junho de 1998, numa parceria entre o Instituto Português da Juventude e a Associação para o Planejamento da Família, e que em menos de um ano de funcionamento já havia recebido cerca de 55 mil chamadas (Público, 1999).
Outro domínio estudado envolve as relações extramatrimoniais. Assim, segundo um inquérito realizado entre estudantes de escolas secundárias, grande parte dos inquiridos refere que o casamento não é uma prioridade, e cerca de 92% aprovam as relações sexuais antes do casamento (Paixão, 1995).
A atitude dos portugueses em face da multiplicidade de sexualidades e de formas de as viver é, no entanto, menos liberal que o quadro até aqui traçado poderia fazer supor. Práticas como a homossexualidade e a bissexualidade continuam a revelar-se áreas problemáticas para a maioria da população portuguesa, utilizadas muitas vezes como forma de agressão verbal ou de inferiorização do outro, como bem o demonstrou Almeida (1995). Tal atitude é também evidente no inquérito realizado por Pais, em que cerca de metade dos respondentes (48,5%) declara que a sexualidade só deveria ser permitida entre homens e mulheres, em comparação a uma percentagem de 14,3% que advoga deverem ser permitidos todos os tipos de relacionamentos sexuais (Pais, 1998). Quando questionados diretamente sobre a aceitação das relações sexuais entre dois homens e entre duas mulheres, a não-aceitação ascende a cerca de 80%, sendo, no entanto, importante salientar o mesmo grau de repúdio ao homem casado que mantém relações sexuais com outras mulheres (Pais, 1998).
Tal como refere Santos (1995:85), "uma das características principais da sociedade portuguesa é a heterogeneidade interna tanto dos princípios da regulação como das lógicas de emancipação". Num país cuja tradição judaico-cristã é fortemente enraizada, um dos principais eixos modeladores de tal heterogeneidade é claramente a religião. Por exemplo, se analisarmos a idade de iniciação sexual dos portugueses com base na orientação religiosa (Lucas, 1993), verificamos que a religião constitui um fator de retardamento dessa iniciação, sobretudo entre as mulheres: se apenas 14% das mulheres católicas se iniciaram sexualmente antes dos 18 anos, esse resultado sobe para 22% entre as católicas não praticantes e para 38% entre aquelas que se dizem atéias ou sem religião (Lucas, 1993). A ligação entre sexo e casamento é também mais acentuada entre aqueles que professam alguma religião: para os não crentes, a única necessidade apontada para a prática sexual é a existência de amor entre os seus praticantes (Pais, 1998). Em face desse maior conservadorismo religioso, não é, pois, de estranhar uma maior intransigência no que se refere à homossexualidade. Conforme Pais (1998) demonstra, é entre os crentes que se verifica uma menor aceitação tanto da homossexualidade masculina, quanto da feminina: se entre os não crentes a taxa de aceitação de relações sexuais entre homens e entre mulheres se situa nos 22,6% e 24,1% respectivamente, essa percentagem desce para os cerca de 17% entre os católicos não praticantes e para os 5,5% entre os católicos praticantes e os crentes de outras religiões (Pais, 1998).
Esse enquadramento geral das atitudes dos portugueses relativamente à sexualidade serve de introdução para a forma como o complexo HIV/AIDS é experimentado em Portugal. Disso procuraremos dar conta na próxima seção.
Os números da AIDS em Portugal
Desde o primeiro diagnóstico de AIDS em Portugal, em abril de 1983, até o final do ano de 2000, foram diagnosticadas 7.755 pessoas com AIDS no País. Em junho de 2001, os números oficiais apontavam para a existência de 17.858 infecções com o HIV e 8.232 doentes de AIDS (CVEDT, 2001). Contudo, uma vez que a AIDS não é uma doença de declaração obrigatória em Portugal, esses são apenas os números decorrentes dos casos notificados, o que implica necessariamente uma subavaliação da situação real da epidemia no País. Na verdade, em junho de 2001, Fernando Ventura, responsável pela Comissão Nacional de Luta contra a AIDS (CNLCS), declarou acreditar na existência de vinte a trinta mil cidadãos portugueses que desconhecem serem portadores do HIV (Campos, 2001). No mesmo sentido, aponta um relatório recente da UNAIDS (Joint United Nations Programme on HIV/AIDS), segundo o qual, em Portugal, podem existir cerca de 36 mil cidadãos infectados com o vírus (Público, 2001a).
Dentre os casos notificados, os homens apresentam uma clara preponderância, refletindo 84% do total de casos registrados. A análise por grupos etários revela que a maior incidência da doença se situa entre os 25 e os 29 anos (22%) e os 30 e 34 anos (21%).
Dos 7.455 casos de AIDS registrados até final de 2000, 56% dos indivíduos diagnosticados já faleceram. Em 1999, a evolução decrescente da mortalidade provocada pelo HIV/ AIDS sofreu um revés considerável, uma vez que, ao contrário da diminuição de quase 20% na mortalidade verificada entre 1996 e 1998, houve um aumento de 10% em 1999. Entre 1988 e 1996, registrou-se um aumento crescente da mortalidade provocada pelo HIV/AIDS, com os números a subirem de 62 para 1.111 mortes. Em 1981, 81% dos óbitos registrados ocorreram entre indivíduos do sexo masculino. Os indivíduos entre os 30 e os 34 anos foram os mais afetados (23%), seguindo-se os grupos etários de 25 a 29 anos (20%). Para o ano de 1999, na região de Lisboa e Vale do Tejo foi onde se registrou o maior número de óbitos relacionados com a AIDS por 100 mil habitantes. O valor do rácio nessa região foi de 20,4, seguindo-se o Algarve (6,6) e o Norte (6,2). As regiões dos Açores, Madeira, Centro e Alentejo foram as menos atingidas.
Quando comparado com os restantes países-membros da UE, constata-se um acentuado aumento no número de casos de AIDS em Portugal. Em 1995, o País ocupava o quarto lugar entre os países mais afetados pela doença (Público, 1995a). Hoje, de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2001, Portugal é o país com maior taxa de incidência de casos de AIDS da UE - 88,3 casos por milhão de habitantes ou 0,74 da população portuguesa entre os 15 e os 49 anos -, seguido de Espanha (0,58), França (0,44), Itália (0,35), Grécia (0,16) e Reino Unido (0,11) (PNUD, 2001). Em 1999, a taxa de incidência na UE era de 24,8 casos por milhão de habitantes, segundo números divulgados pelo Centro Europeu para a Vigilância Epidemiológica da AIDS, em cujos dados assentam as tabelas do Instituto Nacional de Estatística.
Se considerarmos os casos notificados por categoria de transmissão até junho de 2001 - critério declaradamente relevante para o presente artigo -, verificamos que os toxicodependentes continuam a ser o grupo mais afetado (49,7%), seguindo-se os heterossexuais (27,4%) e os homo ou bissexuais (16,1%) (CNLCS, 2001). Se compararmos esses os números com os das mesmas categorias em 1996, registra-se uma interessante evolução. De acordo com o Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças Transmissíveis, em 1996 a transmissão do vírus já se verificava principalmente entre os toxicodependentes, mas, quando considerávamos os infectados de acordo com a sua orientação sexual, a diferença entre heterossexuais, por um lado, e homo ou bissexuais, por outro, era apenas de um ponto percentual: 26% para o primeiro grupo e 25% para o segundo (Público, 1996a). Desde então, a diferença entre ambas as categorias tem vindo a evoluir da seguinte forma: enquanto os valores de incidência da doença entre a população heterossexual aumentam - de 24,5%, em 1997, passaram para 33,2%, em 2000 -, os mesmos valores para a população homo e bissexual decrescem - de 10,2%, em 1997, para 7,0%, em 2000. Cumpre analisar que fatores terão contribuído para um tão evidente decréscimo da incidência de casos diagnosticados de HIV/AIDS entre a população LGBT portuguesa no período de apenas cinco anos, sobretudo quando a média européia de casos de AIDS em 1997 revelava uma maior incidência da doença na população homossexual (28%) do que na heterossexual (19%) (Público, 1997a).
Não obstante o fato de os homossexuais constituírem uma população menos afetada pela AIDS do que os heterossexuais, o estigma social associado à doença continua a pautar-se por um discurso sobre imoralidade, promiscuidade e castigo, freqüentemente formulado em jeito de ataque à comunidade LGBT. Por exemplo, os resultados de um inquérito efetuado pelo Instituto de Psicologia Aplicada em 2001 sobre uma amostra de mil estudantes portugueses com idades compreendidas entre os 16 e os 23 anos revelam que a AIDS ainda é vista como uma doença que afeta sobretudo toxicodependentes, prostitutas e homossexuais (Público, 2001b). Já em 1993, um estudo realizado por Lucas sobre conhecimentos, crenças e atitudes dos portugueses em face da AIDS revelava que, relativamente aos grupos considerados mais vulneráveis, 60% dos inquiridos respondia "homossexuais" (Lucas, 1993). Essa associação, porventura apressada entre AIDS e grupos de risco, é um dos fatores responsáveis pela baixa percentagem de testes de AIDS efetuados por cidadãos portugueses. Informações disponibilizadas pelo Observatório dos Comportamentos e Atitudes em Relação ao HIV/AIDS indicam que, em 1998, por exemplo, mais de 70% dos estudantes do ensino superior nunca tinham feito o teste (Público, 2000). Isso torna-se especialmente preocupante quando, de acordo com dados da Comissão Nacional de Luta contra a AIDS divulgados em 1999, 50% dos soropositivos portugueses foram infectados antes dos 25 anos (Público, 2000).
As atitudes perante a soropositividade estão ainda muito marcadas pelo desconhecimento e ignorância em torno dos sintomas, transmissão e tratamento, por um lado, e pela discriminação com base na orientação sexual, por outro. Para combater ambas as vertentes, foram criados no País diversos organismos, estatais e privados, que visam a cobrir áreas de intervenção ligadas sobretudo à prevenção e ao tratamento. Tais iniciativas verificam-se com especial acuidade a partir da década de 90 e denotam um esforço de descentralização como forma de beneficiar também o interior rural do país. É sobre essas iniciativas, grupos e associações que nos debruçaremos em seguida.
O passado da luta contra a epidemia
Acompanhando, embora com algum atraso, as tendências verificadas noutros países ocidentais onde o combate travado contra a AIDS é prioridade governamental, Portugal tem vindo a desenvolver atividades nesse âmbito desde a década de 80. Um exemplo é a criação, por despacho ministerial datado de 20 de junho de 1985, do Grupo de Trabalho sobre AIDS, a funcionar no âmbito do Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças Transmissíveis do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.
Mas a década de 90 representa um avanço qualitativo e quantitativo nas iniciativas públicas ou privadas relacionadas com o tratamento e a prevenção do HIV/AIDS. Nesta seção, faremos, em primeiro lugar, uma descrição anotada das iniciativas de caráter estatal (incluindo-se nestas tanto as atividades desenvolvidas pela Comissão Nacional de Luta contra a AIDS, quanto as alterações introduzidas por decisão parlamentar) e, em segundo lugar, das atividades desenvolvidas pela sociedade civil organizada.
Em fevereiro de 1990, nasceu a CNLCS. Presentemente presidida por Fernando Ventura, as áreas prioritárias de intervenção dessa organização são a política de informação e as ações de sensibilização social. Daí que especial atenção seja concedida à investigação sobre AIDS. Por meio do Programa CRIA, a CNLCS tem vindo a incentivar o desenvolvimento e a continuação de projetos de investigação sobre essa temática. Essa organização é ainda responsável pelo estabelecimento e coordenação do Plano Nacional de Luta contra a AIDS, cuja apresentação, em julho de 2001, serviu de palco para a primeira presença pública do recém-nomeado Ministro da Saúde, Correia de Campos. Tendo como palavra-chave a prevenção, o Plano Estratégico para o triênio 2001-2003 aposta fortemente nos chamados Centros de Aconselhamento e Detecção Precoce, uma rede a instalar em todos os distritos do País e que deverá estar concluída em 2002. Uma outra linha de ação relaciona-se com a prevenção primária, isto é, aquela que é desenvolvida entre pessoas não contaminadas. Para tal, está em preparação um conjunto de manuais escolares para crianças entre os 8 e os 12 anos, fato revelador da colaboração entre a CNLCS e o Ministério da Educação.
A CNLCS é também responsável pela promoção de sucessivas campanhas publicitárias visando à prevenção do HIV/AIDS. Iremos destacar três dessas campanhas. Entre 1991 e 1993, foram criadas campanhas de solidariedade para com as vítimas do HIV/AIDS dirigidas ao público em geral, com o principal objetivo de evitar a exclusão social e a discriminação. Em 1997, a CNLCS lançou a campanha Crianças a Viver num Mundo com AIDS, parte de uma ação conjunta proposta pela ONU dirigida à população mais jovem (até os 18 anos). No âmbito da Exposição Universal conhecida como Expo 98, em Lisboa, foi promovida a campanha Classificados, assim designada por ter sido exposta nas páginas dos jornais reservadas aos anúncios classificados e que se destinava a incentivar o uso de preservativos por parte dos clientes de prostitutas. Nesse mesmo ano de 1998, foi festejado pela primeira vez no País o Dia Mundial de Luta contra a AIDS, a 1o de dezembro, com o objetivo de promover a prevenção e conscientização sobre a epidemia. Esse dia foi assinalado com um mega concerto no Pavilhão Multiusos, com o qual se pretendeu alertar as camadas mais jovens para os problemas que a AIDS traz.
Para além das atividades desenvolvidas pela CNLCS, iniciativas por parte de outras entidades públicas tiveram também lugar. Assim, a 25 de maio de 1991, o Supremo Tribunal de Justiça emitiu um assento relativo aos atestados médicos com implicações diretas para os portadores de HIV. A partir desse assento, deixa de ser obrigatória a indicação do motivo concreto que impossibilita o comparecimento de pessoas perante a justiça, sendo apenas necessário indicar que a falta se justifica por motivo de doença.
A 21 de dezembro de 1993, por iniciativa do Ministério do Emprego e da Segurança Social, o Conselho de Ministros aprovou o Decreto-Lei 412/93 (Portugal, 1993) que, entre outros assuntos, determinou que 25% dos resultados líquidos da exploração de um jogo denominado Joker por parte da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa sejam atribuídos a projetos e ações integrados na luta contra a AIDS. O mesmo documento previu ainda que 25% do montante dos prêmios caducados revertam a favor de tais projetos e ações.
A comparticipação do Estado português relativamente aos encargos com o tratamento da AIDS sofreu uma alteração positiva em 1996, momento em que foi decidido fornecer gratuitamente os medicamentos anti-retrovirais a doentes infectados. Tal decisão implica que o Estado português gaste por ano uma média de dois milhões de escudos (cerca de 8.800 dólares) com cada doente. No entanto, essa comparticipação não abrange, por exemplo, os medicamentos que se destinam a combater os efeitos secundários dos anti-retrovirais nem as designadas doenças oportunistas, contrariamente ao que sucede noutros países europeus. Esta comparticipação seletiva por parte do Estado está na base de reivindicações feitas pelas associações ligadas à luta contra a AIDS para que essa doença passe a ser considerada doença crônica (ver adiante).
A 14 de janeiro de 1998, foi inaugurado, em Lisboa, o Centro de Rastreio Anônimo, estatal, constituindo o primeiro centro de despistagem do HIV/AIDS confidencial e gratuito. Oito meses depois, a 16 de setembro, inaugurou-se o segundo centro, desta feita privado, pertencente à Fundação de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Importa referir que os primeiros testes de AIDS proporcionados de forma confidencial e gratuita datam de 1993 e eram realizados no Centro Laura Ayres, em Coimbra. Todas essas iniciativas são financiadas pela Comissão Nacional de Luta contra a AIDS. Atualmente existe um quarto centro de rastreio a funcionar na cidade de Faro, no Sul do País.
A 16 de julho de 1998, por sugestão do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, foi aprovado o Decreto-Lei 216/98 (Portugal, 1998), estabelecendo condições de acesso a pensões por invalidez por parte de pessoas infectadas com o HIV, condições mais favoráveis do que as permitidas pelo regime geral de segurança social. Tais condições consistem, por exemplo, numa forma de cálculo da remuneração mais vantajosa ou na bonificação da taxa anual de formação das pensões.
Existem inúmeras entidades públicas que lutam contra o alastramento da epidemia entre a população toxicodependente. Tal é o caso do Instituto Português da Droga e da Toxicodependência (IPDT), criado pelo Decreto-Lei 31/99 (Portugal, 1999b) de 5 de maio, ou do Conselho Nacional da Droga e da Toxicodependência, criado por iniciativa da Presidência do Conselho de Ministros, por meio do Decreto-Lei 89/2000 (Portugal, 2000), de 18 de maio.
No que se refere ao trabalho desenvolvido pela sociedade civil nessa área, verificamos uma grande participação das associações vocacionadas para a defesa dos direitos dos homossexuais, bissexuais e transexuais, com especial ênfase para a associação ILGA-Portugal. Por considerarmos as ações LGBT centrais para o presente artigo, dedicamos-lhe a próxima seção, pelo que, por agora, cingimo-nos apenas às associações exclusivamente vocacionadas para a luta contra a AIDS.
Em julho de 2001, S. C. Bava dava a conhecer os resultados de um estudo efetuado em cinco países ditos industrializados - Estados Unidos da América, França, Inglaterra, Alemanha e Austrália - sobre o prestígio das organizações não governamentais (ONG) na opinião pública daqueles países. Verificou-se que "as pessoas têm o dobro de confiança nas ONGs do que nos governos, nas empresas e na mídia", o que conduz a um enorme poder de mobilização por parte dessas associações (Bava, 2001:1). Entre os motivos para tão elevada confiança, encontrava-se o fato de as associações representarem os valores em que acreditam, terem causas claras e difundirem as suas mensagens diretamente para o público (Bava, 2001). As conclusões de tal estudo demonstram o potencial que a sociedade civil organizada pode desenvolver em termos de capacidade de influenciar ou mesmo determinar decisões e políticas sociais.
Existem, em Portugal, diversas organizações a trabalhar na área do HIV/AIDS. A Abraço constitui o caso de maior sucesso, sendo reconhecida socialmente pelo trabalho desenvolvido e, sobretudo, pela visibilidade que tem procurado dar a essa questão. Criada em junho de 1992, a organização resultou do trabalho desenvolvido por um grupo de voluntários que, desde 1991, prestava apoio material e psicossocial aos internados na Unidade de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Hospital Egas Moniz, em Lisboa. Atualmente, para além do centro de trabalho em Lisboa, a Abraço dispõe de delegações nas cidades do Porto (desde 1994) e do Funchal (desde 1995). Com cerca de 460 sócios e 650 voluntários, a associação tem como principais objetivos a prevenção e informação, o apoio pessoal e hospitalar às vítimas da AIDS, a formação de profissionais e voluntários ligados ao tratamento e a defesa dos direitos dos infectados com HIV/AIDS contra qualquer forma de discriminação. Nas palavras da sua presidente, Margarida Martins, essa associação "não trabalha com base na caridade, trabalha na base da política" (Público, 1997:19). Essa intenção de transformar qualitativamente os modos de abordagem do complexo HIV/AIDS no País motivou a Abraço a realizar, em nível nacional, cerca de 150 campanhas de prevenção, quarenta exposições temáticas e noventa sessões de prevenção em juntas de freguesia, câmaras municipais, escolas e estabelecimentos prisionais, desde 1992. Ao longo desse período, calcula-se que a Abraço tenha distribuído mais de quinhentos mil preservativos gratuitamente.
Estima-se que, em Portugal, existam cerca de quarenta organizações dedicadas à luta contra a AIDS. Algumas destas são a Liga Portuguesa contra a AIDS, constituída em 1990 e responsável pela linha telefônica gratuita SOS-AIDS; a fundação portuguesa A Comunidade contra a AIDS, criada em 1993 e com delegações no território continental e ilhas; a Alternativa Positiva, fundada também em 1993 e responsável pela organização do centro de documentação Júlio Silveira, cujo espólio é considerado o maior da Península Ibérica, e a Brilhar - Associação Portuguesa de Soropositivos, formada em 1998, cujo centro de atendimento funciona na cidade de Braga, no Norte do País.
Por se tratar de uma área em que todos os esforços devem ser rapidamente articulados a fim de impedir mais infecções e, conseqüentemente, um aumento da mortalidade por AIDS, muitas das iniciativas nessa área têm sido desenvolvidas graças ao trabalho coletivo do Estado com as diversas associações. É dessa articulação que trata a parte final desta seção.
Em 1995, as associações de luta contra a AIDS defendem publicamente que esta seja declarada doença crônica, fato que permitiria que os medicamentos com receita médica fossem suportados a 100% pelo Sistema Nacional de Saúde (Público, 1995b). Um ano depois, a Abraço apresentou um conjunto de reivindicações à Ministra da Saúde naquele período, Maria de Belém, insistindo uma vez mais na comparticipação estatal nos encargos decorrentes do tratamento ao HIV/AIDS. Para além dessa questão, a Abraço reclamou a aprovação imediata de medicamentos aprovados internacionalmente, a instalação de equipamentos adequados e a disponibilização de kits de medição de carga viral em todos os hospitais e serviços públicos de acompanhamento de doentes, bem como o investimento na formação de técnicos e especialistas nessa matéria (Público, 1996b). Em fevereiro de 2001, o governo português encontrava-se ainda a estudar o diploma sobre a inclusão da AIDS nas chamadas doenças crônicas, embora a então Ministra da Saúde, Manuela Arcanjo, tivesse formulado um parecer positivo seis meses antes (Expresso, 2001).
A 4 de julho de 2001, realizou-se a apresentação pública do conselho consultivo da CNLCS, que contou com a presença do novo ministro da saúde português. Nesse organismo, participam representantes de diversas áreas de intervenção, de que são exemplo o meio prisional, a toxicodependência, o meio escolar e algumas associações LGBT, nomeadamente a ILGA-Portugal e a Opus Gay. Essa participação revela uma intenção por parte da CNLCS de incluir a sociedade civil num percurso coletivo de combate ao vírus e ao estigma a ele associado. De resto, já no Plano Nacional de Luta contra a AIDS de 1993, a CNLCS formulava essa vontade, afirmando ser sua prioridade "privilegiar o desempenho das ONGs no âmbito das actividades concretas a desenvolver no campo de luta contra a AIDS" (CNLCS, 1993).
Como vimos, as associações ligadas a essa temática têm sido cada vez mais incluídas na elaboração de estratégias e políticas de prevenção do HIV/AIDS. Tal parece ser uma linha de ação determinante, uma vez que se trata de organizações com pessoal especializado e ativista, desde há muito em contato com a realidade quotidiana dos infectados e doentes de AIDS. Daí que nos pareça vantajoso o aproveitamento desse know-how adquirido no terreno desde os primeiros casos de AIDS em Portugal. Contudo, ao estudarmos o funcionamento das organizações não governamentais no País, não podemos deixar de concordar com Alexandra Lopes (comunicação pessoal) quando identifica um conjunto de características dessas organizações que podem constituir obstáculos ao combate contra a AIDS, nomeadamente a excessiva dependência do financiamento e da agenda estatal, a lentidão burocrática e a lógica assistencialista que visa à mera substituição das tarefas outrora atribuídas ao Estado. Longe de querer desvalorizar o papel fulcral desempenhado pelas associações portuguesas no combate à AIDS, a enumeração dessas características justifica-se pelo fato de acreditarmos que apenas partindo da autoconscientização dos problemas que as afetam, as associações poderão estudar formas mais eficazes de os ultrapassar.
Para além de fomentar a capacidade de participação dos cidadãos, a inclusão da sociedade civil em questões relacionadas com a AIDS implica uma outra conseqüência particularmente pertinente: o fato de introduzir a esfera privada da sexualidade no domínio do debate público. Esse efeito é parcialmente responsável pela crescente difusão de que os assuntos LGBT têm se beneficiado desde os anos 90, uma vez que implicou uma desmistificação do sexo e de tudo o que está associado a ele. Por exemplo, quando se torna socialmente aceitável - e até mesmo desejável - fazer prevenção em meio escolar de uma doença transmissível também por via sexual, passa a ser permitido verbalizar atos outrora confinados às quatro paredes da domesticidade. Abre-se, dessa forma, o caminho para a visibilidade de sexualidades alternativas à norma heterossexual, já que a realidade é pródiga em exemplos de atitudes e comportamentos heterogêneos em matéria de sexualidade. Uma vez mais se justifica a relação próxima existente entre as associações LGBT e a luta contra a AIDS. Falaremos disso na próxima seção.
O combate LGBT contra a AIDS em Portugal
"Era uma vez dois príncipes. Eram jovens, divertidos, bonitos... Viveram muitos anos sem se conhecerem, mas um dia decidiram sair do castelo solitário de cada um e encontrarem-se em terreno neutro. [...] Depois de um mês de muita alegria, tanta quanta se podia sentir, eles foram jantar novamente ao reino à beira mar onde se viram pela primeira vez. Depois de uma refeição digna de rei foram passear à praia, e foi aí que um dos príncipes revelou ao seu amado algo que poderia mudar o relacionamento de paixão e amor tão intensos que se sentiam até aí: 'eu sou soropositivo'. O outro príncipe olhou nos seus olhos e beijou-o, e disse que o amava.
Quando se ouve falar em AIDS todos têm medo. Têm medo de olhar, de tocar, de beijar e de amar. Passou muito tempo desde que conheci o meu príncipe, e amo-o cada vez mais. Tive medo de morrer, mas acima de tudo de o perder. Não tenham medo e aproveitem a vida. A AIDS é mais um degrau, que pode ser baixinho ou alto como um muro" (WJ, 2000).
Quando um cidadão português desconfia de que eventualmente pode estar contagiado com HIV, o primeiro passo é dirigir-se ao médico de família. Depois de uma avaliação do quadro clínico do paciente, o médico pode aconselhar análises aos anticorpos do HIV, desde que o paciente o consinta livremente. No caso de os resultados serem positivos, o doente deve ser encaminhado para um hospital capacitado para o acompanhamento e tratamento de pessoas infectadas com o vírus. Atualmente, em Portugal todos os hospitais distritais e centrais dispõem de pessoal especializado nessa área e de medicamentos anti-retrovirais e demais equipamentos necessários à realização de exames complementares.
Mas o processo que está subjacente a um contágio com o HIV não é tão simples quanto o procedimento clínico acima descrito pode fazer crer. Muito para além da vitimização individual, a AIDS tece uma complexa rede de relações, contradições e estigmas que passam a dominar a vida do doente. Tal rede é indissociável de um passado de ignorância e medo que atribuiu as causas da doença a um castigo divino qualquer, em virtude de comportamentos considerados imorais ou, pelo menos, amorais. Assim nasceu o estigma da AIDS como equivalente conceptual de depravação ou imoralidade, fato que conduziu à primeira designação lato sensu da doença como câncer gay e à conseqüente discriminação de que são alvo as vítimas da AIDS, independentemente da sua orientação sexual.
O mais antigo caso de AIDS português ainda vivo é José Manuel Osório, doente há 17 anos. Osório, homossexual assumido, tem sido um dos rostos mais mediáticos da AIDS em Portugal. Numa entrevista concedida ao jornal Público, a 5 de junho de 2001 (Público, 2001c), Osório lembrou que, ainda na década de 80, a AIDS era considerada uma doença de homossexuais. Volvidas quase duas décadas desde as primeiras infecções conhecidas no País, a AIDS ainda continua fortemente associada à homossexualidade, uma vez que não é fácil desenraizar crenças fundadas simplesmente na moral individual. Com uma tradição muito pouco aprofundada de educação sexual, a sociedade portuguesa tem ainda um longo trajeto a percorrer para um conhecimento informado seja sobre a sexualidade em geral - em que se incluem as orientações não heterossexuais -, seja sobre essa epidemia.
À semelhança do que sucedeu noutros países ocidentais, as associações ligadas à AIDS, promovendo um discurso pautado pelo apelo ao envolvimento, à participação e à responsabilização individuais, constituíram um espaço privilegiado para a emergência pública do movimento LGBT português. Numa entrevista realizada em 1998, o antropólogo M. V. Almeida resumia assim a relação entre orientação sexual e AIDS em Portugal: "O movimento gay em Portugal surge como resultado do movimento de luta contra a AIDS. (...) Agora, de fato, o movimento gay a sério começa com a ILGA e a ILGA sai da Abraço e do movimento de luta contra a AIDS. Portanto, era uma espécie de associação das pessoas que, dentro do movimento de luta contra a AIDS, reconhecem a especificidade da questão homossexual. E, a partir daí, entram na questão homossexual já independente da questão da AIDS" (Santos & Fontes, 1999:59).
Essa participação LGBT na temática da AIDS decorre de dois aspectos fundamentais: (1) combate ao alastramento da epidemia na comunidade LGBT; (2) reação ao estigma que associa AIDS e imoralidade. Partindo desses dois vetores, as diversas associações LGBT portuguesas - com particular destaque para a delegação portuguesa da ILGA-Portugal - têm procurado desenvolver um trabalho que abranja também a problemática da AIDS, produzindo material impresso de informação para gays e lésbicas, mas também para pais, amigos, familiares, escolas etc. A presença da AIDS em atividades públicas organizadas por essas associações e a organização de eventos dedicados exclusivamente à AIDS são também freqüentes, tal como esperamos demonstrar nesta seção.
O envolvimento da ILGA-Portugal na luta contra a AIDS tem sido regular desde a sua constituição, o que decorre principalmente do fato de os seus membros-fundadores terem iniciado o seu ativismo na já referida Abraço. Numa entrevista concedida em 1999, o então presidente, Gonçalo Diniz, referia "A associação surgiu a partir de voluntários que trabalhavam em organizações de luta contra a AIDS e eram organizações que tinham uma grande massa de voluntariado que era gay e que pensava que deveria existir uma organização que tratasse exclusivamente dos assuntos dessa comunidade" (Santos & Fontes, 1999:103).
Logo no ano em que foi oficialmente constituída, a ILGA-Portugal participou, em fevereiro de 1996, da Exposição SIDAdania, no Museu da Ciência da Universidade de Lisboa. Essa exposição, visando a divulgar o trabalho desenvolvido nessa área e a encorajar a prevenção, contou com o apoio da Comissão Nacional de Luta contra a AIDS e do Ministério da Educação.
A 4 de maio de 1997, a ILGA-Portugal organizou a 1a Marcha em Memória e Solidariedade para com as Pessoas Afetadas pelo HIV/AIDS, celebração que se tem vindo a repetir anualmente desde então. A propósito da primeira edição dessa marcha, Almeida afirmou que "nunca em Portugal, a não ser em torno da questão do aborto, se tinha conseguido mobilizar gente para uma ação de rua em torno da política sexual. (...) Toda a gente sabe que a luta contra a AIDS não é nem nunca foi um movimento 'normal' de solidariedade com vítimas ou de pedido de fundos para a saúde. Nunca foi só isso. Foi sempre também - e sobretudo cá - um catalisador, um espaço, uma motivação, para a afirmação da cidadania e da política sexual e dos estilos de vida" (Almeida, 1997:98). Por motivos ainda por determinar, aquela que seria a 3a Marcha em Memória e Solidariedade para com as Vítimas do HIV/AIDS, a realizar-se em maio de 1999, acabou por ser cancelada. Entre as explicações avançadas, contou-se o baixo número de participantes (cerca de trinta) e uma planificação deficiente dos recursos disponibilizados para o evento. Retomadas a 19 de maio de 2001, data da realização da sua 4a edição, essas marchas realizam-se no âmbito da 18th International AIDS Candlelight Memorial - um conjunto de eventos em nível mundial para relembrar aqueles que morreram com AIDS e suscitar apoio para as pessoas afetadas pelo HIV/AIDS, bem como alertar e mobilizar a comunidade para o combate ao HIV/AIDS - e contam com o apoio da Comissão Nacional de Luta contra a AIDS e da Câmara Municipal de Lisboa.
Nessa quarta edição, após alguns breves discursos, seguiu-se uma largada de 4.424 balões, simbolizando as mortes notificadas por AIDS ocorridas até janeiro de 2001. Para participar na marcha, foram convidadas diversas entidades e associações LGBT, de solidariedade social e ligadas à prevenção do HIV/AIDS, entre outras.
De acordo com o relatório de atividades para o ano de 1998, a ILGA-Portugal desenvolveu dois projetos dentro da esfera social de ação da associação consagrada ao Apoio na Área do HIV/AIDS. Os projetos foram designados "Homossexualidade e AIDS I" - consistindo na produção e distribuição de folhetos e cartazes - e "Homossexualidade e AIDS II" - incidindo na produção e distribuição de kits compostos por preservativos, lubrificantes à base de água e uma brochura explicativa, em associações LGBT, bares, saunas, restaurantes e discotecas. Nesse mesmo ano, as instalações da associação ILGA-Portugal albergaram o Movimento Ibérico Quilt Português, inspirado no movimento Quilt iniciado nos Estados Unidos em 1987. Sem estar diretamente ligado à prevenção ou ao tratamento, esse movimento visou a constituir-se como uma presença viva em memória daqueles que morreram com AIDS e a chamar a atenção dos governos para a necessidade de intervir ativamente no combate à epidemia.
Mais recentemente, o Plano de Atividades da ILGA-Portugal para 2000 contemplou o envolvimento em três projetos europeus relacionados com essa temática: Projeto Europeu de Prostituição Masculina; Projeto Europeu CERIS (prevenção junto a jovens homossexuais) e Projeto Europeu Mind the Gap (desenvolvimento comunitário). Para além disso, manteve-se a habitual distribuição de folhetos e kits de preservativos e lubrificantes.
Apesar desse trabalho realizado pela ILGA-Portugal em torno do HIV/AIDS, o principal objetivo dessa associação não está diretamente ligado ao combate da epidemia. Contudo, por se tratar de um grupo cuja sexualidade é constantemente discutida na esfera pública, a associação sentiu a necessidade de incluir na sua agenda atividades de prevenção e inclusão dos infectados e doentes pelo vírus, consolidando assim um trabalho mais abrangente de luta pelo fim da discriminação sexual. Nas palavras, uma vez mais, de Gonçalo Diniz, "nós nunca quisemos ser uma organização de luta contra a AIDS porque as organizações de luta contra a AIDS já existem e já fazem um trabalho que é muito válido. Nós queríamos era, de alguma forma, complementar o trabalho que elas já fazem e que era fazer uma prevenção dirigida, com uma linguagem que tivesse em conta a população que se quer atingir" (Santos & Fontes, 1999:107).
Ainda que o alcance da ação das associações LGBT extravase o âmbito da luta contra a AIDS, é certo que o trabalho dessas associações pode representar uma importante mais-valia na prevenção e informação junto da comunidade LGBT. Na verdade, as campanhas contra o HIV/AIDS são geralmente dirigidas à população em geral, utilizando uma linguagem inadequada às especificidades dos diferentes públicos-alvo. Assim se compreendem os resultados obtidos num inquérito on-line realizado em dezembro de 2000, cuja pergunta era "Considera que as campanhas de prevenção contra o HIV nos LGBT têm sido adequadas?": 36% dos inquiridos optaram pela alínea "quais campanhas?" e 22% consideraram que se fez um mau trabalho (Portugal Gay, 2000). Tais resultados indicam claramente que o envolvimento das associações LGBT na prevenção e tratamento do HIV/AIDS é importante e deve ser desenvolvido para que a comunidade LGBT esteja cada vez mais informada. De fato, a esse trabalho se deve, seguramente, a diminuição da incidência de casos notificados de HIV/AIDS entre homossexuais nos anos mais recentes.
Contra a AIDS no século XXI: o direito à não-discriminação
Num colóquio organizado pela associação Abraço em dezembro de 1995, Margarida Martins, presidente daquela entidade, lembrou que "a AIDS é a primeira epidemia a ocorrer na era dos Direitos Humanos" (Público, 1995c:21). A relação entre AIDS e direitos humanos deve constituir-se como uma das principais forças de consolidação do trabalho desenvolvido pelos diversos organismos envolvidos na luta contra a epidemia. Na verdade, sempre que um Estado ratifica tratados internacionais de direitos humanos, compromete-se, perante os seus cidadãos e os restantes Estados, a assumir responsabilidades em relação ao respeito pelos direitos das minorias, à proteção contra qualquer forma de discriminação e à execução de medidas adequadas à concretização desses mesmos direitos. Nesse sentido, a promoção e a proteção da saúde humana constituem juntas um dos principais indicadores da defesa dos direitos humanos por parte de uma nação. Logo, o governo português está obrigado não apenas a não violar ativamente os direitos humanos, como também a criar condições para a igualdade de direitos entre soropositivos e soronegativos.
Presentemente, o trabalho na área da HIV/ AIDS em Portugal deve ultrapassar os âmbitos tradicionais da prevenção e tratamento para abarcar um outro, relacionado com a educação para a cidadania. Enquanto não houver uma preocupação estatal nesse sentido, traduzida por iniciativas sistemáticas, tais como jornadas de informação, campanhas de sensibilização, formação para a igualdade etc., essa relação entre AIDS e direitos humanos não será suficientemente forte para impedir qualquer tratamento discriminatório relativo aos doentes de AIDS.
Tal como temos vindo a defender, a questão da discriminação dos doentes de HIV/AIDS em Portugal decorre em larga medida de uma conjunção de fatores relacionados com a forte tradição católica no País, o conservadorismo moral, o déficit de educação sexual e a tentação de associar a AIDS a comportamentos sexuais considerados socialmente desviantes. A defesa do que se chama moral e bons costumes portugueses constitui uma das principais bandeiras dos quadrantes políticos de centro-direita e direita. Contudo, independentemente do quadrante político em causa, verifica-se freqüentemente a invocação da família nuclear tradicional como modelo de virtude pessoal e estabilidade social. Vem a propósito citar as palavras do psicólogo clínico Filipe Nunes, num debate subordinado ao tema Medos e segredos sobre sexualidade e AIDS, promovido pela Associação Acadêmica de Coimbra em dezembro de 1995: "O Estado ultrapassa largamente a sua missão quando, em campanhas de combate à AIDS, apela aos valores da família" (Público, 1995d:19)
No último ano, foi visível uma preocupação crescente relativamente ao combate contra a discriminação, patente não só nos discursos de representantes estatais, como também nas estratégias e atividades das associações a trabalhar no terreno. A 19 de novembro de 2001, por iniciativa do Presidente da República português, Jorge Sampaio, realizou-se em Lisboa um seminário subordinado ao tema "O HIV/AIDS e os Direitos Humanos", que reuniu cerca de quatrocentos especialistas e interessados na matéria. Dentre as intervenções feitas no âmbito desse seminário, queremos realçar uma: o discurso de Jorge Sampaio, que ficou marcado por um apelo ao fim da discriminação que vitima doentes e infectados com HIV/AIDS. Com efeito, o Presidente da República manifestou-se preocupado com a falta de "reconhecimento e exercício dos direitos de cidadania das pessoas com HIV/AIDS" e, para que tal situação possa ser invertida, identificou como áreas urgentes de intervenção a informação, o conhecimento e a solidariedade (Diário de Notícias, 2001). Também a 19 de novembro 2001, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) tornou pública uma Nota Pastoral de tomada de posição sobre a questão da AIDS, onde se afirmava: "Já não se pode iludir a gravidade desta doença e a ameaça que esta representa para a humanidade. [...] A gravidade desta doença acentua-se com a incógnita do número dos soropositivos, contagiadores potenciais, muitos sem saberem que o são. [...] Mas se a prevenção contra a doença constitui um apelo a comportamentos responsáveis, a assistência aos doentes de AIDS é exigência de caridade fraterna. Como aconteceu com outras doenças no passado, a AIDS está marcada por um estigma social. Isso é apenas mais um apelo à nossa caridade fraterna. Ao patrocinarmos como sinal jubilar uma Instituição de apoio a estes doentes, a Domus Fraternitas, que continua em fase de instalação, quisemos sublinhar este dever da Igreja" (CEP, 2001). Essa tomada de posição pública da Igreja Católica parece-nos sintomática da corrente antidiscriminação que o País tem vindo tendencialmente a assumir.
O incremento na participação estatal e a crescente visibilidade internacional que Portugal recentemente adquiriu na luta contra a AIDS são dois outros aspectos que serão potencialmente úteis no combate à discriminação de portadores de HIV/AIDS. Apresentamos três exemplos, todos ocorridos no ano de 2001.
Logo a 30 de maio de 2001, Fernando Ventura, presidente da CNLCS, foi eleito vice-presidente do Conselho de Coordenação do Programa da UNAIDS. A partir desse ano, Portugal obteve pela primeira vez o estatuto de membro permanente desse organismo, responsável por todas as questões relacionadas com política, estratégia, financiamento, vigilância e avaliação da UNAIDS.
Cerca de um mês depois, em junho de 2001, realizou-se a primeira Sessão Especial da Assembléia Geral da ONU sobre AIDS, em Nova Iorque, que reuniu cerca de três mil participantes (delegações oficiais e organizações não governamentais). Portugal foi o único país europeu a estar representado pelo chefe de Estado, Jorge Sampaio, fato que foi fortemente elogiado pelos participantes, valendo-lhe mesmo o epíteto de "líder da Europa" por parte do embaixador Richard Holbrooke (Público, 2001d). No seu discurso, Sampaio realçou a necessidade de aumentar as medidas de prevenção, de introduzir a educação sexual nas escolas, de intensificar a pesquisa por uma vacina e de conjugar esforços políticos, das associações, dos soropositivos e das Igrejas.
Finalmente, a 16 de julho de 2001, a Assembléia da República fez aprovar a resolução 54, na qual formula três recomendações ao governo: (a) uma ativa intervenção internacional para combater eficazmente a AIDS; (b) o acolhimento dos princípios das ONU nessa matéria; (c) a criação de um programa específico de combate à epidemia nos países africanos de língua oficial portuguesa.
Considerações finais
Num artigo em que se procurou identificar a forma como a questão da AIDS tem sido tratada em Portugal, concedendo-se especial atenção ao papel do movimento LGBT nesse processo, parece-nos útil terminar refletindo sobre propostas para o futuro da luta contra a epidemia no País.
Se informar é um ato político, tal como acreditamos que seja, cumpre ao Estado o dever de não se alhear da tarefa de promoção e consolidação de campanhas de sensibilização e de informação fundamentada cientificamente na área das sexualidades. Em entrevista concedida ao jornal Público, a 20 de novembro de 2001, Peter Piot, diretor executivo da UNAIDS, comentava assim o fato de Portugal constituir o caso mais preocupante da Europa ocidental: "Eu vinha no avião a perguntar-me 'por quê?'. Para os padrões europeus, Portugal tem uma situação única em termos epidemiológicos: muita transmissão entre toxicodependentes e heterossexuais. E parece-me também que os esforços de prevenção não têm sido adequados à dimensão do problema. Não há a sensação de que isto pode ficar incontrolável. Se não se enfrenta a realidade, se não se enfrenta o fato de as pessoas usarem drogas, de terem relações sexuais, se isso não está de acordo com a moral vigente - seja a da Igreja ou outra qualquer -, não se pode resolver nada. A moral não deve ser posta à frente de nada. Deve-se salvar vidas antes de pensar na ideologia" (Público, 2001e). Este depoimento deixa transparecer a constante tensão, manifesta ou latente, entre moral e sexualidade. Na verdade, ao afirmar que a moral não deve ter precedência sobre a vida, Piot está intencionalmente a denunciar um dos maiores obstáculos à prevenção do HIV/AIDS.
Num país em que a incidência de mães adolescentes ocupa o segundo lugar da Europa e onde os números da soropositividade nos concedem o primeiro lugar, é urgente implementar a educação sexual nas escolas. Para além de permitir o conhecimento e aceitação de diferentes formas de se viver a sexualidade, a educação sexual promove a responsabilidade individual, um recurso indispensável na luta contra a AIDS.
A AIDS é um problema prioritário de saúde pública, que exige uma resposta transversal aos contextos local, regional e nacional, com vista à obtenção de uma solução global. Para isso, torna-se necessário desenvolver e consolidar uma rede de centros de atendimento em meio rural (sobretudo no interior), muito para além das existentes comissões distritais e regionais de luta contra a AIDS.
É urgente reforçar a diferença entre grupos de risco e comportamentos de risco: de fato, cada vez mais as associações ligadas à luta contra a AIDS defendem a não-existência da categoria "grupos de risco", uma vez que o vírus é transversal a qualquer critério de idade, situação sócio-econômica, etnia ou orientação sexual. Por isso, mais do que controlar determinadas populações-alvo, convém identificar e prevenir os comportamentos que podem significar uma maior exposição ao risco de contágio.
Não obstante a adoção de comportamentos de risco em detrimento da obsoleta noção de grupos de risco, torna-se premente desenvolver campanhas de combate à AIDS que reflitam a diversidade existente e que adotem uma linguagem adequada ao público-alvo a que se destinam. Nesse sentido, subscrevemos a mensagem da ILGA-Portugal quando da 4a Marcha em Memória e Solidariedade para com as Pessoas Afetadas pelo HIV/AIDS: "As várias comunidades e grupos específicos (como são, por exemplo, os jovens, as mulheres heterossexuais e as mulheres lésbicas, as comunidades estrangeiras residentes em Portugal, os utilizadores de droga, a população homossexual masculina, a população heterossexual masculina, os trabalhadores do sexo, etc.) continuam a não ter uma mensagem que lhes é dirigida frontalmente, e continuam a ter que ler nas entrelinhas de um discurso que supostamente é dirigido a todos, mas que pressupõe uma população estereotipada e com costumes culturais idênticos, tudo isto em nome de uma suposta mentalidade portuguesa e da moral e dos bons costumes" (ILGA-Portugal, 2001). Uma forma de adotar uma linguagem adequada ao público-alvo é recorrer à chamada prevenção feita por pares, isto é, obter a participação de jovens em sessões de esclarecimento feitas em meio escolar, por exemplo. Nesse processo, seria naturalmente importante envolver as associações de estudantes.
Uma outra linha de ação, de resto já assumida pela própria CNLCS, consiste na elaboração de estudos epidemiológicos que caracterizem a evolução da AIDS no País, cruzando essa informação com um conjunto amplo de variáveis sociais, econômicas e culturais. Tais estudos permitirão uma caracterização mais fiel das bolsas epidemiológicas em Portugal, facilitando ainda uma comparação com a realidade vivida noutros países sem a qual se torna perigoso delinear estratégias de intervenção em longo prazo.
Ainda dentro dessa necessidade de conhecer melhor as condições objetivas de existência da infecção, defendemos, tal como a CNLCS tem vindo a fazer, uma legislação que permita a notificação obrigatória dos casos de AIDS, de modo a permitir um maior conhecimento sobre a situação da epidemia no País. Considerando que a lei sobre doenças contagiosas, datada de 1949 e ainda em vigor, não se adapta ao caso da AIDS, a substituição da designação "doença contagiosa" por "doença transmissível" seria uma forma de adequar a legislação à realidade do complexo HIV/AIDS.
É também necessário promover e consolidar a colaboração entre entidades governamentais (nomeadamente com os ministérios da saúde e da educação), organizações não governamentais e outros organismos (de que a Direção Geral dos Serviços Prisionais constitui um bom exemplo, sobretudo se considerarmos que 20% da população prisional portuguesa está infectada com o HIV), fazendo uso dos diversos saberes e práticas adquiridos nos últimos anos junto das pessoas diretamente afetadas pela epidemia.
Sejam quais forem as linhas de ação adotadas e as alianças estabelecidas, deve alargar-se o esforço de prevenção, informação e tratamento do HIV/AIDS para muito além das semanas que antecedem o Dia Mundial de Luta Contra a AIDS ou os meses de verão.
Estamos naturalmente conscientes de que este conjunto de caminhos possíveis não levará, por si só, nem à pretendida diminuição da escalada de HIV/AIDS no País, nem ao desejado fim da discriminação com base na orientação sexual. Levará tempo até que as atitudes dos portugueses reflitam uma sexualidade tão responsável quão diversa ela pode ser. Mas as pedras angulares da articulação entre Estado e sociedade civil na jornada contra a epidemia, essas, pelo menos, estão construídas.
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Recebido em 12 de dezembro de 2001
Versão final reapresentada em 11 de janeiro de 2002
Aprovado em 4 de março de 2002