Elizabeth Costa Dias | Debate sobre o artigo de Leny Sato Debate on the paper by Leny Sato
|
Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil |
|
Terminei a leitura do artigo da Dra. Leny Sato com um sentimento bom de esperança - tão em baixa nesses tempos de reestruturação produtiva, globalização de mercado, e precarização do trabalho -, quanto às possibilidades de mudança das condições de trabalho, na direção da saúde dos trabalhadores. Saúde como a "condição em que um indivíduo ou grupo de indivíduos é capaz de realizar suas aspirações, satisfazer suas necessidades e mudar ou enfrentar o ambiente" (Rey, 1999:687). Saúde como um recurso para a vida diária e não um objetivo de vida. Um conceito positivo que considera e enfatiza os recursos sociais e pessoais, tanto quanto as condições físicas.
A percepção da saúde como recurso para a vida diária - o cotidiano - ganha concretude na experiência desses trabalhadores de uma indústria de alimentos. Ao organizarem seu trabalho segundo uma racionalidade distinta daquela proposta pelo corpo gerencial da empresa, através de um processo negociado, fazem a "recomposição dos processos de trabalho sobre os escombros dos sistemas de produção industriais do início do século XX" (Guattari, 1990:48). Nas palavras de Guattari, produzindo "uma subjetividade criacionista, tanto no plano individual quanto no plano coletivo".
No texto, a autora detalha o processo desse replanejamento do trabalho de forma clara e bem sistematizada, permitindo que, mesmo aqueles pouco familiarizados com a teoria, possam entender o fenômeno, observado em múltiplas formas, no cotidiano do trabalho.
A rigor, a busca de "outras racionalidades" para organizar o trabalho, sempre esteve presente no denominado "chão de fábrica", como demonstrado por Danilellou et al. (1989), a partir das diferenças observadas entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Os trabalhadores, individualmente ou em grupo, a partir de um "saber fazer" aprendido no trabalho, desenvolvem estratégias com a finalidade de facilitar a tarefa, poupar esforço ou energia, manifestar sua autonomia e ou resistência aos mecanismos de controle, ou ainda, como formas de suporte social no trabalho, na concepção de Johnson (1989), reconhecidamente importantes para a preservação da saúde.
Há cerca de dois anos, tivemos a oportunidade de acompanhar o estudo de um grupo de trabalhadores da limpeza urbana de Belo Horizonte, que resultou na monografia de conclusão da Residência em Medicina Social/Medicina do Trabalho, da Dra. Ciwannyr Assumpção (2000). A questão que o norteou foi a de entender como um grupo de trabalhadoras de meia idade e portadoras de queixas osteo-musculares, permaneciam, por opção, trabalhando em atividades de varrição e limpeza de vias públicas. A análise do trabalho e as entrevistas com os trabalhadores mostraram que isso somente foi possível, devido a um rearranjo do trabalho, desenvolvido pelas equipes responsáveis pelas tarefas, com uma certa cumplicidade dos supervisores das turmas. Abandonando a rigidez das prescrições da organização e os papéis tradicionais, os trabalhadores organizaram as atividades de modo tal, que aquelas que demandavam maior esforço físico e agilidade, eram desempenhadas pelos indivíduos mais jovens e com mais força física de cada equipe, permitindo que a tarefa do dia fosse completada com sucesso e em menor tempo, com uma redução real da jornada de trabalho e a manutenção no trabalho de trabalhadoras com limitações, impostas pela idade e pelos problemas osteo-musculares, mas que queriam continuar trabalhando, e não poderiam fazê-lo no sistema tradicional. De modo distinto do estudo conduzido pela Dra. Leny Sato, eram trabalhadores com pouca ou nenhuma escolaridade, de uma empresa pública do setor de serviços, com predomínio de mulheres, mas que se organizaram para trabalhar menos tempo e apoiarem-se.
Observação semelhante foi feita por Assunção (1998), estudando trabalhadores de um restaurante universitário. O reconhecimento da importância da experiência e da competência profissional de um grupo de trabalhadoras mais idosas para o sucesso ou o alcance dos objetivos do processo produtivo, foi o ponto de partida para a decisão da equipe de trabalho de desenvolver estratégias, de modo a aproveitar o "savoir faire" dessas trabalhadoras e permitir sua permanência no trabalho, a despeito das limitações impostas pela idade e pela doença.
Reforçando a importância dessa questão, é importante registrar que, ganha força entre os profissionais que se dedicam ao campo da Saúde do Trabalhador, a idéia de que nem sempre a melhor alternativa para o trabalhador que adoece no trabalho é o seu afastamento da atividade. Quase sempre, o ideal é mudar a condição de trabalho permitindo que ele ou ela continue trabalhando.
Poder-se-ia perguntar quem, ao final, ganha com esses rearranjos? A resposta parece simples: ganham todos. Sem dúvida o sistema e os organizadores da produção ganham. Particularmente, se considerarmos as exigências crescentes de produtividade, diversidade e qualidade dos produtos, nos mercados globalizados. Mas os trabalhadores, também ganham. A curto prazo, conquistam algum tempo livre ou a possibilidade de dispender menos esforço no trabalho. Em uma perspectiva mais ampliada, ganham força, reforçam a auto-estima, aumentam a resiliência, palavra emprestada da ecologia para indicar a capacidade de resistir aos traumas e pressões e o poder de gerenciar suas vidas. É uma expressão do empoderamento (a palavra é feia, mas a idéia é bonita) proposto pela estratégia da promoção da saúde no trabalho. Devemos saudá-los como sinal da possibilidade de tempos melhores e de ter esperança.
ASSUMPÇÃO, C. M., 2000. Estudo das Atividades de Varrição, Carrinheiro e Coleta na SLU, como Contribuição para as Práticas do Serviço de Medicina do Trabalho. Monografia, Belo Horizonte: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais.
ASSUNÇÃO, A. A., 1998. De la Déficience à la Gestion Collective du Travail: Les Troubles Musculo-Squelettiques dans la Restauration Collective. Thèse de Doctorat, Paris: École des Hautes Études, Ministére de l'Education Nationale, de la Recherche et de la Technologie.
DANIELLOU, F.; LAVILLE, A. & TEIGER, C., 1989. Ficção e realidade do trabalho operário. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 17:7-13.
GUATTARI, F., 1990. As Três Ecologias. Campinas: Papirus.
JOHNSON, J. V., 1989. Collective control: Strategies for survival in the workplace. International Journal of Health Services, 19:540-545.
REY, L., 1999. Dicionário de Termos Técnicos de Medicina e Saúde. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.