ARTIGO ARTICLE
Marina Ruiz de Matos1 | Técnica Pasteur São Paulo para dimensionamento de população canina
São Paulo Pasteur Institute Technique for estimating a canine population
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1 Superintendência de Controle de Endemias. Rua Paula Souza 166, São Paulo, SP 01027-000, Brasil. | Abstract This paper describes a technique developed by the Pasteur Institute in São Paulo, Brazil, for counting and classifying a canine population according to levels of dependency and confinement. First, a household survey was performed to identify dogs with owners and their degree of restriction. Different-colored collars were given to totally and partially restricted dogs. Dogs cared for by individuals who did not consider themselves the owners received collars of a third color. After the survey, surveyors counted and recorded dogs on the streets according to the color of their collars. Absence of collars identified dogs without owners. Surveyors were positioned at predetermined sites, an average of 50 meters apart. Counting time lasted 30 seconds and was repeated every 10 to 15 minutes for one hour, with starting and finishing times signaled by blasts on a whistle. The technique was used in the city of Serra Azul, São Paulo, Brazil, by 13- to 17-year-olds after a one-day training program. A total of 498 dogs were recorded in two census tracts, 5% of which were classified as without owners and unrestricted.
Resumo Este artigo apresenta técnica para dimensionar e classificar populações caninas, segundo graus de dependência e restrição. Foi desenvolvida pelo Instituto Pasteur de São Paulo, com a seguinte metodologia: (1) realização de um inquérito domiciliar para identificação dos cães com proprietário e do grau de restrição. Aos proprietários de cães restritos, totalmente ou parcialmente, e aos moradores que não se definiram como proprietários únicos foram entregues coleiras de três cores distintas, solicitando-lhes colocação nos cães sob seus cuidados; (2) contagem de cães que circulavam na rua e classificação conforme cor da coleira, cuja ausência identificou os cães sem proprietário. Os pesquisadores foram posicionados em locais pré-determinados, distantes em média cinqüenta metros. O tempo de cada contagem foi de trinta segundos, repetindo-se a cada 15 minutos, por uma hora, com início e término marcados por apito. A técnica, aplicada em dois setores censitários do Município de Serra Azul, Estado de São Paulo, Brasil, foi realizada por adolescentes de 13 a 17 anos, submetidos a um dia de treinamento. O procedimento foi simples e possibilitou acesso à informação de difícil obtenção, como o percentual de cães sem proprietário ou sem proprietário definido, que, no caso estudado, foi de 5%. |
Introdução
Questões relativas a populações de cães como animais de estimação apresentam grande importância em diferentes países por serem mantidos em estreito contato com seres humanos (Baer, 1975). No que diz respeito à área da saúde, entre vários aspectos, pode ser salientada a sua participação na cadeia epidemiológica de diversas zoonoses como a raiva, a leishmaniose visceral e o complexo larva migrans visceral/toxocariose. Os cães podem ainda desempenhar papel de reservatório de agentes etiológicos oportunistas, com implicações para pessoas imunodeprimidas (FUNASA, 1996).
Além disso, apesar de deficientes avaliações quantitativas, são conhecidos registros de casos de acidentes de trânsito provocados pela presença de cães soltos nas vias públicas das cidades e em estradas (WHO/WSPA, 1992).
O planejamento de programas de saúde envolvendo cães requer o conhecimento da densidade populacional dos animais, bem como a sua distribuição segundo estratos, definidos pelos distintos níveis de cuidados que recebem (WHO/WSPA, 1992).
As áreas de Vigilância Epidemiológica e Vigilância Ambiental utilizam estimativas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que referem a proporção de um cão para sete habitantes em países emergentes (WHO, 1992). O desenvolvimento de censos da população canina e de campanhas anuais de vacinação contra a raiva tem mostrado grande variação em relação a essa proporção. No Estado de São Paulo, os resultados de censos realizados em alguns municípios têm evidenciado proporções que variam de dois a treze cães por habitante (Nunes et al., 1997; SES-SP, 1997).
De acordo com a dependência e a restrição, a OMS classifica os cães em: supervisionados ou controlados, de família, de vizinhança ou comunitários e selvagens (WHO/WSPA, 1992). Para as duas primeiras classes, os levantamentos domiciliares permitem aferições precisas. Já as parcelas de animais que vivem soltos pelas ruas ficam com a avaliação prejudicada. As técnicas de captura e recaptura, disponíveis para o seu dimensionamento, têm como pré-requisito a marcação dos animais e a permanência em campo por vários dias, a fim de se obter os dados necessários à estimação final da população (WHO/WSPA, 1992). Algumas dessas técnicas requerem a manipulação dos animais, implicando na participação de pessoas com habilidade e especialização para contê-los e marcá-los, o que dificulta e onera os procedimentos de campo. Além disso, sua aplicação não permite identificar os animais segundo os estratos definidos pela OMS.
Considerando a importância dessas informações e as limitações das técnicas existentes, o Instituto Pasteur buscou alternativas que permitissem o dimensionamento e a classificação da população canina, a partir de estratos definidos segundo grau de dependência e restrição. Este trabalho objetiva apresentar a Técnica Pasteur São Paulo (TPSP) e sua aplicação em município do Estado de São Paulo.
Metodologia
Área de estudo
O trabalho foi realizado no Município de Serra Azul, escolhido em função do seu tamanho, do interesse da autoridade sanitária na realização do inquérito domiciliar e da ausência de atividades recentes de apreensão de cães errantes. O Município de Serra Azul localiza-se na região nordeste do Estado de São Paulo e possui 7.720 habitantes (Fundação Seade, 2001). Está dividido em nove setores censitários (trezentos domicílios em média), seis deles em área urbana. A área de estudo foi constituída por dois setores urbanos.
Estratos
Utilizou-se a seguinte classificação de cães:
a) Cães com proprietários e totalmente restritos. Conhecidos como domiciliados, são os que obtêm alimento, abrigo e cuidados gerais de um proprietário;
b) Cães com proprietários, parcialmente restritos. Conhecidos como semi-domiciliados, obtêm abrigo e alimento de um proprietário, mas, os cuidados gerais são menos rigorosos, saindo às ruas sem acompanhamento e restrições;
c) Cães sem proprietários definidos, parcialmente restritos ou irrestritos. Permanecem próximos a residências ou a estabelecimentos comerciais, sem a identificação de um único proprietário;
d) Cães sem proprietários.
Esses dois últimos grupos, compõem um único estrato na classificação proposta pela OMS, o de cães de vizinhança. Na TPSP, são considerados em separado, por se referirem a categorias para as quais podem ser indicadas medidas distintas de controle. Os cães classificados pela OMS como selvagens foram excluídos, pois dificilmente são encontrados no ambiente urbano e as informações obtidas sobre eles são, em geral, resultado de ocorrências graves com pessoas, animais ou com o meio ambiente.
Etapas do trabalho de campo
Inquérito domiciliar e entrega de coleiras
Todos os domicílios da área foram visitados e aplicou-se questionário para obter informações dos cães e seus hábitos. Com base nesses dados, foram classificados em total ou parcialmente restritos. Coleiras de cores distintas foram entregues, considerando-se o estrato em que o animal foi incluído, solicitando-se ao morador que as colocasse. Os que informaram cuidar de algum cão de vizinhança, foram orientados a colocar coleira de uma terceira cor no animal, assim que ele aparecesse em busca de alimento ou abrigo, desde que outro morador não o tivesse feito.
Na área circunvizinha à pesquisada, foram visitados todos os domicílios até 200 metros de distância, para entregar coleiras de cor diferente das distribuídas no inquérito (quarta cor), com o objetivo de excluir, no momento da contagem, os cães que não pertencessem à área de estudo.
Essa etapa foi realizada por 16 escolares, com idade variando entre 13 e 17 anos, em um único dia de trabalho. O treinamento, com oito horas de duração, em sua primeira parte constou de apresentação de aspectos relacionados à Saúde Pública e da justificativa, objetivos e instrumentos de coleta de dados da pesquisa. A segunda parte do treinamento consistiu da aplicação de questionários entre os treinandos, a fim de garantir perfeito entendimento das questões e seu preenchimento. Foi ressaltada a importância da colocação de coleiras pelos moradores e da distribuição correta das cores.
As coleiras foram confeccionadas pela Fundação de Administração Penitenciária (FUNAP), que mantém oficinas para trabalho de detentos. Foram utilizadas cintas de nylon de dois centímetros de largura, nas cores roxa, amarela e verde, destinadas, respectivamente, a cães com proprietário e totalmente restritos, com proprietário e parcialmente restritos e cães sem proprietário definido. Outra cor foi utilizada para identificação de cães provenientes da área externa à do estudo.
Contagem de cães fora dos domicílios
Os pesquisadores foram posicionados por toda a área, em locais que permitiam perfeita visualização das cores das coleiras. A distância máxima de observação foi de cinquenta metros à direita e à esquerda, ou seja, no centro de quadras de cem metros. Esses pontos foram identificados a priori. O estrato de pertinência dos cães foi identificado pela cor das coleiras, sendo que sua ausência indicou os sem proprietário.
Para que não houvesse sobreposição de áreas e conseqüentemente, duplicidade de registros, os limites da área de observação de cada pesquisador foram claramente definidos, orientando-o a não se deslocar mais de dois metros de seu ponto de observação.
O tempo de observação e registro foi de trinta segundos. Esse tempo permitiu a contagem, identificação da cor da coleira e registro em planilhas específicas, sem que o pesquisador necessitasse memorizar as informações. As contagens se repetiram a cada 15 minutos, durante uma hora, de forma a aumentar a possibilidade de registrar a circulação do número máximo de cães.
Entre as várias contagens feitas, considerou-se como resultado final aquela que indicou, dentro de cada estrato, o maior número de cães. Essa escolha foi possível pelo fato das contagens gerarem observações independentes, tanto em relação aos horários quanto aos estratos.
O início e o término do período de contagem de trinta segundos foram marcados por apitos, o que garantiu a simultaneidade das observações. Pesquisadores responsáveis por essa atividade foram posicionados em locais previamente definidos, garantindo-se que os sinais fossem audíveis por todos.
A contagem foi realizada no dia seguinte ao do inquérito para garantir a manutenção das coleiras nos cães, iniciando-se às 18:00 (horário de verão). Envolveu 85 pesquisadores, 67 destinados ao registro de dados e 18 à marcação de tempo.
O treinamento para essa atividade e a distribuição dos pesquisadores foram realizados nas três horas que antecederam o início da contagem.
Resultados e discussão
Foram registrados 103 cães circulando nas ruas, dos quais 25 eram sem proprietário definido ou sem qualquer proprietário (Tabela 1). A possibilidade de identificação desses estratos constituiu o resultado mais importante do presente trabalho, uma vez que a aplicação de outras técnicas voltadas ao dimensionamento de cães errantes não permitiriam essa separação.
Ainda na contagem fora dos domicílios, foi observado que 25 cães portavam coleiras identificadoras de restrição total, evidenciando que a classificação feita pelos donos estava equivocada e necessitava de correção. A tendência dos proprietários a referirem que seus cães não saiam à rua foi, provavelmente, devida à divulgação, na comunidade, da intenção de recolher animais soltos. Esses 25 cães foram, portanto, classificados como parcialmente restritos (Tabela 2).
Com os dados obtidos nas duas etapas de campo, inquérito e contagem, foi possível conhecer a totalidade da população canina (498 cães), o que correspondeu a uma relação cão/ habitante de 1:5. Essa proporção indica uma freqüência maior que a de 1:8, sugerida pela OMS, para países emergentes (WHO, 1992). Tal relação refere-se a países considerados como um todo, encobrindo as variações internas. A densidade de cães depende da cultura local, que estabelece padrões na interação de seres humanos com animais, do controle de mobilidade e de natalidade, e da disponibilidade de alimentos, abrigos e água, dispersos no meio ambiente.
Diversos estudos têm mostrado essas variações, como os da Cidade do México (México), 1 a 10 cães por habitante; Nigéria, 7 a 62; Estados Unidos, 6 a 10; Lima (Peru), 5 a 13; Sri Lanka, 8 a 10 e outros (Chomel, 1993; Cifuentes, 1988; Nassar, 1980; Oboegbulen & Nwakonobi, 1989). Esses autores afirmam que as diferenças encontradas estão relacionadas à organização e distribuição dos recursos necessários ao equilíbrio da dinâmica populacional canina.
Neste estudo, os cães parcialmente restritos, sobre os quais recaem as preocupações relacionadas à transmissão de doenças nas populações animal e humana, representaram 35,8% do total. O estrato de cães sem proprietário ou sem proprietário definido, correspondeu a 5% dos animais. Esse achado está dentro do esperado para municípios do Estado de São Paulo, uma vez que o Programa de Controle de Raiva recomenda a apreensão, em áreas de foco de raiva, de 1% a 5% da população canina, considerada como a faixa de cães sem controle.
O resultado obtido, como já apontado, apresenta baixa comparabilidade com outros estudos, uma vez que eles não permitem a distinção de cães com ou sem dono, dentre os encontrados na rua. Nassar et al. (1980), em trabalho realizado no Kansas (Estados Unidos), estimaram que entre os 12% de cães identificados como errantes, cerca de 1/3 não tinha proprietário. Estudo da ecologia de cães em quatro localidades da Tunísia (Wanderler et al., 1993), apontou, em três delas, percentuais entre 7 e 8,3% de cães sem proprietário e, em uma delas, 14,3%. Os autores associam esse valor à existência de grande depósito de lixo.
As diferentes condições ambientais referentes à oferta de alimento, água e abrigo interferem na densidade da população de cães sem proprietário, determinadas pela organização econômica e social de cada região. O tipo de destino de sobras e dos resíduos, as práticas culturais de interação com animais e outros fatores, também interferem na sua densidade.
Os resultados obtidos para Serra Azul são relevantes, no sentido de acrescentar uma informação desconhecida para a realidade brasileira, permitindo supor, em especial para o Estado de São Paulo, que possui dezenas de municípios de porte e condições sociais semelhantes, que esse valor possa se aplicar a diferentes cidades.
A metodologia utilizada constitui nova alternativa para estudos de campo. A TPSP se distingue das demais, que oferecem estimativas da população canina de um determinado local, sem identificar os níveis distintos de dependência e restrição. As técnicas que buscam conhecer a população canina por meio de estimativas, como a contagem direta, de remoção e de captura e recaptura partem de duas premissas. A primeira é de que a mortalidade, migração e natalidade da população em estudo sejam minimamente alteradas durante a investigação ou que fatores de correção possam ser incorporados às estimativas. Isto se justifica pelo tempo requerido de permanência em campo, que pode alterar a estrutura da população canina. A segunda premissa é que todos os indivíduos tenham a mesma chance de serem contados, em função dos procedimentos de estimação utilizados (WHO/WSPA, 1992).
A TPSP, diferentemente das técnicas citadas, foi desenvolvida para dimensionamento da população canina por meio de varreduras ou censos, que abrangem todos os estratos. Para tanto, a única premissa adotada é a de que os cães sem dono estão permanentemente nas ruas e podem ser identificados em sua totalidade. A escolha de horário de maior circulação dos animais tem o intuito de permitir que esses cães estejam mais visíveis.
Considerações finais
A TPSP permitiu classificar a população canina segundo critérios de restrição e dependência, superando dificuldades relacionadas a recursos financeiros e pessoal especializado, freqüentemente encontradas.
Desenvolvida para coletar informações de difícil acesso, permitiu ainda obtê-las com rapidez, simplicidade e baixo custo, uma vez que:
pode ser realizada por pessoal não especializado, treinado por curto período e recrutado entre a população local, evitando despesas com deslocamento e pagamento de mão de obra especializada;
trabalho de campo foi também de curta duração: um dia para o inquérito e apenas uma hora para a contagem, composta de cinco registros de trinta segundos cada;
não houve manipulação de cães pelos pesquisadores, significando menor risco de acidentes e economia em equipamento de proteção individual.
Consideramos que tais características podem permitir a utilização da TPSP em diversas realidades sócio-econômicas, possibilitando informações valiosas para o desenvolvimento de programas de controle de doenças, que têm o cão como reservatório ou hospedeiro.
Agradecimentos
À Dra. Neide Yumie Takaoka, Diretora do Instituto Pasteur, São Paulo, Brasil, que propôs este estudo, pela contribuição para o desenvolvimento do trabalho e pelo suporte institucional. Aos estudantes de Serra Azul, pela participação nos trabalhos de campo. Ao Professor Dr. Fernando Motta de Azevedo Correa e ao Dr. Luiz Carlos Meneguetti, pelas sugestões.
Referências
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Recebido em 19 de abril de 2001
Versão final reapresentada em 30 de novembro de 2001
Aprovado em 26 de abril de 2002