ARTIGO
Drogas e saúde na imprensa brasileira: uma análise de artigos publicados em jornais e revistas
Drugs and health in the Brazilian press: an analysis of articles published in newspapers and magazines
Ana Regina Noto1; Murilo C. Baptista1; Silene T. Faria1; Solange A. Nappo1; José Carlos F. Galduróz1; Elisaldo A. Carlini1
Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, Departamento de Psicobiologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo. Rua Botucatu 862, São Paulo, SP 04023-062, Brasil
RESUMO
O presente estudo analisa as informações que a imprensa escrita vem divulgando atualmente no Brasil sobre as implicações do uso de drogas para a saúde. Por meio de análise de conteúdo, foi pesquisada uma amostra de 502 artigos divulgados ao longo do ano de 1998 em jornais e revistas. Entre os psicotrópicos mais evidenciados nas manchetes, destacaram-se o cigarro comum (18,1%), derivados da coca (9,2%), maconha (9,2%), bebidas alcoólicas (8,6%) e anabolizantes (7,4%). Em contrapartida, os solventes, que são os psicotrópicos mais usados no Brasil (excetuando-se o álcool e o tabaco), foram evidenciados em apenas um artigo. Esses dados indicam um descompasso entre o enfoque jornalístico e o perfil epidemiológico do consumo de psicotrópicos no Brasil. A dependência foi a conseqüência mencionada com maior freqüência nos artigos (46%), seguida de violência (9,2%), síndrome de abstinência (8,0%) e AIDS (6,8%). Os artigos apresentaram diferentes enfoques de acordo com a droga em questão; por exemplo, enquanto para a maconha prevaleceram os artigos sobre o seu uso terapêutico e a descriminalização, para a cocaína predominaram temas relacionados aos danos decorrentes do uso, ao tratamento e à repressão.
Palavras-chave: Psicotrópicos; Abuso de Drogas; Meios de Comunicação; Jornais
ABSTRACT
This article analyzes information recently published by the Brazilian press on the use of psychoactive drugs and its implications on health. A sample of 502 newspaper and magazine articles published in 1998 was researched using content analysis. The drugs most frequently featured in the headlines were tobacco (18.1%), coca-derived drugs (9.2%), marijuana (9.2%), alcoholic beverages (8.6%), and anabolic steroids (7.4%). Solvents were featured in only one article, although they are the most commonly used drug in Brazil, second only to alcohol and tobacco. These data indicate an imbalance between the journalistic approach and the epidemiological profile of psychoactive drug consumption in Brazil. Dependence was the most frequent consequence mentioned in the articles (46%), followed by violence (9.2%), withdrawal syndrome (8.0%), and AIDS (6.8%). The focus of the articles varied according to the drug in question. While articles on marijuana focused on its therapeutic use and legalization, those on cocaine-related issues discussed both the damage caused by consumption as well as various interventions (treatment and repression).
Key words: Psychotropic Drugs; Drug Abuse; Communications Media; Newspapers
Introdução
O tema "drogas" envolve várias questões que vão além da saúde, como, por exemplo, tráfico, violência, delinqüência, aspectos morais, entre outros. Dessa forma, a população recebe, pelos meios de comunicação, informações contraditórias em alguns aspectos. Um evidente descompasso diz respeito ao conjunto de informações sobre "drogas ilícitas" (maconha, cocaína, entre outras) em comparação às "lícitas" (álcool e tabaco). De um lado, a população recebe uma série de informações sobre a violência relacionada ao tráfico e sobre os "perigos das drogas" e, de outro, é alvo de sofisticadas propagandas para estímulo da venda de bebidas alcoólicas e de cigarro. Nesse contexto, esses grupos de "drogas", semelhantes em vários aspectos farmacológicos, passam a ser encarados de modo distinto pela opinião pública, gerando posturas extremamente incoerentes sob a ótica da saúde.
Além dessa questão, também merece destaque um posicionamento histórico da mídia sobre as "drogas ilícitas". No fim da década de 70, em função do movimento norte-americano de "guerra às drogas" e da carência de estudos epidemiológicos brasileiros, a imprensa nacional começou a divulgar uma série de especulações sobre uma suposta "explosão" do uso de "drogas ilícitas", como maconha, cocaína, ácido lisérgico (LSD) e heroína, sobretudo entre estudantes brasileiros (Carlini-Cotrim et al., 1995). Os primeiros estudos epidemiológicos realizados no Brasil no fim da década de 80 mostraram que, até aquele momento, a realidade era muito diferente da alardeada pela imprensa: o número de estudantes usuários de substâncias ilícitas era relativamente pequeno e estável. No entanto, alguns anos mais tarde, no início da década de 90, o número de usuários de maconha e cocaína de fato começou a aumentar, passando a justificar um posicionamento um pouco mais alarmista (Galduróz et al., 1997; Noto, 1999).
O fato de a imprensa ter alardeado um aumento do uso de alguns psicotrópicos anos antes de acontecer poderia ser encarado de várias maneiras: a mídia como indutora do uso (incentivando o uso pelo excesso de informações); a mídia como indicador epidemiológico (teria sido capaz de detectar um fenômeno antes que este fosse mensurado pela epidemiologia); e poderia se tratar de um mero acaso, com fatos relativamente independentes (sem relação direta de causa-efeito), entre outras possibilidades. No entanto, uma vez que ainda são raros os estudos científicos sobre a informação que a imprensa vem divulgando sobre o tema (Carlini-Cotrim et al., 1995), torna-se difícil estabelecer um paralelo de comparação adequado entre imprensa e epidemiologia relacionada ao uso de psicotrópicos.
Portanto, considerando a importância da mídia na área de saúde e, além disso, a carência de estudos sobre o tipo de informação que vem sendo divulgado sobre drogas, torna-se fundamental a realização de pesquisas que busquem subsidiar discussões sobre o tema. Nesse sentido, o presente estudo teve por objetivo analisar as informações veiculadas ao longo do ano de 1998, nos principais meios de comunicação escrita no Brasil, sobre a saúde relacionada ao uso de drogas.
Metodologia
Amostragem
O levantamento dos artigos foi conduzido pela Lupa Clipping, empresa especializada em clipping de artigos publicados em jornais e revistas do País. Para o presente estudo, foram adquiridos dessa empresa os artigos que discorriam sobre saúde, publicados no período de janeiro a dezembro de 1998. Posteriormente, foi realizada uma nova triagem, tendo sido selecionadas apenas as matérias referentes ao tema "drogas" divulgadas nos seguintes meios de comunicação:
a) jornais de abrangência estadual (Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Jornal do Estado Curitiba, Paraná; O Povo Fortaleza, Ceará; A Crítica Manaus, Amazonas, entre outros);
b) revistas de abrangência nacional (Veja, Isto É, Criativa, Época, entre outras).
Organização e classificação do material
Foi realizada uma classificação preliminar, tendo como referência o tema destacado nas manchetes:
a) para os artigos cuja manchete enfatizava alguma droga em especial (65,1%), como tabaco, álcool, maconha, cocaína, entre outros: a classificação foi realizada com base na(s) droga(s) em questão;
b) para os que mencionavam termos gerais (34,9%), como "drogas", "psicotrópicos", "entorpecentes" ou "tóxicos", sem especificar um psicotrópico em especial: a classificação foi feita com base no assunto destacado na manchete (como prevenção, políticas públicas, tratamento, entre outros).
Análise de conteúdo
Uma vez organizados, todos os artigos selecionados foram submetidos a uma análise de conteúdo detalhada. A análise de conteúdo é definida como uma técnica de tratamento de dados de pesquisa voltada para uma descrição objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo de "comunicações" (textos, entrevistas, entre outros). Dessa forma, embora tenha suas origens na pesquisa quantitativa, busca a interpretação de materiais de caráter qualitativo (Minayo, 1998).
A análise foi iniciada a partir de uma "leitura flutuante" dos artigos. É denominado "leitura flutuante" o primeiro contato do analista com os documentos em estudo, que visa a obter "impressões e orientações" a respeito dos mesmos (Bardin, 1977).
Ao longo desse processo de leitura dos artigos, foram selecionados alguns temas considerados mais relevantes para investigação. Esses temas serviram de base para a elaboração de uma ficha-padrão ("Planilha de análise de conteúdo") para a análise individual de cada artigo.
A planilha contemplou os seguintes tópicos: (a) temas centrais (da manchete e do texto); (b) personagens (faixa etária, sexo, grupos específicos, relação com a droga); (c) droga (papel e conseqüências); (d) intervenções mencionadas (legislação, repressão, prevenção, redução de danos e/ou tratamento); (e) enfoque do artigo (eventual tendenciosidade e conseqüências privilegiadas); (f) fonte das informações divulgadas; (g) autoria do artigo.
A análise foi realizada por uma equipe composta de uma jornalista, uma publicitária, um psicólogo e uma farmacêutica. Com o objetivo de minimizar a subjetividade da avaliação, foi estabelecido um fluxograma de análise em duplicata. Dessa forma, um mesmo artigo foi analisado distintamente por dois analistas, com posterior confronto dos pareceres. As divergências foram pouco freqüentes, mas, quando ocorreram, os analistas abriam discussão em busca de consenso. Nos raros casos em que as divergências detectadas não foram sanadas durante o confronto (1,2% dos artigos), os artigos em questão foram encaminhados para uma terceira avaliação. Para cada artigo, após o confronto, foi preenchida uma planilha final, a qual foi encaminhada para digitação e posterior tabulação dos dados.
Resultados
Foram contados 502 artigos que estavam de acordo com as especificações estabelecidas para o presente estudo, ou seja, artigos que envolviam o tema drogas dentro da perspectiva da área de saúde, veiculados no ano de 1998. Os artigos sobre drogas representaram 7% do total de artigos relacionados a saúde.
A Figura 1 apresenta a classificação geral dos artigos, realizada com base nas manchetes. Cerca de um terço das manchetes não mencionava nenhum psicotrópico em especial, utilizando termos gerais como "drogas", "tóxicos", "vício". Entre as demais, o tabaco foi o psicotrópico destacado com maior freqüência (18,1%), seguido de derivados da coca (9,2%), maconha (9,2%), álcool (8,6%) e anabolizantes (7,4%). Alguns psicotrópicos, embora usados com freqüência pela população, apareceram em um número muito pequeno de manchetes, como foi o caso dos ansiolíticos (0,8%) e dos solventes (0,2% um único caso), inclusive com valores muito inferiores comparados a drogas menos usadas no Brasil, como a heroína (2,9%) e os alucinógenos (1,4%).
Características gerais dos artigos
A grande maioria (90,8%) dos artigos foi extraída de jornais (os quais, em geral, são diários e de abrangência estadual), predominantemente das Regiões Sudeste (72,5% em especial dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro) e Sul (8,0%). Apenas 9,2% dos artigos eram de revistas, as quais, em geral, são mensais e de abrangência nacional. Cerca de metade dos artigos estava apresentada em um quarto de página (51,2%), seguida dos artigos de meia página (20,5%). Também foram observados artigos de página inteira (12,5%), algumas notas (9,0%) e artigos de duas ou mais páginas (6,6%).
As fontes das informações citadas nos artigos foram diversificadas, sendo freqüentes os depoimentos de profissionais (60,4% médicos, delegados, educadores, entre outros) e/ou especialistas na área de estudo (41,2%), assim como pesquisas científicas (53,4%), leis e/ou políticas públicas (26,1%) e depoimentos de usuários (17,7%). A maioria dos artigos mencionou ao menos uma fonte nacional, mas aproximadamente metade referiu também fontes internacionais (na maior parte, pesquisas e políticas). Os artigos, em geral, referiram mais de uma fonte, muitas vezes mesclando relatos de profissionais e/ou especialistas sobre determinado acontecimento com dados de pesquisa, leis e/ou depoimentos de usuários.
Para os psicotrópicos, tanto lícitos como ilícitos, a maioria dos artigos privilegiou os prejuízos decorrentes do uso (80,3% Tabela 1). A única exceção foi a maconha, para a qual predominaram artigos referentes aos benefícios terapêuticos de seu uso (54,3% dos artigos sobre maconha).
A dependência foi a conseqüência para a saúde mencionada com maior freqüência, citada em cerca de metade da amostra (46%). Outros prejuízos também foram apresentados, como violência (brigas/roubos 9,2%), síndrome de abstinência (8,0%), HIV/AIDS (6,8%), overdose (5,8%), acidentes de trânsito ou trabalho (5,6%), entre outros. No que diz respeito aos benefícios, o uso terapêutico foi o mais freqüente, citado em 58 artigos (11,6% do total), os quais, na maioria, versavam sobre medicamentos (ansiolíticos, anfetaminas, entre outros) ou sobre substâncias da maconha.
Foram variadas as intervenções citadas como alternativas para lidar com o uso indevido de drogas (Tabela 2). O tratamento foi a intervenção mais citada (33,5% dos artigos), sendo a internação e o uso de medicamentos as opções mais freqüentes. Os aspectos relacionados à legislação foram comentados em 26,0% das matérias. A prevenção, mencionada também em 26% dos artigos, na maioria das vezes foi apresentada vinculada ao ambiente escolar e privilegiando a "informação" como medida preventiva. Entre os poucos artigos que mencionaram a redução de danos (6,8%), predominaram temas sobre a prevenção da transmissão do HIV. Para a repressão (citada em 23,5%), os enfoques se dividiram entre repressão ao tráfico/traficante e ao uso/usuário.
A ênfase emocional
Embora os jornalistas escrevam textos aparentemente isentos, é notória a tendenciosidade dos temas abordados. Essa ênfase se torna mais evidente nos textos elaborados por outros profissionais e/ou especialistas (advogados, médicos, delegados, entre outros), os quais incluem seus julgamentos pessoais, retratando a situação de forma alarmante, usando expressões como "Trata-se de um abismo...", "O uso de drogas... é um bom exemplo do horror..." (por um psicanalista), "o flagelo da droga" (por um economista), entre outras.
Artigos sobre cigarro (tabaco)
A maioria das manchetes dos artigos sobre o tabaco fez referência a danos, como, por exemplo: "Os Malefícios do Fumo" (Estado de Minas Gerais, 1998), "Morte pelo Tabaco Crescerá" (Diário do Comércio, 1998), "Filho de Fumante Sofre Mais de Asma" (O Globo, 1998a). Também foram freqüentes os artigos sobre políticas antitabagistas, "dicas" ou tratamentos para parar de fumar: "Serra Aperta o Cerco contra Fumantes" (Schuffner & Gonçalves, 1998), "Ministério Processará Fabricantes de Cigarro" (Zero Hora, 1998), "Sem Fumaça: Técnicas Mais Eficientes para Abandonar o Cigarro" (Veja, 1998),"O Que Fazer para Largar o Cigarro?" (Boa Forma, 1998).
O tabaco foi apresentado como prejudicial em quase todos os artigos, sendo que a dependência e as complicações orgânicas, especialmente pulmonares e cardiovasculares, foram as conseqüências mais citadas. As intervenções destacadas foram as relacionadas à legislação (em geral, voltada para o aumento da restrição ao uso), mas vários artigos também comentaram sobre tratamento e prevenção. Os fumantes foram caracterizados nos artigos como adultos (alguns adolescentes) de ambos os sexos, dependentes do cigarro e sem definição de classe social ou grupo específico.
Artigos sobre bebidas alcoólicas
A maior parte dos artigos enfatizou os riscos, apresentando manchetes como: "Beber Sim, Sem Exagero" (Revista Corpo a Corpo, 1998), "Álcool Reduz a Fertilidade Feminina" (O Tempo, 1998), "Sinal Vermelho para Alcoolismo no Trânsito" (Gazeta Mercantil, 1998). As conseqüências prejudiciais mais citadas foram dependência, acidentes e violência em geral.
Também foram freqüentes os artigos sobre dados epidemiológicos ("65% de Alunos de Escola Pública Bebem" Dimenstein & Krausz, 1998) e tratamento do alcoolismo ("Pílula Promete Combater o Alcoolismo" Zolini, 1998). Alguns artigos destacaram os benefícios do vinho ("Vinho Reduz Taxa de Colesterol" Moreira, 1998).
Na maioria dos artigos foi observada a presença de personagens caracterizados, em geral, como adultos de ambos os sexos e sem definição de classe social ou grupo específico. A relação dos personagens com o álcool foi variada, com casos de embriaguez (em geral, relacionada a acidentes), abuso, dependência e/ou uso recreativo. A intervenção mais citada foi o tratamento do alcoolismo, mas também foram observados artigos sobre legislação e prevenção.
Artigos sobre maconha
O conteúdo dos artigos relacionados à maconha foi muito diferenciado dos demais. As Figuras 2 e 3 representam um exemplo da diferença do perfil dos artigos sobre maconha em comparação aos sobre cocaína. Em grande parte das matérias, a maconha foi apresentada como uma droga relativamente segura ou até mesmo benéfica, no caso dos artigos que mencionaram a possibilidade de seu uso terapêutico (54,3%). Algumas das manchetes que exemplificaram essa postura foram:"A OMS Adverte: Maconha é Menos Prejudicial do que Álcool e Tabaco" (Isto É, 1998),"Descobertos Benefícios da Maconha" (Diário Popular, 1998), "Califórnia Vai Distribuir Maconha para Doentes" (O Globo, 1998b), "Um Remédio Extraído da Maconha" (Jornal do Brasil, 1998).
Poucos artigos apresentaram personagens. As intervenções mais mencionadas foram os aspectos legais (32,6%), em especial os debates sobre descriminalização da maconha.
As fontes de informação, na maioria, foram de origem internacional (86,9%), obtidas de relatórios, pesquisas científicas e/ou políticas.
Artigos sobre derivados da coca (cocaína, crack e merla)
Os derivados da cocaína foram alvo de um grande número de artigos, os quais enfatizaram os prejuízos do uso, exemplificados como "Cocaína Aumenta Risco ao Coração" (Correio Braziliense, 1998), "Os Perigos do Crack" (Soares, 1998) ou "A Fama que Virou Fumaça" (Velloso, 1998 sobre a dependência de crack do ex-cantor Rafael do conjunto "Polegar").
Também foram vários os artigos sobre o aumento do consumo na população ("Cresce Consumo de Cocaína e Crack em Curitiba" Oliveira, 1998; "Aumenta o Consumo de Merla em Brasília" O Estado de São Paulo, 1998) ou outros temas ("Droga Pode Ajudar Viciados em Cocaína" Folha de São Paulo, 1998a), entre outros.
Cerca de metade das matérias apresentou personagens caracterizados, em geral, como adultos (alguns adolescentes e crianças) e, quando privilegiado algum sexo, com predominância do masculino. Também foi observado que, quando definida a classe social, foram mais freqüentes as classes baixa e/ou média baixa, envolvendo sobretudo a população de rua. Normalmente, a relação dessas pessoas com a droga era de dependência. As intervenções mais freqüentes foram as relacionadas a tratamentos para dependência de cocaína (45,6%, em geral, mencionando indivíduos que estavam em tratamento) e/ou repressão (34,8%, especialmente sobre apreensões).
Artigos sobre anabolizantes
Embora os anabolizantes não sejam classificados como psicotrópicos, os artigos sobre essas substâncias foram incluídos no presente estudo em função de seu potencial de abuso. Os artigos destacaram o aumento do uso e os riscos dele decorrentes entre atletas que buscam a droga para obter um melhor desempenho ou por vaidade. Algumas das manchetes foram: "As Drogas que Fortalecem, Embelezam e Matam" (O Globo, 1998c); "Os Riscos do Uso de Anabolizantes: Os Adolescentes Consomem Muito" (Cantanhede, 1998); "Mulheres Apelam para Anabolizantes" (Lima, 1998); "Anabolizante é Bomba Perigosa" (Bouer, 1998).
Os anabolizantes representaram a categoria com maior freqüência de personagens, inclusive com fotos (de atletas). Estes, em geral, foram caracterizados como adultos esportistas. Não foi observada definição de classe social e, para os artigos que definiram sexo, o predominante foi o masculino. As intervenções mencionadas ficaram apenas no campo da legislação e/ou da repressão, na maioria das vezes em função da detecção de anabolizantes entre esportistas (doping). Não foram observados comentários sobre medidas preventivas ou tratamento.
Artigos sobre anfetaminas/anorexígenos
O número de artigos sobre anfetaminas/anorexígenos foi relativamente pequeno, comparado ao consumo dessas substâncias pela população. No entanto, os artigos denunciam um aumento do uso mediante manchetes como: "Consumo de Anfetaminas Cresce 1.400%" (Lozano & Souza, 1998).
As anfetaminas foram apresentadas como alternativa para tratamento da obesidade ("Saiba Mais sobre o Novo Remédio para Emagrecer" Emmiély, 1998), e alguns artigos mencionaram possíveis prejuízos à saúde, especialmente a dependência ("Remédio é Opção e Dilema para Obeso" Bosco, 1998; "Inibidores de Apetite: Perigo para o Cérebro" Vilar, 1998).
Em geral, os artigos foram acompanhados de personagens caracterizados como adultos de ambos os sexos (sendo a menção ao sexo feminino superior à observada para os demais psicotrópicos), sem classe social definida e que fazem uso terapêutico dessas substâncias. Quando mencionadas, as intervenções, na maioria, foram referentes à repressão ao comércio.
Artigos sobre heroína
Dos 15 artigos divulgados no ano de 1998, dez foram veiculados em um único mês (março), todos fazendo referência a uma suposta "explosão" do uso de heroína no Brasil ("Heroína Passa de Mito a Ameaça Real no País" Rydle & Wassermann, 1998; "A Heroína Desembarca no Rio" Duart, 1998; "Consumo de Heroína Cresce no País" Folha de São Paulo, 1998b).
O papel da droga foi apresentado como prejudicial, com enfoque no desenvolvimento de dependência, na síndrome de abstinência e nos riscos de overdose e AIDS.
A maioria dos personagens mencionados nos artigos é de adultos e adolescentes, de classe alta ou média alta e dependentes da droga; nos artigos que privilegiaram algum sexo, foi observada predominância do feminino.
Discussão
Considerações sobre as características gerais dos artigos
Vale ressaltar que o presente estudo envolveu apenas artigos sobre drogas e saúde. As matérias que abordavam exclusivamente apreensões de drogas, prisões e/ou situações de violência relacionadas ao tráfico não foram contempladas. Portanto, o número total de artigos sobre drogas não está completo, em particular no que diz respeito às drogas ilícitas, como a cocaína, o crack e a maconha, que são alvo de numerosos artigos sobre o tráfico (Carlini-Cotrim et al., 1995).
Outra peculiaridade que merece consideração diz respeito ao perfil da amostra obtida. A maioria dos artigos foi extraída de jornais veiculados nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, indicando a maior freqüência de matérias sobre o tema nos meios de comunicação desses Estados. Por outro lado, essa distribuição desproporcional também acarreta a necessidade de uma leitura criteriosa dos dados obtidos no presente estudo, os quais não devem ser generalizados para o Brasil.
O retrato da situação sob a ótica da imprensa brasileira
As drogas mais freqüentes nas manchetes foram: tabaco (18,1%), derivados da coca (9,2%), maconha (9,2%) e álcool (8,6%), com menor destaque para anfetaminas (3,2%), ansiolíticos (0,8%) e solventes (0,2%). No entanto, quando levamos em conta a prevalência do uso de drogas na população, o quadro é diferente. O álcool é o psicotrópico mais consumido pela população brasileira e o responsável pelos maiores índices de problemas decorrentes do uso, contexto este que justificaria sua primeira colocação no ranking da imprensa (ABDETRAN, 1997; Galduróz et al., 2000; Noto, 1999).
Em relação aos solventes, estudos realizados entre populações jovens (estudantes do ensino fundamental e médio e jovens em situação de rua) têm demonstrado um consumo elevado; no entanto, somente 9,1% dos artigos mencionaram essas substâncias, dos quais apenas um destacou um solvente (lança-perfume) em sua manchete (Galduróz et al., 1997; Noto et al., 1997). Paralelamente, os estudos epidemiológicos também têm indicado um consumo abusivo de determinados medicamentos psicotrópicos, sobretudo de anfetaminas e ansiolíticos (Nappo et al., 1998). Todavia, a freqüência de artigos sobre esses psicotrópicos foi relativamente pequena.
Embora não seja possível estabelecer a freqüência ideal de artigos, ao menos seria esperado que houvesse uma distribuição mais equilibrada, compatível com os indicadores epidemiológicos. No entanto, os psicotrópicos ilícitos acabam ofuscando o panorama de conseqüências decorrentes dos lícitos. Vale lembrar ainda que não foram considerados os artigos sobre o tráfico de entorpecentes, o que determinaria um número ainda maior de artigos sobre as "drogas ilícitas" (em particular maconha, cocaína e crack). Essa desproporção reflete-se diretamente na percepção da população, distorcendo as crenças relativas ao uso de psicotrópicos no País. Infelizmente, essa visão ofuscada parece não ocorrer apenas entre a população leiga, atingindo diferentes segmentos, alguns deles, inclusive, responsáveis pelas políticas públicas.
A ênfase "emocional" estampada nos artigos jornalísticos é outro fator que merece atenção, principalmente por ter sido observada com maior freqüência nos textos de "especialistas" que lidam com a questão no seu cotidiano (advogados, médicos, entre outros). Esse dado é um indicador do quanto o discurso sobre drogas recebe o tom "emocional" nos mais diferentes setores da sociedade. No entanto, essa ênfase não parece ser peculiaridade das drogas ilícitas na imprensa brasileira, sendo observada para os psicotrópicos em geral, inclusive medicamentos, também em outros países (Hillert et al., 1996).
As substâncias psicotrópicas e as ondas de intolerância x tolerância
Um dos resultados interessantes do presente estudo refere-se à observação de estereótipos diferenciados para cada categoria de psicotrópico. Por exemplo, a heroína é apresentada na imprensa brasileira como um suposto problema crescente no País; a cocaína, como um problema já instalado, responsável por inúmeros casos de dependência e de violência; e a maconha, como uma droga relativamente segura, de uso consumado e aberto para negociações na legislação relativa ao seu uso.
Esses diferentes enfoques merecem uma reflexão histórica, uma vez que, ao longo dos anos, os psicotrópicos parecem sofrer ciclos de tolerância x intolerância, que variam de acordo com o contexto histórico e social (Carlini-Cotrim, 1995). Voltando cerca de cem anos na história, encontramos um retrato muito diferente do observado no presente. No início do século passado, o "vinho de coca do Peru" era amplamente usado como medicação revigorante e a heroína era comercializada livremente como sedativo para a tosse. Já o álcool sofria sua pior onda de intolerância norte-americana, a qual culminou na famosa "Lei Seca" (Carlini et al., 1996; Carlini-Cotrim, 1995).
Nos anos subseqüentes, essa postura foi sendo modificada e, por volta da década de 80, foi observada em diversos países uma onda de intolerância acentuada em relação a algumas drogas, especialmente cocaína, heroína e maconha. Nos Estados Unidos, a "guerra às drogas" chegou a ser prioridade de governo (Carlini-Cotrim, 1995).
Os dados obtidos no presente estudo mostram que essa onda de intolerância acentuada ainda impera para algumas drogas, em particular para os derivados da coca (cocaína, crack e merla). A mídia geralmente apresenta essas drogas associadas a casos dramáticos de dependência ou situações de violência, somados a uma tendência de crescimento do consumo.
No que diz respeito à maconha, por volta da década de 70, os artigos eram exclusivamente intolerantes, inclusive associando o seu uso a atividades politicamente subversivas (Carlini-Cotrim et al., 1995). No entanto, voltando aos tempos atuais, observamos um processo gradativo de tolerância, abrindo espaço para debates sobre a descriminalização e o uso terapêutico (Lefèvre & Simoni, 1999). Esse novo discurso é "saudável", uma vez que propicia um debate menos emocional e mais realista da questão, mas requer cautela no que diz respeito à sua interpretação (Noto et al., 1995). Embora o assunto seja a descriminalização, esta muitas vezes é interpretada como liberação e, apesar de a ciência ponderar o uso médico controlado de algumas substâncias presentes na Cannabis, muitas vezes a imprensa brasileira generaliza para o uso social da droga, usando manchetes como "Descobertos os Benefícios da Maconha" (Diário Popular, 1998), "Maconha Contra Derrame" (Época, 1998), entre outras. Nesse sentido, uma vez que a droga ainda é considerada ilícita no Brasil e, portanto, os meios para sua aquisição são clandestinos, a "dupla mensagem" (proibição enfática x discurso tolerante) pode soar de forma confusa, especialmente entre os jovens.
Por outro lado, vale comentar o destaque da imprensa a um suposto início do consumo indiscriminado de heroína no País, por meio de manchetes como "A Heroína Passa de Mito a Ameaça Real no Brasil" (Rydle & Wassermann, 1998), divulgadas em meados de março de 1998. Ao contrário, os estudos epidemiológicos até então realizados não apontaram nenhum dado que pudesse fundamentar tal alarde. Nesse sentido, poderíamos levantar pelo menos duas hipóteses para explicar essa divergência: a imprensa e alguns profissionais da área poderiam estar utilizando referenciais ainda não mensuráveis pela epidemiologia, como, por exemplo, um uso restrito a determinados estratos sociais, ou poderíamos estar diante de um mito (Noto, 1999).
A mídia como instrumento de prevenção
Os dados epidemiológicos recentes sugerem o fracasso das intervenções preventivas até então estabelecidas no Brasil, especialmente no que diz respeito às "drogas ilícitas". O consumo de algumas drogas, sobretudo maconha e cocaína, cresceu bastante ao longo da última década. Essa constatação sugere a necessidade da implementação de outras alternativas preventivas ainda pouco exploradas (Carlini et al., 1996; Galduróz et al., 1997; Noto, 1999; Noto et al., 1997).
Apesar de diversos estudos apontarem os limites das intervenções preventivas puramente informativas sobre o uso de drogas, parece ser inegável a importância de seu papel. Os meios de comunicação têm prestado auxílio a vários programas de saúde, seja por meio de informações jornalísticas ou de campanhas publicitárias elaboradas com essa finalidade específica. No entanto, quando se trata do uso indevido de drogas, os recursos da mídia vêm sendo pouco estudados e explorados como instrumentos de prevenção e, portanto, merecem maior atenção, uma vez que a utilização de tais recursos, aliada a outras medidas de prevenção, pode representar uma interessante alternativa a ser considerada nos próximos anos (Mirzaee et al., 1991).
Dentro desse contexto, torna-se essencial o estabelecimento de parcerias entre os profissionais interessados, em particular jornalistas e especialistas em prevenção ao uso indevido de drogas, para que se possa abrir debate sobre a questão.
Agradecimentos
O presente estudo foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Referências
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Recebido em 19 de abril de 2001
Versão final reapresentada em 10 de dezembro de 2001
Aprovado em 1 de julho de 2002
1 Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, Departamento de Psicobiologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo. Rua Botucatu 862, São Paulo, SP 04023-062, Brasil