ARTIGO ARTICLE
Resistência a isoniazida e rifampicina e história de tratamento anterior para tuberculose
Isoniazid and rifampicin resistance and prior treatment for tuberculosis
Sonia NatalI, II; Joaquim Gonçalves ValenteIII; Alexandra Roma SánchezIV; Maria Lúcia Fernandes PennaII
ICentro de Referência Professor Hélio Fraga, Fundação Nacional de Saúde. Estrada do Curicica 2000, Rio de Janeiro, RJ 22710-552, Brasil. sonianatal@uol.com.br
IIDepartamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil. sonata@ensp.fiocruz.br
IIIDepartamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil
IVSanatório Penal, Superintendência de Saúde, Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro. Estrada do Guandu do Sena 1900, Rio de Janeiro, RJ 21854-002, Brasil
RESUMO
Em um estudo caso-controle, realizado no Rio de Janeiro, em 1994, foram incluídos 552 doentes de tuberculose com cultura positiva para Mycobacterium tuberculosis. A resistência a rifampicina e isoniazida foi de 1,8%. A variável de exposição foi "história de tratamento para tuberculose", associada estatisticamente com a resistência. Testou-se a hipótese de não haver dependência entre as associações observadas de acordo com a exposição anterior às drogas, utilizou-se a proporção binomial verificando-se uma dependência das resistências entre a rifampicina e isoniazida superior à esperada.
Palavras-chave: Tuberculose; Fatores R; Resistência Microbiana a Drogas
ABSTRACT
A case-control study in Rio de Janeiro in 1994 included 552 patients with a positive culture for Mycobacterium tuberculosis and reported a 1.8% resistance rate to rifampicin and isoniazid. Prior treatment for tuberculosis (the exposure factor) was associated with resistance. The binomial proportion was used to test the hypothesis of no dependence between the observed associations based on prior exposure to the drugs. This test showed a greater than expected dependence between resistances to rifampicin and isoniazid.
Key words: Tuberculosis; Factors R; Microbial Drug Resistence
Introdução
O Brasil é um dos 22 países com maior carga de tuberculose no mundo, sendo incluído entre aqueles priorizados pela iniciativa The Stop-Tb Partnership (STOP-TB). Em 1999, foram notificados 78.070 casos novos de tuberculose no país, correspondendo a uma incidência de 47,62 por 100 mil habitantes (Natal, 2000).
Em 1980, o Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) implantou o esquema de curta duração, auto-administrado. Entre as vantagens apresentadas no esquema de curta duração, destacava-se a utilização de duas drogas combinadas, rifampicina (R) e isoniazida (I), em uma única apresentação.
Esta combinação das drogas tinha como finalidade prevenir a resistência adquirida, ao evitar a monoterapia.
A primeira fase de tratamento é feita com a R, I e a pirazinamida (Z), cada uma das drogas agindo de maneira mais específica nas populações bacilares. Segundo Mitchison (1998), o início da ação bactericida da R é retardado em relação ao da I, que começa agir rapidamente. Esta diferença levaria a uma "monoterapia", pois, durante um período inicial, a população bacilar com alta atividade metabólica estaria sob ação de apenas uma droga, já que a Z teria pouca atividade neste tipo de população bacilar. O resultado seria semelhante ao da monoterapia por erro de ingestão das drogas, selecionando bacilos resistentes. A cada reinício de tratamento, o processo se repetiria. Desta maneira, como pensado anteriormente, a combinação das drogas não evitaria totalmente um período de "monoterapia", sob o ponto de vista da farmacocinética.
O tratamento supervisionado vem sendo recomendado no Brasil, mas ainda se encontra restrito em termos de cobertura. Na cidade do Rio de Janeiro, onde este trabalho é realizado, a supervisão só ocorre em caráter experimental.
Material e métodos
Realizou-se, no Município do Rio de Janeiro um estudo caso controle. De maio a julho de 1994, entrevistaram-se todos os pacientes que iniciaram ou reiniciaram tratamento ou retratamento nos 23 centros municipais de saúde. Os pesquisadores coletaram também escarro para cultura e teste de sensibilidade dos pacientes. A entrevista foi realizada pelo tisiologista responsável pelo diagnóstico durante a consulta anterior ao início do tratamento. Estes médicos foram treinados para este fim em reunião de quatro horas realizada pela coordenação do estudo. Foram incluídos doentes com tuberculose pulmonar, confirmados pela cultura do escarro, maiores de 15 anos e de ambos os sexos. (Natal, 2000). Todas as exclusões e recusas foram estabelecidas antes da determinação do critério de inclusão ser positivo (cultura positiva) e, portanto, antes da definição dos grupos de estudo (caso ou controle).
Foram considerados caso os doentes que apresentaram resistência a pelo menos a uma das drogas testadas para a sensibilidade, e controle os que apresentaram sensibilidade a todas as drogas testadas. O fator de risco considerado foi o tratamento anterior para tuberculose. A amostra total obtida foi de 552 doentes, com 83 casos e 469 controle, sendo 115 pacientes com relato de tratamento anterior, 32,1% mulheres (idade média de 30,4 anos) e 67,9% homens (idade média de 36,9 anos).
Para avaliar a confiabilidade da informação sobre história de tratamento anterior, verificou-se, no arquivo de casos de tuberculose da Secretaria Municipal de Saúde, a presença de outra notificação ou dados da mesma notificação que indicassem início de tratamento para tuberculose nos últimos cinco anos.
Utilizou-se o programa de computador Statistica, da Statsoft, na análise.
Resultados
Primeiramente, testou-se a concordância da informação de tratamento anterior. As perguntas aplicadas foram: "O Sr. já havia realizado tratamento para tuberculose?" e "Qual o tipo de alta que o Sr. recebeu?". As respostas dadas pelo doente foram comparadas com registros de notificação da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (Natal, 2000).
Na Tabela 1, estão apresentados os resultados da primeira pergunta. Verificou-se uma excelente concordância, de 97,1%.
A distribuição quanto ao fator de risco história de tratamento para tuberculose, a idade média no grupo de 115 pacientes que haviam relatado tuberculose no passado foi de 36,5 anos, e, nos 437 doentes que não relataram, foi de 34,3.
Na Tabela 2, estão as informações sobre o tipo de alta (cura ou abandono) ou de tratamento anterior. Verificou-se uma baixa concordância (Kappa = 0,45).
O padrão da resistência, observado no estudo, é apresentado na Tabela 3. Como esperado, o risco de resistência entre os doentes com tratamento anterior foi praticamente 3 vezes maior que os que não haviam sido tratados. Para a multidroga-resistência (considerada a MDR-Tb quando resistente a R e I), a exposição prévia aumenta em 7 vezes, com relação aos não expostos (Natal, 2000).
Dado o resultado apresentado na Tabela 3, mostrando um aumento do OR quando considerada a resistência a mais de uma droga, testou-se a hipótese de não haver dependência entre as associações de drogas, utilizando-se o teste de proporções binomial. Verificou-se uma dependência das resistências entre a R e I, no grupo de doentes com tratamento anterior, após a correção de comparação múltipla, com p valor de 0,05; as outras associações não apresentaram diferenças estatísticas, entre o observado e o esperado. Os resultados do teste constam da Tabela 4.
Discussão dos resultados e conclusão
Embora o estudo de campo tenha sido realizado na primeira metade da década de 90, o esquema terapêutico para o tratamento da tuberculose no Brasil ainda continua o mesmo, e o estudo atual aborda aspectos ainda não publicados.
A consistência da informação de história de tratamento para a tuberculose foi importante, pois, além de ser o fator de exposição do estudo, é o determinante para a classificação de resistência inicial, ou seja infecção por bacilo resistente, e da resistência adquirida, correspondendo à provável seleção de cepas resistentes devido ao uso anterior de tuberculostáticos.
Como esta informação foi baseada no relato dos doentes, poderia ocorrer o viés de memória ou o doente poderia omitir a informação por motivos pessoais. O erro nesta classificação teria importância na classificação de resistência inicial. Epidemiologicamente, o que importa é a população de bactérias resistentes circulantes. Portanto, esta classificação teria importância individual para prognóstico, o que é suficiente para se tentar obter esta informação de maneira segura na rotina dos serviços de saúde.
A determinação do coeficiente de concordância da informação de história de tratamento para tuberculose, relatada pelo doente e comparada com os registros, como subsídio para o atual estudo, verificou-se uma sensibilidade de 75,8 % e um coeficiente de concordância informação de Kappa = 0,85 p < 0,001. A análise mostrou uma concordância semelhante ao perfeito, segundo a classificação de Landis & Koch (1977), quanto à informação dada pelo doente sobre tratamento anterior, superior a 0,81. Segundo Fleiss (1981), que simplifica a classificação de Landis & Koch, também seria excelente concordância acima de 0,75. Com base nestes dados, considerou-se a informação dada pelo doente como confiável. Em estudo nacional, a sensibilidade do relato do doente foi superior a 80,0 % (Braga et al., 1999).
Thompson (1996) acha improvável que pacientes relatassem falsamente uma exposição que não ocorreu, que a única fonte de erro seria a ignorância ou a reticência de comunicar uma exposição não ocorrida. O erro estaria mais entre os expostos em omitirem a informação, o que levaria a uma redução da associação e um retardo em uma conduta diagnóstica e terapêutica adequada.
Quanto ao resultado do tratamento anterior, vale ressaltar que não podemos assegurar que este foi correto nos casos de referência ou registro de cura, já que é muito freqüente o tratamento irregular. Do ponto de vista teórico, o uso irregular de tuberculostáticos predispõe a seleção de bacilos resistentes, ao passo que o uso de combinação adequada e regular de tuberculostáticos por período insuficiente predispõe à persistência bacilar e não à resistência (Fox et al., 1999; Mitchison, 1998). Esta é a base teórica que apóia a consideração de que qualquer exposição anterior a tuberculostáticos seja um fator predisponente à seleção de bacilos resistentes.
A história de tratamento anterior é o principal fator de exposição para a resistência aos tuberculostáticos. A associação detectada com a resistência foi 3 vezes maior do que entre os que não relataram tratamento anterior (OR = 2,92; IC95%: 1,71-4,96), e é o principal fator relacionado com a resistência em doente imunocompetente (Natal, 2000).
Quando se analisou a resistência a I e R isolada, observou-se que a resistência associada às duas drogas parecia estar acima do esperado. Foi utilizado o teste das proporções binomiais para verificar se esta associação era estatisticamente significante. Verificou-se que, apesar do p valor ser significante em vários tipos de associações, a única em que o intervalo de confiança (95%) não incluiu o 1 foi na associação IR em doentes com tratamento anterior. Os achados negativos quanto à resistência a duas outras drogas que não isoniazida e rifampicina também podem ser explicados por pouca sensibilidade do teste estatístico, como mostram os intervalos de confiança na Tabela 3.
Este achado é compatível com a hipótese de Mitchison (1988) de que apresentação farmacêutica de droga combinada, considerada grande trunfo para evitar a emergência da resistência, quando utilizada de maneira inadequada, mesmo no abandono completo poderá levar a resistência, pois, a cada reinício de uso, haverá seleção de mutantes resistentes, devido à diferença nos tempos de ação. Esta possibilidade é da maior importância para o PNCT, não somente para o doente que faz uso irregular ou abandona, mas também para o manuseio das drogas pelos médicos, frente a efeitos adversos, necessitando um monitoramento adequado para prevenir o surgimento da resistência nestes pacientes.
O tratamento anterior presente na associação com a resistência aponta para uma reformulação da estratégia de condutas proposta pelo PNCT. A recomendação atual é, no reingresso, o uso de quatro drogas, sendo a quarta droga o etambutol. Mitchison (1998) não recomendou o acréscimo do etambutol como a quarta droga, pois teria pouca eficácia para prevenir a resistência a I associada a R. O autor acha que esta conduta, além de não impedir a falência, aumentaria o custo e os efeitos adversos. Fox et al. (1999), em revisão dos esquemas de tratamento, recomenda a estreptomicina como a quarta droga, para prevenir a falência; também opina que o etambutol teria pouca contribuição nesse sentido.
Estes doentes deveriam ser submetidos à cultura e ao teste de sensibilidade, e orientados quanto à circulação para evitar a disseminação dos bacilos. É inaceitável a dificuldade existente para um diagnóstico bacteriológico e teste de sensibilidade, pois, sem a detecção precoce dos doentes resistentes, um tratamento adequado para reduzir o abandono e manuseio adequado frente aos efeitos tóxicos, não se terá como reverter esta situação.
A "monoterapia farmacocinética" surge, assim, como mais um fator de risco a considerar nos estudos sobre resistência a tuberculostáticos.
Apresentamos um achado compatível com uma hipótese de Mitchison, pesquisador extremamente importante no campo da bacteriologia da tuberculose. Naturalmente este é um achado empírico que deve ser considerado dentro de suas limitações, como a margem de erro estatística e os possíveis vieses de um estudo caso controle. Há também a possibilidade de outras hipóteses explicativas para o fenômeno serem consideradas e discutidas pela comunidade acadêmica. A aceitação da hipótese da "monoterapia farmacocinética" significa alterações importantes e concretas da política farmacológica no controle da tuberculose, e as evidências empíricas ainda não são suficientes para tanto. No entanto, acreditamos que o presente estudo contribua para a discussão no campo acadêmico.
Referências
BRAGA, J. U.; BARRETO, A. & HIJJAR, M. A., 1999. Inquérito Epidemiológico da Resistência as Drogas usadas no Tratamento da Tuberculose. Relatório Final. Rio de Janeiro: Centro de Referência Professor Hélio Fraga, Fundação Nacional de Saúde.
FLEISS, J. L., 1981. Statistical Methods for Rates and Proportions. New York: John Wiley & Sons.
FOX, W.; ELLARD, G. A. & MITCHISON, D. A., 1999. Studies on the treatment of tuberculosis undertaken by British Medical Research Council Tuberculosis Units, 1946-1986, with relevants subsequent publications. International Journal of Tuberculosis and Lung Disease, 3(Sup. 3):S231-279.
LANDIS, J. R. & KOCH, G. G., 1977. The measurement of observer agreement for categorical data. Biometrics, 33:159-174.
MITCHISON, D. A., 1998. How drug resistance emerges as a result of poor compliance during short course chemotherapy for tuberculosis. International Journal of Tuberculosis and Lung Disease, 2:10-15.
NATAL, S., 2000. Fatores de Predição para a Resistência aos Tuberculostáticos: Discussão do Padrão e dos Possíveis Fatores como Causa da Resistência ao Tratamento Específico da Tuberculose. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
THOMPSON, W. D., 1996. Análisis estadístico de los estudios de casos y controles. Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana, 121:41-61.
Recebido em 24 de setembro de 2002
Versão final reapresentada em 29 de janeiro de 2003
Aprovado em 11 de abril de 2003