ARTIGO ARTICLE

 

Associação de variáveis sócio-demográficas e comportamentais com a gordura abdominal em adultos: estudo de base populacional no Sul do Brasil

 

Socio-demographic and lifestyle factors associated with abdominal fat distribution in adults: a population-based survey in Southern Brazil

 

 

Marcelo CastanheiraI; Maria Teresa Anselmo OlintoII; Denise Petrucci GiganteIII

IEscola de Nutrição, Universidade do Rio de Janeiro. Av. Pasteur 296, Rio de Janeiro, RJ, 22290-040, Brasil. celocast@hotmail.com
IICentro de Ciências da Saúde, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos 950, São Leopoldo, RS, 93022-000, Brasil. mtolinto@ig.com.br
IIIFaculdade de Nutrição, Universidade Federal de Pelotas. C. P. 354, Campus Universitário s/n, Pelotas, RS 96010-900, Brasil. denise@ufpel.tche.br

 

 


ABSTRACT

This article describes the anthropometric distribution of abdominal fat in the urban adult population in Pelotas, Rio Grande do Sul, Brazil, and the influence of independent variables on this distribution. In a cross-sectional population-based study, 3,464 adults from 20 to 69 years of age were selected in a multistage systematic sampling. They were interviewed and had their largest abdominal circumference measured. Means were compared using one-way ANOVA, while multiple linear regression models were employed to adjust for confounding. According to the study, older white married men with higher family incomes were more likely to have the highest mean abdominal circumferences (p < 0.001). Women at greatest risk for abdominal fat were older married mothers with a history of 4 or more pregnancies and less schooling (p < 0.001). Former smokers had the highest mean abdominal circumferences in both males and females, while other lifestyle factors such as alcohol consumption and physical activity showed no association with the outcome after adjusting for confounding.

Key words: Adipose Tissue; Obesity; Anthropometry; Analysis of Variance


RESUMO

Avaliou-se a distribuição antropométrica da gordura abdominal em uma população adulta e o efeito de variáveis sócio-demográficas, reprodutivas e comportamentais sobre essa distribuição. O desfecho estudado foi definido como o maior perímetro da região abdominal, sendo entrevistados e medidos 3.464 adultos, de 20 a 69 anos, residentes na zona urbana de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. As diferenças entre as médias de perímetro foram testadas empregando-se ANOVA e regressão múltipla, visando o controle de confundimento. Homens mais velhos, de cor branca, vivendo com companheira e com alta renda familiar (p < 0,001) apresentaram maiores médias de perímetro abdominal, assim como as mulheres de maior idade, com 4 ou mais gestações, que viviam com companheiro e possuíam baixo nível de escolaridade (p < 0,001). Foi observado que ex-fumantes, tanto do sexo masculino (p < 0,05) quanto feminino (p < 0,01), tiveram maiores médias de perímetro abdominal, enquanto consumo de bebida alcoólica e prática de exercícios físicos não se associaram ao desfecho após análise multivariada.

Palavras-chave: Tecido Adiposo; Obesidade; Antropometria; Análise de Variância


 

 

Introdução

A obesidade representa o problema nutricional de maior ascensão entre a população adulta brasileira, observado nos últimos anos (Monteiro, 1999). Os prejuízos decorrentes do excesso de gordura corporal incluem altas taxas de incapacidade e mortalidade por doenças crônico-degenerativas (WHO, 1998). Alguns trabalhos têm se preocupado em caracterizar o tipo de obesidade a que as populações estão sujeitas, visto que o acúmulo de gordura na região abdominal (obesidade andróide ou central) oferece maior risco à saúde, quando comparado ao padrão ginóide de obesidade.

Os perímetros de cintura e do abdômen vêm sendo largamente utilizados em estudos de base populacional como um indicador da gordura abdominal, tanto pela associação com a ocorrência de doenças cardiovasculares, por exemplo a hipertensão arterial (Dyer et al., 1999), quanto pela alta correlação que possui com métodos laboratoriais de avaliação da composição corporal (Lean et al., 1996; Lemieux et al., 1996). Vale ressaltar que a relação dessas medidas com o risco de doenças crônicas tem sido estabelecida independentemente da medida do quadril, quando as duas medidas são analisadas separadamente (Han et al., 1998).

A influência de alguns fatores comportamentais sobre a distribuição da gordura abdominal também tem sido estudada. Entre eles, destacamos a prática de exercícios físicos (Ross & Janssen, 1999), tabagismo e consumo de bebida alcoólica (Dallongeville et al., 1998), cujo efeito sobre a concentração de gordura abdominal constitui assunto ainda pouco explorado.

Pesquisas de base populacional envolvendo a avaliação da gordura abdominal no Brasil são escassas (Pereira et al., 1999; Sichieri et al., 2000; Velásquez-Meléndez et al., 1999) e, assim, o presente trabalho contribuirá para caracterizar o perfil de adiposidade abdominal da população adulta brasileira, permitindo ainda, conhecer seus fatores preditores.

O estudo visa a conhecer a distribuição antropométrica da gordura abdominal em homens e mulheres adultos residentes na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, e verificar a influência de fatores sócio-demográficos e comportamentais sobre essa distribuição.

 

Metodologia

Realizou-se um estudo transversal de base populacional, cuja amostra foi composta por adultos de 20 a 69 anos, residentes na zona urbana de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. O tamanho amostral foi calculado com base na comparação de médias de perímetro de cintura, de acordo com as características a serem estudadas na amostra. Entre os fatores de risco estudados, optou-se pela prática de exercícios físicos (Gigante et al., 1997), tendo em vista que essa foi a variável que exigiu maior tamanho de amostra. Desse modo, para se detectar uma diferença entre perímetros de 1,4cm, com nível de significância de 95% e poder de 80%, seriam necessários cerca de 552 indivíduos. Com acréscimo de 10% para perdas e recusas, e 30% para controlar possíveis fatores de confusão, estimou-se uma amostra de cerca de 790 adultos.

O número aproximado de adultos por domicílio na zona urbana de Pelotas, é de 1,8 (IBGE, 1999a), sendo necessário cerca de 438 domicílios para se obter o número de pessoas suficientes para a amostra. No entanto, como o trabalho de campo ocorreu em consórcio com outros estudos que requeriam amostras maiores, o número de domicílios necessários passou a ser de 2.112, o poder estatístico do estudo passou a ser 99%.

Com base nas informações da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 1999b), foram selecionados, sistematicamente, 48 setores censitários e cerca de 44 domicílios por setor. Para o início da coleta de dados, em cada um dos setores foi sorteada uma quadra e, nessa, uma esquina a partir da qual foram visitados um em cada três domicílios, até completar 44.

As casas selecionadas foram visitadas de outubro de 1999 a janeiro de 2000. Entrevistadoras (36) previamente treinadas aplicaram em todos os adultos um questionário padronizado. O controle de qualidade dos dados foi efetuado através de reentrevistas ao acaso em 5% dos domicílios.

A concentração de gordura abdominal foi avaliada através do perímetro abdominal (cm), aferido no local de máxima extensão da região do abdômen conforme recomendado por Lohman et al. (1988). O instrumento utilizado foi uma fita milimetrada (Graphco), com 180cm de comprimento.

Foram excluídos da amostra os indivíduos impossibilitados de permanecer na posição recomendada e as mulheres grávidas ou que tiveram filhos nos seis meses anteriores à entrevista. Vale ressaltar que, para a tomada desta medida, as entrevistadoras foram submetidas a processo de treinamento e padronização antropométrica. As variáveis explanatórias estão apresentadas nas Tabelas 1 e 2.

 

 

 

 

Utilizou-se o programa Epi Info 6.0 para edição dos dados, enquanto para análise utilizou-se SPSS 8.0 e Stata 5.0. O efeito de cada variável explanatória sobre a distribuição de perímetro abdominal foi obtido através de análise de variância (ANOVA), adotando-se nível de significância de 95%.

Empregou-se regressão linear múltipla a fim de verificar os efeitos ajustados das variáveis explanatórias, operacionalizadas sob a forma de variáveis indicadoras (dummies). Estas foram analisadas de acordo com o modelo hierárquico proposto (Figura 1), onde o efeito das variáveis proximais foi controlado para os determinantes mais distais ou do mesmo nível hierárquico (Olinto et al., 1993). Permaneceram no modelo aquelas variáveis que apresentaram nível de significância menor ou igual a 0,1.

 

 

Resultados

Durante o trabalho de campo houve 2,4% de perdas e 4,2% de recusas, totalizando 3.647 adultos entrevistados. Entre os não-respondentes, 58,7% eram do sexo masculino e 47% tinham idade entre 20 e 40 anos. Não foi possível aferir o perímetro abdominal em 183 pessoas (5%), por razões já descritas anteriormente, obtendo-se ao final, uma amostra de 3.464 adultos. Foi comparada a distribuição das principais variáveis entre esses indivíduos e o restante da amostra, não se detectando diferenças significativas.

Na Tabela 1 observa-se que a amostra foi constituída por uma proporção ligeiramente maior de mulheres (56%) e metade dos indivíduos possuía até 40 anos de idade. Observou-se uma grande predominância de adultos de cor branca, enquanto homens e mulheres, viviam, em sua maioria, com companheiro; um quinto das mulheres tiveram quatro ou mais gestações. Quanto ao fatores sócio-econômicos, verificou-se que cerca de um terço dos indivíduos pertencia a famílias com renda igual ou inferior a três salários mínimos, enquanto cerca de 6% não tinham completado um ano de escola.

A Tabela 2 mostra que as proporções de homens fumantes e não-fumantes foram muito próximas, sendo verificada menor proporção de mulheres fumantes. Do mesmo modo, os homens fumavam mais (uma ou mais carteiras de cigarros por dia) e há mais tempo (mais de 30 anos). Quanto ao consumo de bebida alcoólica no último mês, um terço dos homens bebia com freqüência de dois ou mais dias na semana, sendo 10% das mulheres incluídas nessa categoria. Cerca de dois terços da população estudada não praticaram exercícios físicos nos últimos três meses.

Pouco mais da metade da população masculina apresentou excesso de peso (índice de massa corporal = IMC > 25kg/m2), sendo que 16% eram obesos (IMC > 30kg/m2). As mulheres apresentaram prevalência de obesidade muito semelhante a dos homens (Tabela 2).

Os valores médios de perímetro abdominal (média ± desvio padrão) foram de 92,8 ± 12,1cm e 91,3 ± 13,8cm, para homens e mulheres (p < 0,01), respectivamente.

Observa-se uma forte tendência ao acúmulo de gordura abdominal com o aumento da idade em ambos os sexos, não se notando diferença a partir dos 50 anos (Tabela 1).

Homens de cor branca tiveram cerca de 4cm a mais de perímetro do que os demais, diferença não observada para o sexo feminino. Em ambos os sexos, aqueles que viviam com companheiro(a) tiveram médias de perímetro abdominal significativamente maior do que os demais, sendo esta diferença mais expressiva para os homens. Mulheres que tiveram quatro ou mais gestações apresentaram 12cm a mais de perímetro abdominal quando comparadas a nuligestas.

A renda familiar esteve associada de forma linear com as médias de perímetro abdominal para ambos os sexos, porém com o efeito inverso nas mulheres, isto é, maior risco para homens com alta renda e mulheres com baixa renda. Já a escolaridade apresentou-se inversamente associada à concentração de gordura abdominal somente entre as mulheres.

O efeito das variáveis comportamentais sobre a distribuição de gordura abdominal em homens e mulheres pode ser observado na Tabela 2. Quanto ao hábito do tabagismo, verificou-se que ex-fumantes apresentaram maiores médias de perímetro comparados aos fumantes ou não-fumantes. O tempo de fumo esteve positivamente associado com concentração de gordura abdominal e maiores médias de perímetro foram observadas para os homens que fumavam 20 ou mais cigarros por dia.

A distribuição da gordura abdominal, segundo o consumo de bebida alcoólica, aparentemente apresentou resultados paradoxais. Indivíduos que não consumiram álcool no mês anterior à pesquisa apresentaram menor perímetro do que aqueles que bebiam mais de um dia na semana, sendo essa diferença mais nítida nas mulheres. Do mesmo modo, os indivíduos que praticavam exercício físico três ou mais vezes por semana tiveram média de perímetro muito similar aos sedentários, em ambos os sexos (Tabela 2).

Conforme esperado, observou-se associação altamente significativa entre IMC e perímetro abdominal com amplas diferenças entre cada categoria. Vale ressaltar que a correlação entre os dois índices foi alta tanto para homens (r = 0,87) quanto para mulheres (r = 0,78).

As Tabelas 3 e 4 mostram os efeitos brutos e ajustados das variáveis explanatórias que permaneceram no modelo final de regressão, para homens e mulheres, respectivamente.

 

 

 

 

Para o sexo masculino, observou-se que, após ajuste para idade, viver com companheira ainda representa um fator de risco para maior concentração de gordura abdominal, porém com redução de efeito. Do mesmo modo, o incremento de gordura abdominal manteve-se positivamente associado à renda familiar, com forte tendência linear (Tabela 3), enquanto escolaridade ficou de fora do modelo pois permaneceu não significativa (p = 0,4).

Tabagismo foi o único fator comportamental que se manteve significativo após ajuste para variáveis sócio-demográficas. Ex-fumantes mostraram maior risco, em relação a não-fumantes e fumantes, mesmo após controle de confundimento. Na análise ajustada, consumo de bebida alcoólica e prática de exercícios físicos mostraram valor-p de 0,4 e 0,5, respectivamente. Não houve alterações importantes na associação entre IMC e perímetro abdominal em homens após análise multivariada. Com esse ajuste, o modelo possibilitou explicar até 64% da variabilidade na concentração de gordura abdominal dos homens estudados.

Com relação às mulheres (Tabela 4), observou-se que a média de perímetro para aquelas que vivem com companheiro aumentou quando controlado para idade. Escolaridade manteve uma associação linear negativa com perímetro abdominal, embora seu efeito tenha se reduzido quando ajustado para as variáveis demográficas. Do mesmo modo, o número de gestações permaneceu significativamente relacionado a maior concentração de gordura abdominal, principalmente em mulheres que engravidaram quatro ou mais vezes.

Assim como para os homens, o tabagismo foi o principal fator comportamental mantido no modelo de regressão para as mulheres, com maior média de perímetro no grupo de mulheres ex-fumantes. A ingestão de bebida alcoólica e a prática de exercícios físicos perderam grande parte de seu efeito, mas permaneceram no modelo pois apresentaram valor-p abaixo do valor crítico considerado (Tabela 4).

O IMC foi o último fator incluído na análise multivariada do sexo feminino, não alterando significativamente seu efeito. O poder explicativo deste modelo foi bem próximo ao do sexo masculino (61%).

 

Discussão

O baixo percentual de não-respondentes, considerando 10% como índice aceitável (Barros & Victora, 1994), contribuiu significativamente para a representatividade da amostra. Comparando-se a distribuição por sexo, faixa etária e escolaridade da amostra pesquisada com a da população adulta de Pelotas, não foram verificadas diferenças importantes, o que reforça a validade interna do estudo. Além disso, o incremento do número de adultos entrevistados resultou num aumento substancial do poder estatístico (> 99%) do estudo, o que nos permitiu detectar diferenças menores nas médias de perímetro entre cada estrato.

O tipo de delineamento utilizado não possibilitou estabelecer uma relação temporal de causa e efeito (visto que as informações sobre exposição e desfecho foram obtidas ao mesmo tempo), mas permitiu que fossem exploradas algumas associações entre as variáveis estudadas, principalmente o efeito dose-resposta quando se tratava de variável ordinal.

Tendo em vista que o desfecho estudado foi avaliado segundo uma medida antropométrica, o critério metodológico exigido no treinamento e padronização dos examinadores, bem como a qualidade do material utilizado na tomada da medida, representam fatores decisivos para a qualidade dos dados. O estudo foi criterioso nesse aspecto, ao considerar a técnica original recomendada por Lohman et al. (1988), na tomada do perímetro abdominal.

O uso de perímetros aferidos sobre a região abdominal tem sido recomendado como um bom preditor de doenças crônico-degenerativas em virtude da alta correlação com os métodos considerados "padrão-ouro" (Lean et al., 1996; Lemieux et al., 1996). Neste estudo optou-se por identificar a gordura abdominal através do perímetro abdominal que, segundo Lohman et al. (1988), teria melhor poder de predição da gordura, visto que é aferido sobre a maior extensão do abdômen.

No entanto, é importante ressaltar que ainda não se dispõe de uma curva de referência ou pontos de corte estabelecidos para a determinação de critérios de riscos à saúde a partir do perímetro abdominal. No entanto, os valores médios observados em diferentes populações mostram uma variação de 90,7cm (Risica et al., 2000) a 98,0cm (Molarius et al., 1999) entre os homens, enquanto para mulheres essa variação foi maior, isto é, 80,1cm (Rosmond & Bjorntorp, 1999) a 93,8cm (Risica et al., 2000). Comparando-se esses valores com os achados do presente estudo, observa-se que as médias de perímetro de homens (92,8cm) e mulheres (91,3cm) pelotenses estão compreendidas nestes intervalos.

A fim de comparar os perímetros abdominal e de cintura, realizou-se um ensaio com uma subamostra de 99 indivíduos que haviam participado do presente estudo. Os dados mostraram uma alta correlação entre as medidas dos perímetros abdominal e de cintura, em homens (rs = 0,96; p < 0,001) e mulheres (rs = 0,88; p < 0,001) (Castanheira et al., 2000).

Entre os determinantes biológicos estudados, verificou-se uma relação direta entre idade e gordura abdominal, porém com diferentes graus de intensidade quando estratificado por sexo. A diferença de perímetro entre a maior e a menor faixa etária foi de 11,4cm para os homens e 14,3cm para as mulheres, mostrando um acúmulo mais importante com a idade no caso das mulheres, principalmente entre 20 e 50 anos, faixa que compreende grande parte de seu período reprodutivo.

Essa preocupação, então, é reforçada pela tendência observada quanto ao número de gestações sobre o desenvolvimento da obesidade abdominal. Resultados semelhantes foram encontrados por Björkelund et al. (1996), que utilizaram a paridade como variável de história reprodutiva, em um estudo longitudinal com 1.462 mulheres suecas. Cabe salientar que o número de gestações constitui fator de risco para o desenvolvimento da obesidade generalizada (WHO, 1998).

A associação positiva entre situação conjugal e gordura abdominal identificada em nosso estudo ainda é controversa. Rosmond & Bjorntorp (1999) identificaram maior risco de obesidade abdominal em mulheres casadas, utilizando, porém, a razão cintura/quadril (RCQ) como indicador de gordura abdominal. Essa relação não foi observada em outra pesquisa de base populacional, realizada em Cotia, São Paulo (Velásquez-Meléndez et al., 1999). Tal estudo, porém, não descreve a categorização da variável estado civil, além de ter sido utilizado o perímetro de cintura como uma variável dicotômica.

Quanto aos fatores sócio-econômicos, a associação entre pobreza e obesidade em mulheres ainda é controversa. O presente estudo mostrou associação inversamente significativa entre perímetro abdominal e as variáveis sócio-econômicas, embora somente escolaridade tenha se mantido no modelo final. Han et al. (1998) mostraram que mulheres holandesas, com segundo grau incompleto, tiveram um risco 2,6 vezes maior de apresentar obesidade abdominal em relação às de maior escolaridade, e entre aquelas desempregadas esse risco foi de 1,4. A mesma tendência é observada quando se trata de obesidade total (Gigante et al., 1997).

Monteiro et al. (2001) também verificaram forte associação inversa entre obesidade e escolaridade em mulheres brasileiras, residentes tanto em regiões ricas quanto pobres do país, enquanto uma relação direta com a renda foi observada nas regiões mais pobres.

Em relação ao sexo masculino, a distribuição de gordura abdominal não foi afetada pela escolaridade, mas sim pela renda familiar que demonstrou associação direta com o desfecho, como também fora observado por Monteiro et al. (2001), para obesidade total.

Quanto aos fatores comportamentais, a hipótese de associação entre prática de exercícios físicos e perímetro abdominal não foi confirmada. Indivíduos sedentários apresentaram médias de perímetro semelhantes ao grupo mais ativo, o que pode ser reflexo da causalidade reversa, característica de estudos transversais, onde a obesidade é que teria motivado a realização de exercícios físicos. Outro fato que reforça essa teoria é que grande parte da coleta de dados foi realizada em meses de calor, propícios à pratica de exercícios.

Por outro lado, além da freqüência semanal ou mensal, outras questões deveriam ter sido consideradas, como "tipo de atividade", "número de horas semanais ou diárias", "há quanto tempo praticava a atividade" e o "horário preferencial para a prática", possibilitando uma melhor estimativa do padrão de atividade física da população.

No entanto, o efeito do exercício físico sobre a redução específica de gordura abdominal permanece questionável na literatura (Ross & Jansen, 1999). Velásquez-Meléndez et al. (1999) mostraram ausência de associação entre estas variáveis utilizando o perímetro de cintura. Através da RCQ em mulheres, os mesmo autores encontraram um efeito protetor do exercício físico sobre a gordura abdominal. Han et al. (1998), por sua vez, observaram maior risco de obesidade abdominal entre homens (OR = 1,72) e mulheres (OR = 1,47) sedentários. Importante salientar que essas associações devem ser verificadas por meio de estudos que permitam estabelecer causalidade com maior segurança, principalmente ensaios clínicos randomizados ou estudos de coorte.

O presente estudo mostrou, ainda, que dois terços da população feminina de Pelotas encontrava-se sedentária, e que esta situação foi cerca de 1,5 vezes mais prevalente entre as mulheres do estrato de mais baixa de renda (0 a 3 salários) e quase duas vezes entre as analfabetas, comparado àquelas com doze anos ou mais de estudo (resultados não apresentados). Estes achados podem contribuir para explicar o maior risco de obesidade em mulheres mais pobres, embora a relação entre obesidade abdominal e atividade física ainda não tenha sido esclarecida.

Com relação ao tabagismo, os achados são consistentes com diferentes estudos que mostraram associação inversa entre fumo e obesidade abdominal em ambos os sexos (Han et al., 1998; Velásquez-Meléndez et al., 1999). Foi observado, também, maior média de perímetro abdominal para homens e mulheres ex-fumantes.

Um aumento na taxa metabólica basal provocado pelo fumo tem sido sugerido como fator biológico atribuído ao ganho de peso (WHO, 1998), que poderia, talvez, implicar um aumento no consumo alimentar com a interrupção do vício. Porém, esse mecanismo não é claro e pouco consistente.

Outro aspecto que tem sido abordado na literatura, refere-se ao fato de que fumantes mais jovens ou que fumam mais de 15 cigarros/dia tendem a ser mais obesos quando param de fumar (WHO, 1998). Em nosso estudo, a proporção de homens que fumavam 20 ou mais cigarros/dia foi cerca de 55%. Entre esses, observou-se um incremento de 2,3cm (p = 0,02) no perímetro abdominal, mesmo após controle para fatores sócio-demográficos e comportamentais.

Uma maior freqüência na ingestão de bebida alcoólica não provocou efeito significativo sobre a concentração de gordura abdominal em homens, apresentando uma associação limítrofe para as mulheres (p = 0,06). Outros estudos de base populacional também falharam em mostrar associação entre obesidade e ingestão alcoólica (WHO, 1998).

Dallongeville et al. (1998) verificaram que não houve diferença entre as médias de perímetro de cintura em adultos classificados como "não bebedores", "bebedores leves" e "moderados/pesados". Observaram, também, que o tipo de bebida não mostrou associação significativa com a gordura abdominal. Acredita-se que o alcoolista crônico tenderia a reduzir sua ingestão alimentar, passando a suprir suas necessidades calóricas a partir da energia contida no álcool (cerca de 7Kcal/g).

O desfecho estudado apresentou forte associação com o IMC. Porém, é importante destacar que as variáveis utilizadas para o cálculo deste índice (altura e peso) foram auto-referidas. Neste caso, existe a possibilidade de ocorrência de viés de informação com tendência a superestimativa das médias de perímetro abdominal em cada categoria de IMC, uma vez que a estaríamos subestimando a classificação antropométrica dos indivíduos.

Cabe salientar que não foi feito ajuste para IMC, em relação às variáveis localizadas nos níveis intermediário e distal do modelo de análise (Figura 1), uma vez que o efeito esperado seria a subestimativa do efeito encontrado para aquelas variáveis, pois IMC localiza-se na cadeia causal de todas as relações de determinação da gordura abdominal exercida pelas variáveis explanatórias (Gigante et al., 1997).

A partir de uma amostra representativa da população adulta de Pelotas, este estudo contribuiu para um melhor entendimento sobre os fatores que se associam com a maior concentração de gordura abdominal em homens e mulheres, o que poderá subsidiar o planejamento de ações direcionadas à prevenção e ao manejo da obesidade, levando-se em conta as diferenças demográficas, sócio-econômicas e de estilo de vida observados.

 

Referências

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Recebido em 2 de outubro de 2001
Versão final reapresentada em 14 de maio de 2002
Aprovado em 23 de agosto de 2002

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br