ARTIGO/ARTICLE
Demandas reprodutivas e a assistência às pessoas vivendo com HIV/AIDS: limites e possibilidades no contexto dos serviços de saúde especializados
Reproductive demands and health care for people living with HIV/AIDS: limits and possibilities within the context of specialized health services
Luzia Aparecida OliveiraI, II; Ivan França JuniorIII
IServiço Ambulatorial de DST/AIDS Santana, Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Rua Dr. Luis Lustosa da Silva 339, São Paulo, SP 02406-040, Brasil. luzia.ao@sti.com.br
IINúcleo de Estudos e Prevenção em AIDS, Universidade de São Paulo. Av. Prof. Mello Moraes 1721, Bloco A, São Paulo, SP 05508-900, Brasil.
IIIFaculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Rua Dr. Arnaldo 715, São Paulo, SP 01246-904, Brasil. ifjunior@usp.br
RESUMO
Objetivando compreender o modo como foram tratadas, em serviços de saúde especializados, as demandas reprodutivas das pessoas vivendo com HIV/AIDS, desenvolveu-se estudo de natureza qualitativa, utilizando-se como referencial teórico o conceito de Necessidades em Saúde e como estratégia metodológica a Observação Participante. O estudo indicou que os trabalhadores compreenderam as demandas reprodutivas como das mulheres, ligadas ao controle da transmissão vertical do HIV. As demandas reprodutivas não foram tomadas como objeto do trabalho coletivo. Foram evidenciadas diferentes racionalidades técnicas, éticas e morais. No pólo dos trabalhadores predominou a lógica do controle da epidemia, e no pólo dos usuários predominou as escolhas ligadas ao modo de vida, consubstanciadas no "aparecimento da gravidez". O reconhecimento da autonomia, quanto às decisões reprodutivas das pessoas vivendo com HIV/ AIDS, parece necessário para a formulação de estratégias assistenciais que respeitem os Direitos Humanos e minimizem os riscos de infecção pelo HIV.
Palavras-chave: HIV; Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; Saúde Reprodutiva; Serviços de Saúde
ABSTRACT
This qualitative study discusses how professionals in specialized health care services in the city of São Paulo have responded to the reproductive demands of people living with HIV/AIDS. Participant observation was the main methodological strategy; the concept of health demands was an important theoretical reference in the analysis. According to the health professionals, reproductive health demands were raised exclusively by women and related to mother-to-child HIV transmission. Reproductive issues were not recognized as patients needs, nor were they included among the objectives of collective staff work. Distinct technical, ethical, and moral rationalities were observed. Among health professionals, to control the epidemic was the prevailing logic, while among patients, exercising lifestyle choice was the key issue, materialized in the "unexpected advent of pregnancy". In order to formulate health care strategies that respect human rights and reduce the risks of HIV transmission, it is necessary to recognize the autonomy of people living with HIV/AIDS in relation to reproductive decisions.
Key words: HIV; Acquired Immunodeficiency Syndrome; Reproductive Health; Health Services
Introdução
Compreender como os trabalhadores de saúde reconheceram e acolheram as demandas reprodutivas das pessoas vivendo com HIV/AIDS em serviços especializados na cidade de São Paulo, foi o objetivo da presente pesquisa. O controle e o cuidado das pessoas afetadas pela AIDS e a atenção às suas vidas reprodutivas sugerem questões ligadas aos encaminhamentos e/ou condutas dos profissionais que se referem às demandas e às necessidades reprodutivas, tais como: quais e como têm sido acolhidas as necessidades reprodutivas no contexto dos serviços de saúde especializados no seguimento das pessoas vivendo com HIV/AIDS? Que mudanças internas no processo de trabalho são verificadas quando emergem demandas reprodutivas? Quais as possibilidades de emergência e atendimento dessas demandas, considerando o necessário controle clínico e epidemiológico da doença?
Essas questões foram formuladas com base na inserção na assistência a pessoas vivendo com HIV/AIDS e a percepção do surgimento de demandas para além do controle da infecção e sua transmissão.
Ao considerar as possibilidades reprodutivas para além do controle da epidemia do HIV/ AIDS, tomando aquelas como necessidades de saúde com especificidades, estamos, ao mesmo tempo, reconhecendo-as como necessidades ligadas aos direitos subjetivos ou individuais (França Jr. & Ayres, 2003) dos indivíduos afetados pelo HIV/AIDS e como demandas de controle da epidemia, mais especificamente de controle da transmissão vertical, responsabilidade social da saúde pública assumida no processo de trabalho dos serviços voltados à assistência às pessoas vivendo com HIV/AIDS.
Essa responsabilidade social tomada pelos trabalhadores é, por vezes, revestida de uma dada racionalidade que, nesse caso, está referendada por protocolos que indicam as ações de identificação dos casos e da profilaxia da transmissão do HIV/AIDS ao concepto durante a gravidez de mulheres soropositivas (CNDST/ AIDS, 1998, 2002).
Ao lado da ênfase no controle da transmissão vertical, as demais questões ligadas à saúde reprodutiva das pessoas vivendo com HIV/ AIDS parecem relegadas a processos de trabalho particulares de cada agente, em cada serviço e em cada local.
Para compreender como essas intervenções particulares se expressaram no cotidiano dos serviços, procuramos destacar do Processo de Trabalho em Saúde e Necessidades em Saúde (Mendes-Gonçalves, 1992, 1994; Schraiber & Mendes-Gonçalves, 1996), suas características de interação entre os sujeitos profissionais e usuários (Ayres, 2001; DOliveira & Schraiber, 1999; Rodrigues et al., 1996; Schraiber, 1997). Desta forma, pudemos reconhecer o diálogo entre o conhecimento técnico e científico dos profissionais e o reconhecimento das necessidades em saúde a partir das demandas dos usuários.
As expectativas e demandas dos usuários foram compreendidas como pertencentes às Necessidades Sociais (Heller, 1992), e transformadas ou não em necessidades em saúde no contexto assistencial.
As necessidades reprodutivas são marcadas por contextos sociais, culturais e morais. O desejo por ter filhos, por exemplo, é parte de um determinado papel social esperado ou desejado pelas mulheres e ameaçado pela condição sorológica, conforme registra Knauth (1999), em estudo sobre a subjetividade feminina e a soropositividade.
Assim, as possibilidades de decisões reprodutivas estão também permeadas por ideais de maternidade/paternidade (com valores) fortemente amparados por princípios que indicam o cuidado da criança pelos pais, afastando aquela de quaisquer riscos, enquanto comportamento desejável. Os profissionais de saúde podem apoiar o julgamento acerca das decisões reprodutivas e a AIDS, associando a esses julgamentos outros princípios relativos às particularidades das pessoas vivendo com HIV/ AIDS. Por exemplo, não é facilmente aceitável a possibilidade de expor a risco, mesmo que controlado, a criança de mãe soropositiva. Ao mesmo tempo, para o casal ou para a mulher, o sentido e o eventual desejo de ter filhos poderão estar associados a outras tantas justificativas ligadas à forma de relacionar-se em diferentes contextos e à vivência da conjugalidade (Knauth, 1999; Paiva et al., 2002; Pivnick, 1994).
Para os profissionais, trata-se de cumprir a responsabilidade social de controle epidêmico da AIDS, reduzindo taxas de transmissão vertical do HIV, por meio da prevenção, assim como operar a tecnologia disponível para evitar o adoecimento e a morte por AIDS. Para dar conta dessas finalidades, os profissionais, em geral, utilizam as prescrições (que se referem aos tratamentos e aos cuidados), que indicam inclusive o uso de preservativo como estratégia de controle da transmissão. Nesse sentido, dada a centralidade no controle clínico e epidemiológico da doença, poderá por vezes escapar aos profissionais a dimensão de outras questões ligadas ao viver com HIV/AIDS.
A esse respeito, Ayres (2002) chama a atenção para a necessidade do reconhecimento de outras identidades que não de pacientes portadores de doenças ou grupo de risco para patologias, mas como pessoas pertencentes a determinados grupos étnicos, culturais e comunitários, de modo a dar melhores oportunidades aos juízos sobre o desejável ou o indesejável para a saúde.
Ao chamar a atenção para o caráter relacional das práticas em saúde e, portanto, de interação, Schraiber (1997) registra o fato de que essa interação ocorre entre pessoas que, no plano social, representam autoridades técnicas e científicas desiguais, considerando-se, via de regra, os resultados dessa interação apenas por um lado do profissional, como se houvesse apenas um sujeito na relação assistencial.
Procedimentos metodológicos
Optou-se como estratégia metodológica a realização da Observação Participante. Esta permitiu captar uma variedade de situações que não são obtidas por meio de perguntas e que observadas diretamente puderam ser registradas. A técnica tradicionalmente utilizada pela antropologia oferece maior oportunidade para descobrir quais as questões mais importantes e as preocupações centrais em um dado contexto (Becker, 1999).
Considerando que o ato assistencial em si é permeado por processos intersubjetivos, a técnica facilitou a identificação de padrões de interação, envolvendo os profissionais e os usuários dos serviços durante as situações de atendimento. Acompanhar o cotidiano dos profissionais de saúde permitiu registrar seus processos decisórios na realização de intervenções e suas percepções acerca das demandas reprodutivas.
O estudo foi realizado em duas unidades de saúde, com o objetivo inicial de registrar se diferentes formas de organização das equipes de trabalho influenciariam nas possibilidades de acolhimento das demandas reprodutivas. A caracterização prévia dessas unidades e o reconhecimento de suas peculiaridades basearam-se em estudo realizado em 1997 (Silva et al., 2002). Este, relativo ao trabalho multiprofissional em unidades especializadas no seguimento de pessoas vivendo com HIV/AIDS, indicava diferenças entre serviços no que se referiu às suas práticas assistenciais: um com maior centralidade no trabalho médico e outro com maior investimento na equipe multiprofissional. No presente estudo essas delimitações não foram evidenciadas. Se havia uma pretensão em ancorar a análise das práticas assistenciais por referência à maior centralidade no trabalho médico ou não, associada a um serviço e outro, esta se mostrou inconsistente para as finalidades propostas.
Desse modo, optou-se por evidenciar as situações que foram julgadas relevantes aos objetivos do estudo, ficando diluídas as particularidades de cada campo, uma vez que estas não pareceram influenciar significativamente na forma de apreensão das demandas e/ou necessidades em saúde e em particular às demandas reprodutivas, sendo marcante, em ambas, a centralidade do trabalho médico.
Preliminarmente, foram realizadas reuniões com as gerências dos serviços e, posteriormente, realizamos apresentações da proposta aos funcionários em reuniões ordinárias, onde esclarecemos a estratégia metodológica, assim como o caráter do estudo, obtendo assim, consentimento para o início da investigação. Apesar dos esclarecimentos prévios e da obtenção de consentimentos em relação ao estudo, a cada visita era solicitada permissão para assistir às atividades dos profissionais, que se encarregavam de obter a autorização dos usuários. Deste modo, os depoimentos foram voluntários e sempre precedidos de consentimento livre e esclarecido. Todas as observações foram realizadas de agosto a dezembro de 2001 e registradas em cadernos de campo. Os registros foram obtidos com base nas seguintes fontes:
Observações de situações de atendimento individual: consultas médicas, atendimentos do serviço social, atendimento de aconselhamento, pré-consultas e pós-consultas com enfermagem;
Observações de atividades grupais: grupos de gestantes, grupos informativos não regulares de pacientes, grupos de profissionais, discussões de caso;
Comentários e depoimentos de profissionais;
Comentários e depoimentos de usuários em situação de sala de espera e durante consultas.
Embora o foco do estudo estivesse relacionado às práticas assistenciais, os comentários de sala de espera tiveram por finalidade o registro de possíveis expectativas dos usuários em relação ao serviço de saúde e, ainda, subsidiar a compreensão dos diferentes fluxos do atendimento tempo de espera e rotinas desse ambiente.
As unidades de saúde investigadas estão configuradas como unidades ambulatoriais especializadas no seguimento de pessoas acometidas por DSTs/HIV/AIDS desde meados da década de 90 e localizadas na periferia do Município de São Paulo. Serão nomeadas, neste texto, como Campo 1 (C1) (Centro de Referência CR) e Campo 2 (C2) (Serviço Ambulatorial Especializado SAE), respectivamente. São responsáveis pela cobertura de 2.165 casos de AIDS, com taxa de incidência de 39,01% por 100 mil habitantes, no ano de 2000, e de 848 casos de AIDS, com taxa de incidência de 26,35% por 100 mil habitantes, no ano de 2000 (SMS-SP, 2002). Eram compostas por profissionais com especialidades semelhantes: clínicos, infectologistas, ginecologistas e pediatras, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais, educadores em saúde pública e fonoaudiólogos, além de profissionais administrativos e operacionais, sendo que o CR (C1) contava com uma área física maior em relação ao SAE (C2). O CR (C1) está instalado em um prédio antigo, amplo, com dois pavimentos e conta com 120 profissionais. O C2 um SAE, está instalado em um prédio-padrão de centro de saúde, com um único pavimento e conta com uma equipe de 71 profissionais.
Tanto em um serviço quanto em outro, não foi observado um fluxo rígido de passagem dos usuários pelos diferentes serviços assistenciais. Apenas o atendimento por clínico/infectologista é obrigatório para todos os usuários, indistintamente, além da pós-consulta com enfermagem e da farmácia. A passagem pelos demais profissionais dependeu principalmente da manifestação da demanda pelo próprio usuário, que então foi encaminhado para outros profissionais, ou pelo oferecimento e encaminhamento por parte do médico clínico/infectologista.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, estando de acordo com os requisitos da Resolução CNS/196/96.
Resultados e discussão
Os profissionais e as demandas reprodutivas: o foco na gravidez das mulheres soropositivas
Durante a realização dos trabalhos de campo foi comum ouvir dos profissionais relatos das histórias dos usuários, em que os casos foram apresentados com riqueza de detalhes desde o processo do diagnóstico, dramas familiares, atuais dificuldades para o seguimento, etc., seguidos de impressões pessoais, sugestões de condutas e, por vezes, um certo "julgamento" das situações apresentadas. Quando se referiam a demandas reprodutivas, estas eram entendidas, primeiramente, como demandas das mulheres ligadas à concepção ou à gravidez e vistas com certas reservas.
Essas situações foram registradas com base nos relatos de diferentes profissionais, como no caso do C1, onde psicóloga comentou sobre a facilidade com que as mulheres em seguimento acabam por ter filhos. Ainda no C2, a nutricionista considerou que as mulheres em seguimento não têm a dimensão das implicações da gravidez no contexto do HIV, engravidando apesar do diagnóstico. Esse posicionamento também esteve presente em discussão presenciada no C1, onde uma das médicas fez a seguinte afirmação: "o problema não é quando as mulheres chegam grávidas, mas quando continuam engravidando mesmo após o diagnóstico".
A melhoria dos canais de comunicação foi apontada pelos profissionais como possível solução para o que julgaram falta de entendimento entre as usuárias, diante da gravidez, no contexto da AIDS. Também no C1, uma médica referiu-se aos limites do espaço das consultas para a emergência de situações como a gravidez. Relatou, durante a discussão do caso, a omissão da informação sobre a gravidez de uma de suas pacientes. Esta só conseguiu falar de sua gravidez no quarto mês de gestação, mesmo estando em uso de anti-retrovirais.
Os discursos registrados dos diferentes profissionais pareceram apontar para um posicionamento comum, ou seja, a gravidez associada à soropositividade foi tomada como um problema percebido pelos profissionais, mas não necessariamente pelas mulheres.
Quando consideraram a "falta de orientação" das mulheres como responsável pelo aparecimento da gravidez, os profissionais não consideraram a possibilidade do desejo da gravidez no plano das necessidades, ou mesmo ser esta uma contingência do modo de vida daquelas mulheres. Apostando na educação em saúde, reduziram a questão à falta de conhecimento das usuárias. Nesse sentido, não foram considerados os possíveis contextos onde a gravidez ocorreu.
Conforme registrado por Schraiber (1997), o modo consubstancial da vida prática nas diversas ações em saúde é sempre interação: relação entre duas pessoas, entre dois sujeitos, profissionais-usuários. Embora essa interação seja marcada no plano social pela autoridade técnica e científica representada pelos profissionais, o que parece estar em questão é a disciplina da vida social, anulando escolhas e modo de vida do outro (o paciente na relação). Nas suas palavras: "a desqualificação da interatividade em seu todo revela que traduzimos a maior autoridade científica, automaticamente, em decisões não apenas técnica, mas biopsicossocial, isto é, a decisão amparada biologicamente (na patologia) passa a ser a melhor escolha assistencial global, já que estaria contida no conhecimento da patologia que detectamos no doente por meio da conversa útil. Assim, a assimetria na relação passa da face técnica à ética quase sem percebermos..." (Schraiber, 1997:127).
Os problemas com a comunicação ou a falta de entendimento dos usuários acerca da condição sorológica apontada pelos profissionais, antes parece tratar-se de um conflito entre duas intenções: de um lado a intenção dos profissionais preocupados com o controle da doença e, de outro, as possíveis intenções de demandas reprodutivas dos usuários. As diferentes intencionalidades, por vezes, podem dificultar a explicitação das demandas/necessidades por parte dos usuários, já que estas poderão ser julgadas como "impertinentes".
Esse fato parece provocar algumas situações paradoxais, visto que pode implicar a omissão de esclarecimentos básicos no que se refere às questões da prevenção da transmissão vertical, além de orientações acerca da saúde reprodutiva.
Conforme registrou Paiva (2002), em estudo relativo à sexualidade de mulheres soropositivas, 53% das entrevistadas (n = 1.063), que faziam acompanhamento em centros de excelência, referiram não ter recebido informações dos serviços de saúde sobre os métodos contraceptivos e, destas, 25% referiram não ter informações sobre as probabilidades da transmissão do vírus para o concepto; 27% referiram não saber das possibilidades de transmissão durante o parto e 24% na amamentação; 24% também referiam desconhecer a medicação específica que é utilizada durante a gestação e 30% referiram desconhecer a medicação para o bebê.
As demandas reprodutivas não explicitadas pelos usuários e a contracepção tomada como demanda especial para os profissionais
As demandas reprodutivas foram tomadas como um problema a ser enfrentado pelos profissionais com a finalidade do controle da transmissão vertical, não estando presentes elementos que consideraram outros aspectos desta demanda.
As respostas que foram propostas pareceram apostar na "adesão" dos usuários às recomendações formuladas pelos profissionais, apoiadas nos conhecimentos tecno-científicos e, aparentemente, desconsiderando possíveis necessidades reprodutivas dos usuários.
Destacamos, nessa direção, o discurso de um médico infectologista do C1 que, ao referir-se aos pacientes que acompanhava, pareceu não reconhecer a existência de necessidades reprodutivas, sugerindo que a reprodução não é questão ligada às preocupações gerais dos usuários. (...) "Considera que a maioria dos pacientes não fala sobre questões reprodutivas porque tem outras preocupações" (médico C1).
Apesar dessa afirmação, foram registradas situações em que as demandas reprodutivas estiveram presentes no contexto assistencial, porém, não conseguiram ser expressas durante a consulta. Conforme registramos em sala de espera e observação de consulta, usuária primigesta (C2) aguardando consulta pós-parto referiu em sala de espera que gostaria de solicitar informações sobre utilização de anticoncepcionais orais. Durante a consulta, não chegou a formular sua demanda, talvez pela forma enfática com que a médica ginecologista se referiu à necessidade do uso de preservativo masculino.
O exemplo apresentado pareceu ilustrativo para o registro das duas perspectivas presentes no espaço assistencial da médica, ligada ao controle da infecção pelo HIV, e da usuária, ligada à necessidade do controle da capacidade reprodutiva. Nesse sentido, não se tratou do não "entendimento" da usuária em relação ao uso do preservativo, mas de seu posicionamento em buscar alternativas de controle da reprodução, embora sem explicitação durante a consulta.
A restrição ao uso de outros métodos contraceptivos e a indicação do preservativo (masculino ou feminino) pareceu não possibilitar o diálogo sobre outras alternativas, ou mesmo das dificuldades que envolvem o próprio uso do preservativo no cotidiano dos usuários.
Aparentemente, não se tratou da não existência de demandas reprodutivas. O que registramos foi uma certa "invisibilidade desta demanda" nos espaços assistenciais, dada as diferentes intencionalidades entre os usuários e os profissionais.
A preocupação com a contracepção foi explicitada pelos profissionais como demanda especial, justificada por situações como: número de filhos, situações de violência dos parceiros e situações de saúde das usuárias. Como exemplo da indicação da contracepção, registramos a discussão de um caso entre profissionais no C1, onde uma das médicas recomendava a laqueadura para uma de suas pacientes, apoiada inicialmente no quadro clínico da mulher e da criança e associando, ainda, à recusa por parte da mulher do uso de preservativo.
A indicação por laqueadura parece traduzir o entendimento dos profissionais quanto à necessidade de intervenção tecnológica no campo da reprodução, associando aquela ao controle dos riscos inerentes ao viver com HIV/ AIDS. A esse respeito, Knauth et al. (2002) registram que as decisões reprodutivas no contexto das gestantes soropositivas parecem ultrapassar os limites das decisões individuais, passando as decisões institucionais a pesar sobre o tipo de parto e contracepção.
Costa-Dias (1999) registra que a contracepção no contexto do HIV/AIDS é pautada pelos profissionais de saúde por três eixos básicos: o imperativo do tratamento, a mediação da educação (que pressupõe um determinado padrão moral) e o pressuposto da gravidez como sofrimento e risco.
As características da centralidade no controle do HIV/AIDS, nesses serviços, pareceram secundarizar, por exemplo, aspectos ligados a propostas como a do planejamento familiar. Isso porque o silêncio é a tendência observada em relação à reprodução e/ou contracepção e à intervenção pontual quando do aparecimento da gravidez ou da formulação de questões por parte dos usuários.
A atenção à gravidez
Embora o discurso dos profissionais, fora das situações de atendimento, tenha reiterado a desaprovação em relação à gravidez e soropositividade, durante as consultas e/ou atividades grupais direcionadas às gestantes (C2) houve uma certa relativização da questão. Exemplos foram registrados nas observações do C2: no grupo de gestantes, durante atividades educativas e em consultas de pré-natal, o status sorológico foi secundarizado. A particularidade da situação sorológica só foi abordada a partir da solicitação dos usuários, por meio da manifestação de alguma dúvida ou comentário em torno do tema.
Um exemplo dessa situação foi registrado na observação de primeira consulta de pré-natal realizada no C2. Esta se iniciou confirmando a gravidez da usuária, que estava acompanhada pelo parceiro. O parceiro passou a fazer muitas perguntas relativas ao tratamento que a usuária já vinha realizando e sobre as possibilidades de infecção do bebê. A médica informou que o tratamento só poderia ajudar e, quanto à possibilidade da transmissão para o bebê, começou a explicar por meio dos percentuais epidemiológicos de soroconversão das crianças com o tratamento profilático. Substitui em seguida esse discurso, afirmando que, na sua prática, todos os bebês soroconvertem. Nesse momento, a usuária tomou a palavra para perguntar sobre as possibilidades de laqueadura, e a médica sugeriu que ela apresentasse essa preocupação durante a reunião do grupo de gestantes, indicando que, além da laqueadura, havia a possibilidade da vasectomia, à qual o companheiro se posicionou contrariamente.
A informação acerca das possibilidades de transmissão vertical no caso específico traz insegurança, principalmente quando se trata de mulheres com AIDS e em uso dos anti-retrovirais. As explicações da médica, apoiadas nas particularidades daquele ambulatório, afirmando que todas as crianças soroconvertem, poderiam referir-se às dificuldades em lidar com o sofrimento em relação às possibilidades de infecção do concepto.
Em relação à solicitação por laqueadura, o profissional aparentemente também parece "eleger" a laqueadura como método preferencial para a situação, apoiado talvez no julgamento das condições da paciente: em uso de anti-retrovirais, terceira gestação, tendo uma filha viva e infectada pelo HIV. Nesse ponto houve, ainda, a ponderação da médica em relação à possibilidade da vasectomia, mas frente à negativa do parceiro, pareceu haver um certo "conformismo" diante da situação, em que o controle da reprodução recai sobre a responsabilidade exclusiva da mulher.
As respostas construídas a partir do reconhecimento da demanda: o desejo pela gravidez
Teremos neste bloco a oportunidade de examinar como o saber prático dos profissionais opera o cotidiano do trabalho, diante da manifestação do desejo por gravidez. A explicitação dessa necessidade obriga o profissional a considerá-la como demanda para o serviço e buscar alternativas tecnológicas, dentro dos processos de trabalhos, que possam melhor orientar ou conduzir a situação. Nessa direção, a condução de um caso no C1 propiciou a emergência de alguns elementos presentes nessa prática.
Médica infectologista (C1) conta o caso de uma de suas pacientes que, durante a consulta, manifestou o desejo pela gravidez. Diante da manifestação da usuária, a médica resolveu trocar o esquema de anti-retrovirais, comentando que, quando as mulheres querem engravidar não adianta fazer ponderações. Reconheceu a necessidade de buscar alternativas para esses casos. Nesse sentido, propôs que o caso fosse discutido em reunião com equipe multiprofissional.
Chamou a atenção no discurso da médica um certo "reconhecimento da autonomia das usuárias" em relação às decisões reprodutivas, assim como sua clareza em expressar posições pessoais em relação à situação. Esse posicionamento possibilitou assumir a manifestação do desejo da usuária como demanda para o serviço de saúde, exigindo a criação de estratégias, como a mudança de medicamentos compatíveis com uma possível gravidez em situação de soropositividade.
Com base na discussão do caso da referida usuária, surgiram outros elementos sobre gravidez em mulheres soropositivas ou com AIDS, o que possibilitou a formulação, por parte dos técnicos, de possíveis alternativas assistenciais, como: fornecer informações sobre o momento adequado para uma gravidez, considerando a situação clínica da mulher, incorporar orientações sobre período fértil para que a exposição seja reduzida e a indicação da contracepção de emergência para aquelas que não desejam engravidar e que mencionam falha do preservativo. Ainda indicam a necessidade de ampliar canais de comunicação por meio do oferecimento de grupos educativos para melhorar a informação sobre gravidez versus tratamento versus condições clínicas.
Apesar dos profissionais reconhecerem como necessidade a criação de espaços que melhorem sua comunicação com os usuários, objetivando reforçar as condutas, a ampliação de canais de comunicação permitiria a emergência de diferentes posições sobre o tema gravidez e soropositividade. "...De fato, o que caracteriza a educação no sentido pleno da palavra não é a simples preocupação de um sujeito diante de um objeto (o objeto de trabalho do educador), por mais cuidadosa que seja a delimitação desse objeto. Educar é perceber e trabalhar com a efetiva presença de um sujeito diante do outro sujeito. Justificando a presença de um diante do outro, realizando mesmo a possibilidade dessa mútua presença, encontra-se, sim, um objeto, o objeto de aprendizado" (Ayres, 2002:17).
Conclusões
A necessidade de garantir interlocuções: o diálogo capaz de gerar cuidado
Para finalizar nossa discussão, voltaremos a atenção para o plano das necessidades, por meio do discurso de uma usuária do C1. Ao pontuar suas expectativas em ser acolhida em outros aspectos de sua vida que não se referiam exclusivamente ao tratamento, chama a atenção para uma outra "modalidade" assistencial que inclui a escuta e acolhimento para além do controle da doença e a aplicação da técnica com essa finalidade. Em seu discurso, demarca a dimensão relacional do espaço assistencial e destaca sua existência particular, reivindicando sua presença, não como portadora de uma patologia, mas como pessoa que quer partilhar outros aspectos de sua vida com o profissional responsável por seu seguimento.
A riqueza desse discurso, como capaz de contribuir para nossa conclusão, é sua capacidade de sintetizar as questões que tentamos apresentar como importantes para o acolhimento das demandas/necessidades reprodutivas no contexto de atenção às pessoas vivendo com HIV/AIDS, ou seja, a necessária consideração dos aspectos da vida desses usuários para além dos protocolos, onde as questões reprodutivas aparecerão como possibilidades para a vida dessas pessoas.
Esse nos parece ser um dos caminhos possíveis para o acolhimento das demandas reprodutivas, que implicam o reconhecimento das práticas assistenciais como espaços relacionais capazes de criar e recriar práticas que extrapolam o plano tecno-científico. "Apóia-se na tecnologia, mas não se subordina a ela, subverte-a. Estabelece-se a partir e em torno dos universais que ela carreia, mas cobra-lhe os limites" (Ayres, 2000:119).
Os sujeitos (profissionais e usuários) permanecem na cena assistencial tensionando, cada um valendo-se de sua perspectiva particular, projetos em relação ao viver com HIV/ AIDS e, por vezes, as possíveis demandas reprodutivas são julgadas como impertinentes por parte dos profissionais. Nesse sentido é que o conflito é colocado: como duas regras ou normatividades eticamente aceitáveis a depender do contexto a que essas se referem.
Como resolver esse conflito? Não há de antemão uma solução, não há uma forma operacional sempre correta, uma ética que funcione como lei científica que possa ser ensinada ou aprendida do mesmo modo (Schraiber, 1997).
A perspectiva da interação como motivadora de ações que vão para além do "tratar" aproxima as práticas assistenciais do "Cuidado". O Cuidado como promoção de bem-estar para além da correção de distúrbios não tira do sujeito que é cuidado o poder de juízo sobre suas necessidades (Ayres, 2000). Essa perspectiva implica a exigência de respostas assistenciais, por parte dos serviços, mais próximas às necessidades de saúde de indivíduos e coletividades.
Para finalizar, chamaremos ainda a atenção para essas exigências: a perspectiva do Cuidado impõe às práticas assistenciais o compartilhamento de critérios normativos entre profissionais/usuários, por vezes não congruentes, mas que, ainda assim, demarcam o encontro entre dois sujeitos, sendo esse encontro o espaço para a reconstrução de intersubjetividades (Ayres, 2000), e se valorizado, é capaz de produzir, para além de tecnologias, apoiando a ação em sabedorias práticas que indicam o caminho não só para respostas às necessidades reprodutivas, mas para práticas em saúde verdadeiramente emancipatórias.
Agradecimentos
Às professoras Dras. Maria Regina Barbosa e Daniella Knauth e equipe do Núcleo de Estudos da População (NEPO), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) pelas orientações e apoio ao projeto; a Neide Emy Kurokawa e Silva e Sônia N. Hotimsky pelas leituras críticas e sugestões ao texto final.
Este artigo é integrante da dissertação de mestrado titulada Práticas Assistenciais em Saúde e Direitos Reprodutivos de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS: Um Diálogo Possível? Apresentada ao Departamento de Saúde Materno Infantil, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. A pesquisa foi realizada com o apoio da Fundação Ford intermédio do NEPO/ UNICAMP.
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Recebido em 30 de maio de 2003
Versão final reapresentada em 29 de setembro de 2003
Aprovado em 16 de outubro de 2003