DEBATE DEBATE
Debate sobre o artigo de Delma Pessanha Neves
Debate on the paper by Delma Pessanha Neves
Denise Fagundes Jardim
Programa de Pós- graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. dfjardim@portoweb.com.br
É uma grande satisfação poder participar deste debate e reencontrar-me com tuas propostas de análise sobre "usos do álcool". Eu agradeço o convite dos editores, que além de me conceder o privilégio de participar deste debate, me colocam novamente em contato com teu modo reflexivo e atuante de fazer antropologia.
Primeiramente, gostaria de situar de que ângulo este debate vem me instigando. Como sabes, e devo explicitar aos leitores, minha experiência com o tema "alcoolismo" está mais vinculada a uma preocupação e à necessidade de compreender fatos e contextos sociais que envolvem o uso de bebidas alcoólicas, do que um envolvimento direto em settings de pesquisa com aqueles que propõem ou se submetem a terapias.
É do ponto de vista de quem realiza trabalho de campo em antropologia que me permito algumas considerações sobre o artigo exposto, no sentido de provocar e te ouvir mais a respeito do tema. Em verdade, depois de observar outras experiências com os debates sobre o uso do álcool, partilho de tua preocupação em aproximar perspectivas analíticas que estão envolvidas com terapias disponíveis para o alcoolismo. Acredito que, assim como a prática dos terapeutas, o fazer etnográfico tenha de constantemente ser repensado perante novas exigências e, nesse ponto, gostaria de compartilhar algumas preocupações que me ocorrem ao ler teu artigo.
Referes a um "estado da arte" da compreensão dos antropólogos sobre os usos do álcool. Levantas questões que, a título de provocação ao debate, eu me permito carregar nas tintas, sublinhar e enfatizar. Minhas considerações referem-se a uma crítica possível aos trabalhos dos antropólogos, me incluindo como parte criticável e que teu artigo tangencia de maneira muito suave. Vou me ater a primeira parte do artigo, embora esse circuito da estigmatização me pareça muito instigante e gostaria de mais detalhes sobre essa moralização e como se entrelaça aos processos terapêuticos. A segunda parte de teu artigo trata da desqualificação daqueles que bebem e sofrem duplamente os custos da bebida e da estigmatização. Não vou me ater a essa segunda questão, da moralização e da estigmatização do doente, não menos importante, mas penso que a questão do sofrimento que emerge no circuito da bebida alcoólica é central para uma análise do alcoolismo.
É inevitável encontrar-me nessa síntese que inicia teu artigo, em que pese já passados pouco mais de dez anos de minha etnografia sobre masculinidade, em que o uso de bebidas era um dos acessos às falas masculinas em grupos populares. De fato, eu não aprecio muito as fórmulas terapêuticas absolutas e procedimentos únicos. Da mesma forma, prefiro as interpretações antropológicas mais circunscritas a contextos específicos do que aquelas que estendem interpretações válidas a determinados grupos e situações, absolutizando suas interpretações.
Preocupa-me a leitura que dispomos das etnografias. Mesmo que os antropólogos discorram sobre a necessidade de contextualizar os usos do álcool, parece que a leitura que temos feito das etnografias produzidas tem dado margem a uma absolutização de seus resultados e uma livre transposição de suas interpretações de um contexto ao outro. Contextualizadas, elas revelam tramas muito específicas e peculiares aos contextos observados.
Por intermédio de tua síntese, as etnografias parecem complacentes como os usos e abusos das bebidas e, por vezes, resguardados na literatura clássica, acabamos cegos perante o sofrimento (e o drama social) externalizado na ingestão de bebidas alcoólicas. Aqui parece que estou fazendo um mea culpa, mas a diferença entre meu setting de pesquisa e do circuito do alcoolismo explicitado no artigo, parece que é o da ocultação/explicitação dos discursos sobre o sofrimento por parte dos informantes. Em meu setting, seguia a retórica nativa. Eu diria, retrospectivamente, que o enfrentamento com o tema do uso do álcool quase sempre parece levar a perspectivas já consagradas na antropologia, mas há riscos nisso. Ao colocar em relevo o "ponto de vista do nativo", essa que seria a principal virtude da etnografia, por certo pode embaçar outras faces dessa questão, e não deixa devidamente explícito que algo culturalmente concebido também está sob o signo da negociação de significados, da violência simbólica, da pressão em eliminar ou conformar a atitudes discrepantes.
Salvaguardados pelo ofício, embuídos da necessidade de retratar "o ponto de vista do nativo", o lugar da observação e os atores envolvidos escapam das pressões de outras falas sobre os informantes, em seu mundo social, ou seja, o que é dito sobre eles por seus familiares ou amigos.
Todavia, lendo o artigo, antes de descartar os clássicos, penso que talvez tenhamos de repensar o modo como apresentamos as etnografias que referem aos usos do álcool, para antropólogos e para os leitores da antropologia. Ainda que estejamos compartilhando a premissa de que existam prescrições "culturais", controle social, será que falhamos na explicitação do sofrimento que envolve a dinâmica dos atos de beber?
De outro lado, compartilho com a idéia de que nesse tema, me parece que a interdisciplinariedade poderia usufruir das etnografias, de sua predileção por compreender contextos, de sua capacidade de compreender relações sociais em que está envolvido o sujeito que bebe, de seu mundo social, sem se levar pela urgência de interpretações transculturais (porque informadas em experiências diversas) e válidas a diferentes contextos.
Estas certezas tão cruciais e cotidianas para aqueles que estão envolvidos com práticas terapêuticas, poderiam resultar em uma descontextualização do sujeito concreto de suas relações sociais e de sua situação de "sofrimento". Voltamos a um questão muito difícil, a de manter um debate sobre a extensão e plasticidade do sofrimento, sem necessariamente simplificarmos a questão e exigirmos consensos sobre suas causas.
Enfim, o que seria uma perspectiva antropológica sobre o alcoolismo? Parece uma encruzilhada entre a antropologia que focaliza os usos de bebidas alcoólicas (quase sempre estudos comparativos que têm como fio condutor "estados alterados da consciência") e uma antropologia da saúde/doença que, de um modo mais amplo, eu preferia chamar de uma antropologia sobre o sofrimento.
A dúvida parece beneficiar o trabalho do antropólogo, dada a ambigüidade e porosidade dessa encruzilhada. Estamos tratando do alcoolismo ou de maneiras de sofrer e de sofrimentos (mais amplos e mais difusos) que cruzam seus caminhos em uma mesma sala de espera, e que adquirem uma mesma classificação, e até uma redução de sua complexidade como alcoolismo.
De qualquer forma, os circuitos de bebidas se apresentam de modos muito diversos, desde sua produção e comercialização, até o modo como se tem acesso ao álcool e a quais bebidas (industrializadas ou destiladas em larga escala). Essa variedade tem transpassado as fronteiras entre sociedades tradicionais e industriais, a ponto de não podermos mais dizer que uma etnografia dos usos do álcool na "nossa sociedade" ou sobre a de "sociedades tradicionais" sejam previamente conhecidas.
Concordo que estamos mais familiarizados com os clássicos sobre os usos do álcool (em sociedades tradicionais), mas há uma produção recente que encara o circuito da alcoolização como algo mais vasto e perturbador do que suporta o controle social disponibilizado na "aldeia", exigindo arranjos próprios e revitalizando tradições para estabelecer um controle social efetivo. E, portanto, mesmo evidenciando modos tradicionais de uso e ingestão das bebidas, ou uma leitura nativa do "alcoolismo" como um mal da sociedade do branco, a interpretação dos antropólogos sobre o que provoca e como se manifesta, está sempre impregnada da busca do ponto de vista dos nativos sobre o corpo e as origens da doença e, portanto, focalizando uma trama específica do sofrimento. Portanto, essa seria uma terceira perspectiva (nem a de análise em sociedades tradicionais, nem a encapsulada na "nossa" sociedade) que beneficiaria a perspectiva dos etnógrafos sobre os usos do álcool. Como entendi (e estou correta na minha compreensão?), qualquer que seja "a sociedade", deveríamos encarar de frente a questão do sofrimento e o drama social, sem glamourizar o controle social e a cultura.
Me preocupa que a cooperação interdisciplinar tenha que partir de consensos prévios e transculturais sobre a necessidade de resgatar indivíduos do sofrimento e que o sofrimento é igual à bebida, sem verificar um circuito mais amplo em que se encontram a bebida, os bebedores e seu mundo social.
Em segundo lugar, parece-me que a interdisciplinariedade do debate reúne agentes que norteiam seu trabalho sob as mesmas urgências. Como tens encarado as arestas deste debate, que não necessariamente contemplam as mesmas exigências, certezas e, por vezes, agregam posturas pouco convergentes?
Será que o ingresso neste campo de debates, circunscrito ao tema "alcoolismo", não acaba pressionando recortes metodológicos, a urgência de questões específicas (e instrumentais) e elegendo settings de pesquisa como aqueles que por pressuposto seriam encontradas as chaves de compreensão à questão (em detrimento de outros)? Essa precipitação tem conduzido a explicações individuais da doença, em detrimento de uma análise mais complexa do fenômeno? Como tens reagido a esse tipo de pressão, de interpretações transculturais sobre os usos do álcool e de um campo de debatedores aparentemente tão estruturado?