DEBATE DEBATE
Debate sobre o artigo de Delma Pessanha Neves
Debate on the paper by Delma Pessanha Neves
Beatriz Carlini Marlatt
Instituto de Prevenção e Atenção às Drogas, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, Brasil.
Addictive Behaviors Research Center, University of Washington, Seattle, United States. bia@u.washington.edu
O artigo de Delma Pessanha Neves é extremamente bem-vindo, levando-se em conta o estado de indigência crônica vivenciada no Brasil, em termos de reflexão antropológica do uso intenso de álcool.
Apesar da não se referir a obras clássicas nesse campo, como o estudo antropológico Druken Comportment 1 e as excelentes pesquisas históricas do sociólogo Harry Levine 2,3,4 sobre os movimentos de temperança e sua articulação com a ética protestante e a ideologia capitalista de ordem e eficiência, o texto de Neves nos brinda com uma reflexão madura sobre as questões metodológicas que a ciência antropológica se depara ao querer estudar indivíduos e grupos sociais que se embriagam de forma sistemática.
A despeito dessas inegáveis qualidades, o texto de Neves me incomodou bastante, na medida em que na tentativa de validar seu argumentos ela simplifica dois processos e ignora nuances que são vitais para profissionais de outras áreas, que também se dedicam a entender o comportamento habitual de beber intensamente. Explico.
Pelo texto apresentado, tem se a nítida impressão de que epidemiólogos, sociólogos e profissionais de saúde abraçam unanimemente a noção de que aqueles que bebem pesadamente são portadores de uma doença chamada alcoolismo, definida com base em um conjunto de sinais e sintomas descritos na literatura especializada.
Isso não é verdade, para, acredito eu, benefício de todos. Para me ater somente a um desses campos profissionais, parcela significativa de profissionais de saúde de várias formações vêm cada vez mais questionando a definição do alcoolismo como doença, preferindo abraçar a noção de um comportamento aprendido e modelado socialmente, que eventualmente traz complicações na área de saúde física e de desempenho social para alguns indivíduos.
Essa nova noção tem tido por sua vez implicações gigantescas no que se diz respeito à maneira de abordar as pessoas que bebem intensamente. Ao invés de brindá-las com o rótulo de alcoolista e sugerir que eles entreguem seu destino nas mãos de um poder superior, dado sua impotência de agir de modo autônomo, esses novos profissionais trabalham de modo não rotulador, não acusador, e constroem alternativas de comportamentos de beber com base no desejo do paciente. Ainda, procuram oferecer ao paciente informações sobre seu estado de saúde física e mental que os instrumentalizem a fazer escolhas sensatas, sem no entanto impor um objetivo terapêutico rígido. Ignorar essa abordagem não tradicional, construída a partir dos anos 80, e fortalecida desde a consolidação do movimento de redução de danos no quadro internacional, é não fazer jus à luta política e ideológica de importantes setores da nossa sociedade.
Outra simplificação, a meu ver, é a decisão de Neves de estudar alcoolistas tendo como amostra os freqüentadores dos Alcoólicos Anônimos (AA). Embora compreensível, na medida em que estuda os indivíduos baseando-se na maneira como eles próprios se percebem, respondendo assim a princípios metodológicos caros à ciência da Antropologia, a escolha de Neves acaba, de modo certamente não intencional, limitando em muito a compreensão do fenômeno da ingestão intensa e sistemática de bebidas alcoólicas.
O usuário de bebidas alcoólicas que freqüenta e se beneficia com a filosofia dos AA tem um perfil muito específico de bebedor, que responde a uma parcela diminuta de pessoas que bebem pesadamente e que se reconhecem como tendo um "problema" com bebidas. Apesar da falta de pesquisas nessa área, estima-se que somente metade daqueles que comparecem a uma primeira reunião de AA vai concordar em ir a uma segunda reunião e um proporção bem menor vai aderir ao movimento e aceitar sua ideologia. Essa baixa adesão é comum para qualquer modalidade de serviços oferecida para pessoas que bebem intensamente, não sendo de modo nenhum uma indicação de inadequação do movimento de AA. Mas para aderir aos AA é preciso ser um tipo muito singular de bebedor: alguém que aceite a rotulação de alcoolista, e se beneficie com a noção de vitimização e impotência decorrente desse rótulo.
Assim, a escolha de Neves acaba por negligenciar parcelas enormes de indivíduos que bebem muito e reconhecem seu comportamento como um problema para si e para a sociedade, mas não estão dispostos a ser rotulados como portadores de uma doença progressiva, fatal e incurável, como é requerido em um dos famosos 12 Passos dos AA. Esses indivíduos vão eventualmente encontrar os profissionais de saúde que adotam abordagens alternativas como as descritas nos parágrafos anteriores, ou vão até mudar de comportamento sem nenhuma ajuda profissional, como documenta os estudos de Linda Sobell & Mark Sobell 5, no Canadá, e o trabalho não acadêmico, mas não menos rigoroso de Anne Fletcher 6, nos Estados Unidos.
De todo modo, se de um lado há, a meu ver, necessidade de melhor trabalhar essas questões no trabalho de Neves, há também, como já apontado, muito o que celebrar em relação ao texto articulado e crítico que ela nos brinda. Que o diálogo continue, para enriquecimento de todos.
1. MacAndrew C, Edgerton R. Drunken comportment: a social explanation. Chicago: Aldine; 1969.
2. Levine HG. The discovery of addiction. Changing concepts of habitual drunkenness in America. J Stud Alcohol 1978; 39:143-73.
3. Levine HG. The alcohol problem in America: from temperance to alcoholism. Br J Addict 1984; 79:109-19.
4. Levine HG. Temperance cultures: concern about alcohol problems in Nordic and English-speaking cultures. In: Edwards G, Lader M, Drummond C, editors. The nature of alcohol and drug related problems. New York: Oxford University Press; 1991. p. 16-36.
5. Sobell MB, Sobell LC. Problem drinkers guided self-change treatment. New York: Guilford Press; 1993.
6. Fletcher AM. Sober for good new solutions for drinking problems. New York: Houghton Mifflin Company; 2001.