DEBATE DEBATE

 

Alcoolismo: acusação ou diagnóstico?

 

Alcoholism: indictment or diagnosis?

 

 

Delma Pessanha Neves

Programa de Pós-graduação em Antropologia Social e Ciência Política, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta reflexões orientadoras da construção do consumo de bebidas alcoólicas como objeto sociológico, inclusive das formas proscritas articuladas à definição de patologias ou ao desrespeito a regras morais. Mediante considerações sobre o investimento acumulado por processo de pesquisa em curso, a autora destaca os dilemas éticos e epistemológicos enfrentados por antropólogos que se dedicam ao tema.

Alcoolismo; Consumo de Bebidas Alcoólicas; Transtornos Relacionados ao Uso de Álcool; Sociologia


ABSTRACT

This article presents reflections on how alcohol consumption is conceived as a sociological object, including proscribed forms linked to the definition of diseases or disregard for moral norms. Through considerations on the accumulated investment in a research process currently under way, the author highlights the ethical and epistemological dilemmas faced by anthropologists who focus on this issue.

Alcoholism; Alcohol Drinking; Alcohol-Related Disorders; Sociology


 

 

Nas ciências sociais, tem-se acompanhado com vigor uma série de situações qualificadas como problemas sociais contemporâneos, como os decorrentes da presença da AIDS, do uso de drogas ilícitas, da violência especialmente urbana. Mas tem-se dado menor peso ao uso definido como problemático de bebidas alcoólicas. Talvez pela poluição de perspectivas definidoras que articulam tais usos a uma definição de morbidade, especialmente psiquiátrica. Constituindo-se em problema a partir da confluência de domínios biológicos, psicológicos e sociais, a análise do uso "patológico" de bebidas alcoólicas exige investimentos exegéticos e reflexões metodológicas sistemáticas, de modo a ser construído como objeto sociológico.

O carrefour de definições (biológicas, psicológicas e sociológicas) não teria em si razão para se constituir em limitações de difícil transposição, pois que as ciências sociais têm acumulado saber sobre tais ambigüidades. O domínio da sociologia foi construído pela depuração de tais labirintos de perspectivas. Refiro-me aos investimentos metodológicos deixados por Durkheim 1, ao estabelecer que o suicídio poderia ser estudado enquanto fenômeno social. Contudo, o empenho em demarcar fronteiras disciplinares, ao mesmo tempo que consagrou o reconhecimento de objetos sociológicos, fragmentou o saber e secundarizou aspectos relevantes das socialmente supostas ou qualificadas patologias (para uma análise sobre problemas metodológicos referentes ao estudo de "patologias sociais", ver: Becker 2 e Velho 3).

O movimento de temperança do século XIX, emergido principalmente na sociedade americana, imputou uma imagem profundamente negativa aos bebedores 4,5,6. O desenvolvimento de saberes referidos ao alcoolismo como doença (a partir de Huss 7) colaborou para enfatizar seus aspectos negativos e para mobilizar a construção de controles sociais 8,9,10,11,12,13,14. Por isso, o interesse da pesquisa sobre a ingestão de bebidas alcoólicas tem sido mais concentrado sobre a embriaguez do que o beber e o beber, mais como desvio individual do que comportamento social 15.

Por tais circunstâncias, é preciso ter cuidado para não se cair na contraposição entre antropologia da saúde/doença ou antropologia do beber 13. Ambas estão referidas aos estudos de princípios de organização social e de construção das regras que presidem práticas coletivas. As transgressões não podem ser entendidas se apartadas das prescrições exaltadas.

Neste artigo, proponho-me a apresentar questões metodológicas que referenciam mas também são decorrentes de análises já elaboradas com base em situações de pesquisa empírica (este texto compõe um conjunto de análises sobre maneiras de beber e alcoolismo, elaboradas com base em pesquisa empírica realizada em bares e grupos de Alcoólicos Anônimos, sediados em bairros populares do Município de São Gonçalo, Estado do Rio de Janeiro. O trabalho de campo ocorreu entre novembro de 1999 e junho de 2001). Alguns dos problemas considerados são inerentes à perspectiva antropológica, quando aplicada ao estudo do alcoolismo. Como os termos alcoólatra e alcoolismo são ao mesmo tempo signos de diagnóstico, de insulto e de injúria, a explicitação das estratégias de controle de etnocentrismos torna-se um a priori metodológico irrecusável.

 

O beber como ato social: sobriedades e exaltações

O beber é um ato social embebido no contexto de valores, atitudes, normas, modos de classificação do tempo e concepções de realidade, muito freqüentemente implícitos nos comportamentos referentes 16. A consagração dessa perspectiva enaltece a descrição etnográfica de múltiplos casos e situações demonstrativas da diversidade de modos sociais de ingestão de bebidas alcoólicas (sobre essa diversidade de maneiras de beber ­ freqüência, características das bebidas, quem bebe, o que bebe, quando e como bebe etc. ­, ver: Barthes 17; Bateson 18; Bernand 11,19,20; Bihl-Willete 21; Bott 22; Bourdieu 23; Boustany 24; Caro & Morin 12; Castelain 25,26,27; Desjeux et al. 28; Elias 29; Fabre-Vassas 30; Faugeron 31; Gurr 32; Hell 33; Houtaud 34; Jardim 35; Le Guirriec 36; Machado-da-Silva 37; Nourrison 38; Véquard 39). Por isso, torna-se mais adequada a referência a maneiras de beber, construções sociais orientadas por atitudes e crenças que definem proscrições e prescrições.

Cada sociedade tem colocados em relevo os padrões institucionalizados de uso das bebidas alcoólicas, a variedade de modos de produção, de motivos e de oportunidades construídas para o ato social de alcoolização. O catálogo dos motivos que referenciam as maneiras de beber não corresponde, necessariamente, ao resultado do comportamento, mas do aprendizado das atitudes culturalmente atribuídas aos diversos usos.

Para que as bebidas sejam acessíveis, é fundamental que se conheça o manual de produção, de uso e de ingestão. A transferência geracional destes saberes inclui o processo de aprendizagem sob dosagens repetidas, para permitir a confiante identificação dos efeitos reconhecidos pelo ampliado e ampliável catálogo de motivos. O processo de aprendizagem da transição mediada pela bebida inclui a superação de efeitos desagradáveis, como freqüentemente acontece com a primeira experiência com o tabaco, com o álcool etc. 2,3.

Cada sociedade tem estabelecidos os momentos de beber (os diferentes significados atribuídos aos variados contextos), ou seja, os modos designados de periodização do tempo. O comportamento relacionado ao momento de beber serve para organizar a experiência temporal, devendo então ser estudado na articulação com sistemas de estruturação social, orientações culturais e condições ecológicas 16,40.

A definição do contexto possível já é indicadora das formas de controle social. Beber em grupo acena para a proscrição de que não se deve beber sozinho ou ao desabrigo dos valores e afiliações comunitárias. Beber isolado, na maior parte dos casos, não se associa a um costume da sociedade, salvo em atividades periféricas de grupos relativamente insulados, ou sociedades referidas a ideologias individualizantes. A emergência da concepção de alcoolismo é expressiva da consolidação dessas ideologias, pois que caldatária do contexto de construção das sociedades urbanizadas, do deslocamento individualizado de pessoas e das alternativas de acesso à bebida sob improviso, no curso de uma jornada, no retorno para casa 41.

Mesmo que a ingestão de bebidas alcoólicas seja valorizada para alcançar ou alterar estados de consciência e de expressão de sentimentos, essa transição prescrita deve ocorrer em contextos especiais, geralmente associados à ingestão de alimentos e à facilitação de atividades interpessoais, portanto, administrada pela situação coletiva.

Por isso, é importante distinguir e contextualizar os significados dos termos culturais que demarcam as distinções: alcoolização, embriaguez, alcoolismo, bebedor, bêbado, embriagado, alcoólatra, alcoólico, alcoolista, alcoólico ativo, alcoólico passivo etc. Eles dizem respeito aos graus de tolerância e às atitudes de cada um destes diferentes estados. Em várias sociedades não é o álcool que é condenado, mas o comportamento desviante dos indivíduos. Em conseqüência, há uma recorrente valorização do homem que sabe beber sem se alcoolizar e sem interferir no desempenho de papéis a ele atribuídos.

Nas sociedades ou nos contextos em que a alcoolização faz parte de um código de polidez, o abstinente é socialmente constrangido. Ela aparece de forma institucionalizada nas relações que se objetivam nos espaços de celebração do rito social de constituição do bom bebedor, como é o caso dos bares. A alcoolização se associa, para alguns, impositivamente, ao reconhecimento da internalização da identidade masculina 35,37,42. Nessas situações, a obrigação do uso do álcool como código de polidez tem a função de "lubrificante social" 21,26,28,38.

Em decorrência desta função, alguns segmentos profissionais se crêem obrigados a consumos freqüentes ou mesmo a hiperconsumos, bem como a condicionamentos. O estranho que a eles deve se integrar, incorpora o consentimento e a imitação desses hábitos, assimilando-os como próprio 26,43,44.

No bar, templo consagrado à alcoolização controlada, a bebida estabelece entre os homens um jogo de trocas e vínculos sociais. Por isso, o anonimato e o isolamento são provocativos da desconfiança, da suspeita e da exclusão das redes de relações que se instituem entre fregueses e donos de bar 45. A desvalorização do homem que recorrentemente aí bebe sozinho, evidencia a rejeição ao desvio comportamental: o rompimento com as reciprocidades estabelecidas nos bares.

Em cada sociedade, o estabelecimento do contexto da ingestão de bebida também se objetiva na construção de uma hierarquia entre as bebidas ou na construção de um significado especial para cada uma delas. É o que bem expressa o uso de bebidas variadas durante ou depois das refeições; ou as desqualificações atribuídas a aguardentes, em suas mais diversas possibilidades.

Torna-se então evidente que as propriedades simbólicas atribuídas às bebidas produzem usos ritualísticos próprios. Seus atributos só podem ser entendidos pelo estudo dos sistemas de crenças criados em torno delas. Em conseqüência, o ato social de ingestão da bebida alcoólica não pode ser estudado sem que sejam levados em consideração os sistemas de crenças no controle do comportamento e da socialização.

 

O alcoolismo como objeto de estudo antropológico

As resistências e as reticências dos antropólogos em relação ao reconhecimento do alcoolismo como objeto de estudo se devem a várias posturas erigidas em dogmas epistemológicos. Uma delas é a referência obrigatória à relatividade cultural, posto que o uso do álcool como problema e seu coadjuvante, o alcoolismo, estão ausentes em várias sociedades, embora a embriaguez seja freqüente e, por vezes, altamente estimada (sobre a historicidade da noção de alcoolismo, ver: Ancel & Gaussot 8; Bernand 11; Huss 7; Jellinick 14; Sournia 46; Suissa 47).

Esforçando-se, no início do século, para se distinguir dos preconceitos dos missionários e administradores, que tendiam a ampliar o problema, acautelando-se da imposição de uma visão inerente à sua própria sociedade, os antropólogos negligenciaram a questão do uso culturalmente inadequado de bebidas.

Segundo interpretações apresentadas por resenhadores 48,49 ­ sob o a priori de que trabalhos etnográficos sobre uso de bebidas são afetados por definições culturais ­, as perspectivas dos antropólogos são diferentes conforme a consagração do conceito de alcoolismo. Na literatura etnográfica que antecede aos movimentos de interdição do uso de bebidas alcoólicas, especialmente nos Estados Unidos, a "extrema" insobriedade foi mais recorrentemente registrada. Por isso, os resenhadores acima referidos entram em acordo quanto à constituição desse campo temático (na Antropologia) por volta da década de 40. Mas a contribuição analítica dos antropólogos se amplia a partir da década de 50, em face, inclusive, da difusão do uso do álcool em "sociedades primitivas" sob colonização; ou pela relevância temática da associação entre a difusão do uso e o controle de bebidas pela conversão religiosa 9,10.

O estudo do alcoolismo entre os antropólogos foi então estimulado pela tomada de posição política frente aos efeitos ­ cultural e socialmente ­ catastróficos da inclusão da ingestão do álcool entre os membros das sociedades não-ocidentais ou não-industriais. Entretanto, a partir da década de setenta, os antropólogos expandem seu campo de ação para o estudo das sociedades industriais. Incluem fontes e dados utilizados por especialistas da análise e da intervenção no uso e abuso do álcool. Integram equipes de serviços de clínicas médicas e centros acadêmicos sobre o tema. Incorporam como segmentos etnografáveis os trabalhadores e a chamada classe média, mais recentemente integrada massivamente a consumos conspícuos e distintivos mediados pela bebida alcoólica. Portanto, os antropólogos se engajam com outros profissionais especializados no estudo do uso do álcool enquanto patologia. Esta inclusão, contudo, mantém a definição epistemológica do superdimencionamento do problema ou da patologia como qualificações emergidas historicamente na cultura ocidental.

Incluindo-se no debate pela relativização da dimensão do problema, os antropólogos (especialmente americanos) provocaram mudanças na perspectiva analítica dos que adotam a definição do uso abusivo do álcool como patologia. Colocaram em causa a associação entre o alcoolismo e os efeitos anômicos, por meio da inversão da perspectiva: a anomia, se aceita enquanto categoria explicativa da dinâmica social, seria causa e não conseqüência. Mas deram pouca contribuição ao entendimento dos princípios éticos de constituição de uma patologia social, porque mantiveram uma perspectiva funcionalista. Destacaram o uso do álcool pelo seu efeito relaxador dos constrangimentos culturais e facilitador de aprendizados diversos, conforme cada cultura. Reivindicaram a exemplaridade das situações de ingestão de bebida alcoólica para o estudo das formas de pensamento e ação que orientam o comportamento social, inclusive o referido por processos mentais inconscientes 22.

Room 49, elaborando uma resenha de textos apresentados em alguns congressos, sistematizou os modos de constituição da antropologia americana voltada para o tema: em contraste com a epidemiologia. Esta contraposição, destaca, cada vez mais se acentua pela reprodução ampliada das sociedades integradas ao campo etnográfico, especialmente os segmentos sociais dos quais os antropólogos são originários.

Entre os antropólogos que se ocuparam do estudo das maneiras de beber e da relativização dos significados do termo alcoolismo, destaco ainda a contribuição de Mary Douglas, uma referência obrigatória. No texto em que apresenta os comentários introdutórios ao livro Constructive Drinking-Perspectives on Drink from Anthropology, Douglas 50 reconhece que os antropólogos têm valorizado as investigações sobre os modos de pensamento e ação referentes à bebida, desde que ressalvada a historicidade da constituição do alcoolismo como problema. Adverte que os antropólogos oferecem melhor contribuição sobre as maneiras de beber de outras sociedades ­ não-ocidentais, onde o ato de beber está geralmente associado à festa e à sociabilidade e a embriaguez é valorizada e procurada, mesmo que sob mecanismos de controle dos excessos. Nestas situações, os homens são apreciados pela capacidade de beber e pela possibilidade de gastar recursos neste consumo conspícuo.

A especificidade da produção do saber antropológico sobre o alcoolismo não é reivindicada apenas pelos antropólogos americanos. A mesma caracterização é apresentada por Fainzang 13, analisando o campo temático francês. Segundo essa autora, os antropólogos vêm insistentemente investindo na construção de uma perspectiva específica para estudar os modos de ingestão de bebida e de alcoolização. Reafirmam como objeto de estudo as maneiras de beber, a partir das práticas sociais que elas implicam, dos valores e da sociabilidade. Para tanto, contrapõem-se aos sociólogos e aos epidemiologistas, recusando-se a incorporar categorias médicas, salientando a relatividade e a historicidade da noção do alcoolismo como doença, e enquadrando este último ponto de vista em contextos específicos.

Entre os antropólogos brasileiros, o alcoolismo é tema tangencial ao estudo das relações sociais objetivadas por assíduos freqüentadores de bar. Machado-da-Silva 37 apresentou uma contribuição pioneira, ao eleger os significados atribuídos ao botequim enquanto um dos tipos de casas de bebida na sociedade urbana. Valorizando a análise dos temas de conversação, que aí se singularizam, ressalta que eles lançam luz sobre os modos de percepção e controle do alcoolismo, num espaço social consagrado ao uso de bebidas alcoólicas.

Relevando o papel do bar enquanto espaço privilegiado de produção e reprodução de convívios rotineiros entre os homens (trabalhadores), Guedes 42 oferece exemplos etnográficos sobre os modos de controle do consumo de bebidas alcoólicas. Segundo ela, o autocontrole é parte do comportamento masculino esperado, sendo o bêbado então desclassificado e neutralizado segundo etiquetas de evitação. Essas etiquetas são parte da aprendizagem da freqüência assídua ao bar.

Sobre esta definição ética do comportamento do bêbado, Machado-da-Silva 37 também já chamara a atenção, apontando a especificidade dos significados conforme o grupo de pertencimento social daquele que é visto como desviante (em relação ao padrão de consumo valorizado).

Assim sendo, o que importa aos antropólogos é muito mais o alcoolismo como um traço da cultura e muito menos como patologia. Situados sob condições de risco da adesão ao etnocentrismo, os antropólogos se apegam à confissão de fé: deve-se restituir o ponto de vista do consumidor sobre o consumo do álcool e o sistema de valores subjacentes que as maneiras de consumo exprimem e reproduzem 30.

Contudo, restituir o ponto de vista do consumidor não assegura o afastamento da equação alcoolismo = doença, quando este for o ponto de vista do pesquisado. Daí a importância que vem sendo atribuída aos estudos sobre os movimentos dos antigos bebedores ou à reflexão sobre o sentido da abstinência compreendida como valor, como terapia ou como princípio organizador da existência.

 

O alcoolismo como fenômeno socialmente construído

Ao se tomar o alcoolismo como objeto de estudo, é fundamental explicitar os modos de superação de preconceitos e de disposições mentais, inculcadas pelas formas de representação cultural que a ele atribuem significados. Estes a priori têm sido em grande parte indutores da exclusão da reflexão temática, ou salvaguardas do risco da inclusão nos universos dos agentes da acusação. Mas é também fundamental valorizar empiricamente as situações de produção de ilegitimidade do consumo do álcool, destacando que as atitudes constituem fatos a serem explicados. Portanto, não podem ser tomadas como explicação. A questão a ser investigada se desloca então para a compreensão do modo como os membros de segmentos sociais e culturais específicos se relacionam com a embriaguez. E, se presente, com a noção ou conceito de alcoolismo, sem cair na sedução da explicação do porquê.

A desconstrução de associações redutoras e moralizadoras mostra-se assim exercício imprescindível. Uma delas, bastante recorrente, diz respeito à equação pobreza, precariedade e alcoolismo. Há uma referência consagrada à associação do uso do álcool às massas trabalhadoras, razão pela qual ou construção com base na qual são legitimadas as intervenções ou sua preconização. De um modo positivo, a associação tende a valorizar a relação entre precárias e adversas condições de trabalho e uso sistemático ou abusivo de álcool. De um modo negativo, a associação tende a consagrar a articulação entre uso abusivo de bebida alcoólica e imprevidência individual, incompatível com desempenhos de papéis de esposo, companheiro e pai.

Da mesma forma, é importante ressaltar a impropriedade de isolar o alcoolismo como fenômeno social. Ele deve estar situado no quadro mais amplo de uso de bebidas e outras drogas lícitas ou ilícitas 3. Retribuindo-lhe o caráter social, não é possível se abster de compreender os modos moralizantes de representação do alcoolismo: seus efeitos sobre a construção das relações sociais e sua atribuição como fator dissolvente de unidades sociais fundamentais como a família, ou perturbador do exercício de papéis básicos como trabalhador-esposo. Relativizando tais modos de construção e cristalização de representações, estes fatores são então considerados como mediações inerentes ao fenômeno social.

Diante de tais formas pré-construídas de concepção do alcoolismo, revela-se extremamente eficaz a análise das representações estruturantes dos discursos edificantes das ações militantes subjacentes ao projeto político antialcoólico. Neste campo de produção de idéias e de valores referenciadores do comportamento socialmente aprovado, passeiam com tranqüilidade as causalidades lineares e os determinismos absolutos (para a análise das formas de absolutização do ponto de inflexão da prevista trajetória do alcoólatra, qualificado como fundo de poço, tempo-espaço da desumanização física e social decorrente do uso imoderado de bebida alcoólica, ver: Garcia 51). A unidade de análise deve então recair sobre grupos e indivíduos relacionais, destacando que o alcoolismo aparece inseparável dos alcoólatras, dos alcoólicos e dos agentes autorizados à etiquetagem.

Sendo o alcoolismo definido como doença, por um lado está em jogo o poder de quem diagnostica e reivindica a legitimidade do enquadramento social. Definido como produto de uma vontade lábil ou do desabono da pessoa moral, está em jogo, por outro lado, o poder de quem desmoraliza. Desta análise, torna-se então possível encaminhar a demonstração das condições sociais de possibilidade de existência contextual do fenômeno de desqualificação dos abusos não aprovados.

Sendo a designação explicitadora da produção e dos modos de cumprimento de padrões de regras de comportamento, o estudo dos casos de exceção, no contexto em que têm vigência, oferece oportunidades de entendimento dos atos de beber socialmente aprovados e de suas respectivas formas de controle. Tomando os temas subjacentes à elaboração da trajetória construída por alcoólicos para fazer emergir a representação sobre os pontos de ruptura, torna-se possível compreender os processos de socialização do bom bebedor, ou as regras e as normas que definem como beber. Portanto, o uso aprovado do álcool e o alcoolismo constituem-se em temas pertencentes a uma mesma sociologia da sociabilidade e aos mesmos sistemas sócio-culturais.

A situação ideal de pesquisa para estudar o processo de alcoolização e os modos de convivência daquele considerado alcoólatra, tem sido definida como o bar. Entretanto, este não se apresenta como espaço mais adequado para o estudo dos usos abusivos da bebida alcoólica, a despeito de aí ser bem explicitada a construção da acusação aos alcoólatras e, por contraposição, a consagração do bom bebedor.

Como, nessa situação etnográfica, colocar em prática o prezado princípio metodológico da Antropologia: o entendimento pelo modo de vida, pela consideração das atitudes e das percepções dos pesquisados? Como pedir para falar sobre o alcoolismo, o desclassificado como alcoólatra? Não seria o discurso do alcoolismo um produto social dos que o condenam? Portanto, quem, a priori, aceitaria ser entrevistado? O alcoólatra? Quem é o alcoólatra? O que internalizou a acusação e dela se valeu para produzir ressocializações negadoras desta mesma experiência. Aquele bebedor que, da ritualização da desqualificação, produziu requalificações positivas. Aquele que, da vivência sob liminaridade, transformou-a em situação redentora. E, por um ritual de passagem, pensou-se, em outras situações sociais, emergido por processos de ressurreição, sustentados em outras formas de socialização e de construção da identidade.

A entrevista com os heteroacusados de alcoolismo ou com os socialmente reconhecidos bêbados coloca o antropólogo diante da negação do ofício. Ele mesmo rotularia aquele com base no qual deseja compreender o processo de construção da acusação e do descrédito.

Por isso é recomendável estudar os significados de tais representações quando elaboradas nos espaços sociais construídos pelos alcoólicos vinculados a terapias ou à instituição dos Alcoólicos Anônimos. Aí são dramatizados os modos de construção do alcoólico como identidade redentora, graças à entre-ajuda ou à solução coletiva. Enfatizando a fragilidade da imagem de si, a necessidade vital do semelhante, a alteridade salvadora e o ser abstinente, os alcoólicos, nestes contextos assim reconhecidos, falam de si. Aí investem na expressão de uma adesão irrecusável e durável a um espaço coletivo, constituído pelos que supostamente viveram experiências semelhantes. Assumindo a perspectiva desqualificadora, construída pela alteridade ou pela valorização do ponto de vista do outro, investem na ressocialização diante da impossibilidade de cura, mas de predomínio de uma vontade absoluta. Tornando-se estranhos a si mesmos e aos seus pares, reafirmando-se por uma constituição especial e problemática ­ doente ­, os alcoólicos vão deslocar o discurso e reinventar uma nova experiência de integração social. Nestes espaços está em jogo a produção de uma adesão ativa e proselitista. Adesão ritualmente explicitada, fundamentada num sistema de valores e crenças sistematicamente reproduzido, cujo efeito é a demonstração pública da eficácia simbólica da interiorização das representações coletivas construídas no grupo 13,51.

Relativizando o discurso heteroconstruído sobre os alcoólatras, ao antropólogo cabe reconhecer a maneira possível de entrar em contato com indivíduos sob tal condição. E, desde o início da pesquisa, assumir os limites impostos a este tipo de ação etnográfica e a especificidade das conclusões a serem alcançadas. Afinal, o alcoólico é aquele que assim se vê ou adota o ponto de vista acusatório do outro. Por essa adoção, investe na construção de um novo ponto de referência para a vida. E só com base nela fala de sua autocondenada experiência de alcoólatra, então redimensionada e redefinida.

As considerações aqui apresentadas visam a contribuir para a construção de campos de pesquisa ainda secundarizados nas ciências sociais, mas também criar um diálogo com pesquisadores de outras disciplinas que se voltam para o tema em questão. O saber interdisciplinar não se confunde com um ponto de encontro de caminhos diferenciados. Opera pelo diálogo respeitoso das especificidades e dos limites de cada disciplina. Como a ingestão de bebida alcoólica, mesmo a considerada abusiva, constitui um ato social, a qualificação do abuso nada mais é que a denúncia coletiva da transgressão das regras a ele inerentes. A possibilidade social da embriaguez induz à construção de regras restritivas, tanto pelo bebedor abusivo como pelos que o condenam. Essas regras são também internalizadas pelo alcoólatra, como demonstra sua presença fugidia no bar ou a sua solidão e o diálogo supostamente consigo mesmo. Portanto, o beber qualificado como excessivo não pode ser compreendido apenas pela perspectiva da doença e do desvio ou tão somente pelo ato individual. Os padrões do uso do álcool, suas funções e significados são consoantes ao contexto cultural em que o ato de beber ocorre, mesmo que outros fatores também devam ser considerados, porque produzem importantes resultados bioquímicos, fisiológicos e farmacológicos.

 

Agradecimentos

Agradeço os seguintes bolsistas de iniciação científica vinculados ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que participaram do trabalho de campo: Angela Maria Garcia, Marcel Robalinho Senra Peçanha e Patrícia Ferreira e Silva.

 

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Endereço para correspondência
Delma Pessanha Neves
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social e Ciência Política, Universidade Federal Fluminense
Campus do Gragoatá, Bloco O, Sala 301, Niterói, RJ
24120-350, Brasil
mdebes@provide.psi.br

Recebido em 17/Out/2002
Versão final reapresentada em 7/Jul/2003
Aprovado em 22/Dez/2003

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br