ARTIGO ARTICLE
Qualidade de vida e saúde: aspectos conceituais e metodológicos
Quality of life and health: conceptual and methodological issues
Eliane Maria Fleury Seidl; Célia Maria Lana da Costa Zannon
Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil
RESUMO
O conceito qualidade de vida tem suscitado pesquisas e cresce a sua utilização nas práticas desenvolvidas nos serviços de saúde, por equipes profissionais que atuam junto a usuários acometidos por enfermidades diversas. O presente artigo tem como objetivo descrever a evolução histórica e tecer algumas considerações sobre aspectos conceituais e metodológicos do conceito qualidade de vida (QV) no campo da saúde. Baseando-se na revisão da literatura, dois aspectos do termo são destacados no plano conceitual: subjetividade e multidimensionalidade. Quanto aos aspectos metodológicos, uma tendência significativa tem sido a construção e/ou adaptação de instrumentos de medida e de avaliação da QV. Conclui-se que os esforços teórico-metodológicos têm contribuído para a clarificação e relativa maturidade do conceito. Trata-se de um construto eminentemente interdisciplinar, o que implica a contribuição de diferentes áreas do conhecimento para o seu aprimoramento conceitual e metodológico. Sua utilização, portanto, pode contribuir para a melhoria da qualidade e da integralidade da assistência na perspectiva da saúde como direito de cidadania.
Qualidade de Vida; Literatura de Revisão; Avaliação; Metodologia
ABSTRACT
The quality of life (QL) concept has led to extensive scientific research and has been increasingly used by health care professionals treating a wide range of diseases. This paper addresses the historical use of the concept and specific issues linked to conceptual and methodological aspects of the QL construct within the health care context. Reviewing the literature, two aspects stand out: subjectivity and multidimensionality. In the methodological field, the construction and/or adaptation of QL measurement instruments appear as a significant trend. Theoretical and methodological efforts have helped clarify and improve the concept's adequacy. The QL construct is definitely interdisciplinary, encompassing contributions by different areas of knowledge and research, thereby improving its conceptual and methodological potential as a research instrument. Therefore, use of the concept can actually help improve both the quality and the integrated, multidimensional nature of health care from a perspective that views the latter as a basic citizen's right.
Quality of Life; Review Literature; Evaluation; Methodology
Introdução
O conceito qualidade de vida (QV) é um termo utilizado em duas vertentes: (1) na linguagem cotidiana, por pessoas da população em geral, jornalistas, políticos, profissionais de diversas áreas e gestores ligados às políticas públicas; (2) no contexto da pesquisa científica, em diferentes campos do saber, como economia, sociologia, educação, medicina, enfermagem, psicologia e demais especialidades da saúde 1,2.
Na área da saúde, o interesse pelo conceito QV é relativamente recente e decorre, em parte, dos novos paradigmas que têm influenciado as políticas e as práticas do setor nas últimas décadas. Os determinantes e condicionantes do processo saúde-doença são multifatoriais e complexos. Assim, saúde e doença configuram processos compreendidos como um continuum, relacionados aos aspectos econômicos, socioculturais, à experiência pessoal e estilos de vida. Consoante essa mudança de paradigma, a melhoria da QV passou a ser um dos resultados esperados, tanto das práticas assistenciais quanto das políticas públicas para o setor nos campos da promoção da saúde e da prevenção de doenças 3.
A mudança do perfil de morbimortalidade, tendência universal também nos países em desenvolvimento, indica o aumento da prevalência das doenças crônico-degenerativas. Os avanços nos tratamentos e as possibilidades efetivas de controle dessas enfermidades têm acarretado o aumento da sobrevida e/ou a vida longa das pessoas acometidas por esses agravos. A propósito disso, Fleck et al. 4 (p. 20) assinalaram que "a oncologia foi a especialidade que, por excelência, se viu confrontada com a necessidade de avaliar as condições de vida dos pacientes que tinham sua sobrevida aumentada devido aos tratamentos realizados, já que, muitas vezes, na busca de acrescentar anos à vida, era deixada de lado a necessidade de acrescentar vida aos anos".
No âmbito da saúde coletiva e das políticas públicas para o setor também é possível identificar interesse crescente pela avaliação da QV. Assim, informações sobre QV têm sido incluídas tanto como indicadores para avaliação da eficácia, eficiência e impacto de determinados tratamentos para grupos de portadores de agravos diversos, quanto na comparação entre procedimentos para o controle de problemas de saúde 5.
Outro interesse está diretamente ligado às práticas assistenciais cotidianas dos serviços de saúde, e refere-se à QV como um indicador nos julgamentos clínicos de doenças específicas. Trata-se da avaliação do impacto físico e psicossocial que as enfermidades, disfunções ou incapacidades podem acarretar para as pessoas acometidas, permitindo um melhor conhecimento do paciente e de sua adaptação à condição. Nesses casos, a compreensão sobre a QV do paciente incorpora-se ao trabalho do dia-a-dia dos serviços, influenciando decisões e condutas terapêuticas das equipes de saúde 6.
O interesse crescente pelo construto qualidade de vida pode ser exemplificado, ainda, por indicadores de produção de conhecimento, associados aos esforços de integração e de intercâmbio de pesquisadores e de profissionais interessados no tema. Pode-se mencionar o surgimento do periódico Quality of Life Research, editado a partir do início dos anos 90 pela International Society for Quality of Life Research (http://www.isoqol.org), reunindo trabalhos científicos sobre QV de diferentes áreas do conhecimento 7.
O presente artigo tem como objetivo descrever a evolução histórica do conceito de QV no campo da saúde, focalizando aspectos conceituais e metodológicos. A seleção de trabalhos para esta revisão foi feita com base em pesquisa bibliográfica realizada em indexadores de produção científica (BIREME, MedLine, PsycINFO), cobrindo o período 1995-2000. Foi utilizada a palavra-chave "quality of life" combinada com os termos "concept", "conceptual", "method", "methodologic". Alguns trabalhos mais citados, publicados antes desse período, foram incluídos tendo em vista os critérios de pioneirismo e impacto na literatura. Trabalhos brasileiros foram selecionados inicialmente a partir de levantamento realizado na página do Projeto SciELO (http://www.scielo.br), sem especificação do período de publicação. Indicações de impacto de trabalhos citados foram consideradas para busca complementar em periódicos indexados de circulação internacional. Um total de 39 trabalhos foi examinado, 25 publicados em língua inglesa, um em língua espanhola e 11 em língua portuguesa, a maioria (87,2%) em periódicos.
O conceito de qualidade de vida: aspectos históricos
Sabe-se que, já em meados da década de 70, Campbell (1976, apud Awad & Voruganti 8 p. 558) tentou explicitar as dificuldades que cercavam a conceituação do termo qualidade de vida: "qualidade de vida é uma vaga e etérea entidade, algo sobre a qual muita gente fala, mas que ninguém sabe claramente o que é". A citação dessa afirmação, feita há cerca de trinta anos, ilustra a ênfase dada na literatura mais recente às controvérsias sobre o conceito desde que este começou a aparecer na literatura associado a trabalhos empíricos.
Há indícios de que o termo surgiu pela primeira vez na literatura médica na década de 30, segundo um levantamento de estudos que tinham por objetivo a sua definição e que faziam referência à avaliação da QV. Costa Neto 9, trabalhando a publicação de Cummins, intitulada Directory of Instruments to Measure Quality of Life and Correlate Areas, publicada em 1998, identificou 446 instrumentos, no período de setenta anos. No entanto, 322 instrumentos identificados, equivalentes a mais de 70,0% do total, apareceram na literatura a partir dos anos 80 (Tabela 1). O acentuado crescimento nas duas últimas décadas atesta os esforços voltados para o amadurecimento conceitual e metodológico do uso do termo na linguagem científica.
As revisões de literatura que cobriram períodos anteriores a 1995 revelam que, ao lado dos esforços direcionados para a definição e avaliação da QV na área de saúde, havia lacunas e desafios teóricos e metodológicos a serem enfrentados. Gill et al. 10, procuraram identificar como QV estava sendo definida e mensurada na área de saúde, mediante a revisão de 75 artigos que tinham esse termo em seus títulos, publicados em revistas médicas. Depois de verificar que somente 15,0% dos trabalhos apresentavam uma definição conceitual do termo e 36,0% explicitavam as razões para a escolha de determinado instrumento de avaliação, Gill et al.10, concluíram que havia falta de clareza e de consistência quanto ao significado do termo e à mensuração da QV.
Farquhar 11, procedendo a uma revisão da literatura até os primeiros anos da década de 90, propôs uma taxonomia das definições sobre QV então existentes, dividida em quatro tipos que estão apresentados na Tabela 2.
Uma definição clássica, do tipo global, é datada de 1974 (Andrews, apud Bowling 12 p. 1448): "qualidade de vida é a extensão em que prazer e satisfação têm sido alcançados". A noção de que QV envolve diferentes dimensões configura-se a partir dos anos 80, acompanhada de estudos empíricos para melhor compreensão do fenômeno. Uma análise da literatura da última década evidencia a tendência de usar definições focalizadas e combinadas, pois são estas que podem contribuir para o avanço do conceito em bases científicas.
Qualidade de vida: subjetividade e multidimensionalidade
A partir do início da década de 90, parece consolidar-se um consenso entre os estudiosos da área quanto a dois aspectos relevantes do conceito de qualidade de vida: subjetividade e multidimensionalidade. No que concerne à subjetividade, trata-se de considerar a percepção da pessoa sobre o seu estado de saúde e sobre os aspectos não-médicos do seu contexto de vida. Em outras palavras, como o indivíduo avalia a sua situação pessoal em cada uma das dimensões relacionadas à qualidade de vida 13.
Estudiosos enfatizam, então, que QV só pode ser avaliada pela própria pessoa, ao contrário das tendências iniciais de uso do conceito quando QV era avaliada por um observador, usualmente um profissional de saúde. Nesse sentido, há a preocupação quanto ao desenvolvimento de métodos de avaliação e de instrumentos que devem considerar a perspectiva da população ou dos pacientes, e não a visão de cientistas e de profissionais de saúde 14,15.
O consenso quanto à multidimensionalidade refere-se ao reconhecimento de que o construto é composto por diferentes dimensões. A identificação dessas dimensões tem sido objeto de pesquisa científica, em estudos empíricos, usando metodologias qualitativas 12 e quantitativas 16,17.
Qualidade de vida: conceituação
Duas tendências quanto à conceituação do termo na área de saúde são identificadas: qualidade de vida como um conceito mais genérico, e qualidade de vida relacionada à saúde (health-related quality of life).
No primeiro caso, QV apresenta uma acepção mais ampla, aparentemente influenciada por estudos sociológicos, sem fazer referência a disfunções ou agravos. Ilustra com excelência essa conceituação a que foi adotada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em seu estudo multicêntrico que teve por objetivo principal elaborar um instrumento que avaliasse a QV em uma perspectiva internacional e transcultural. A QV foi definida como "a percepção do indivíduo sobre a sua posição na vida, no contexto da cultura e dos sistemas de valores nos quais ele vive, e em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações" 13 (p. 1405). Um aspecto importante que caracteriza estudos que partem de uma definição genérica do termo QV é que as amostras estudadas incluem pessoas saudáveis da população, nunca se restringindo a amostras de pessoas portadoras de agravos específicos.
Além do World Health Organization Quality Of Life Assessment (WHOQOL-100) 13,17, outros instrumentos genéricos de avaliação da QV, de grande utilização em pesquisas e na prática clínica, são o Medical Outcomes Study SF-36 Health Survey 18 e o Sickness Impact Profile 19.
O termo qualidade de vida relacionada à saúde é muito freqüente na literatura e tem sido usado com objetivos semelhantes à conceituação mais geral. No entanto, parece implicar os aspectos mais diretamente associados às enfermidades ou às intervenções em saúde. Algumas definições que ilustram os diferentes usos do termo são apresentadas na Tabela 3. É possível identificar, nas conceituações de Guiteras & Bayés 20, Cleary et al. 21 e Patrick & Erickson (1993, apud Ebrahim 22), a referência ao impacto da enfermidade ou do agravo na qualidade de vida.
Há uma controvérsia associada ao uso de medidas específicas da QV relacionada à saúde. Alguns autores defendem os enfoques mais específicos da qualidade de vida, assinalando que esses podem contribuir para melhor identificar as características relacionadas a um determinado agravo. Outros ressaltam que algumas medidas de qualidade de vida relacionada à saúde têm abordagem eminentemente restrita aos sintomas e às disfunções, contribuindo pouco para uma visão abrangente dos aspectos não-médicos associados à qualidade de vida 23.
Os instrumentos de mensuração da qualidade de vida relacionada à saúde tendem a manter o caráter multidimensional e avaliam ainda a percepção geral da QV, embora a ênfase habitualmente recaia sobre sintomas, incapacidades ou limitações ocasionados por enfermidade. Predominam os instrumentos específicos, como o EORTC-QLQ 30, para pacientes com neoplasias desenvolvido pelo European Organization for Research and Treatment of Cancer 24, e o Medical Outcomes Study-HIV, para pessoas vivendo com HIV/AIDS 25.
Dados de levantamentos recentes, para verificar o crescimento de medidas de avaliação da QV e sua disponibilidade para as diversas especialidades, verificaram grande crescimento do número de instrumentos de qualidade de vida relacionada à saúde, no período 1990-1999. Assim, Garrat et al. 26, constataram que 46,0% dos trabalhos publicados versavam sobre medidas da QV para populações e agravos específicos, seguidas de 22,0% que trabalhavam com medidas genéricas da QV.
Clarificando o conceito: distinção entre qualidade de vida e estado de saúde
Pesquisadores alertam que os termos qualidade de vida e estado de saúde aparecem na literatura muitas vezes quase como sinônimos 19,27. Interessados na clarificação desses conceitos, Smith et al. 19, investigaram a importância de três grandes dimensões saúde mental, funcionamento físico e funcionamento social sobre a percepção da QV e do estado de saúde, em 12 estudos que trabalharam esses indicadores com amostras de pacientes portadores de enfermidades crônicas (câncer, hipertensão, HIV/AIDS, entre outras). A dimensão que teve maior poder de predição em relação ao escore da QV foi o da saúde mental/bem-estar psicológico, sendo que o poder preditivo da dimensão funcionamento físico foi menor. No caso da percepção do estado de saúde como variável critério, a dimensão funcionamento físico foi o mais forte preditor, incluindo variáveis como energia, fadiga e dor. Explorando os dados com path analisys, observaram, de um lado, que o escore da saúde mental afetou de modo significativo os escores da QV. De outro lado, o funcionamento físico afetou de modo mais significativo a percepção do estado de saúde. Os autores concluíram que os dois construtos são diferentes e alertaram que determinados instrumentos que avaliam a percepção do estado de saúde não devem ser usados para a avaliação da QV.
As dimensões da qualidade de vida
Estudos de meta-análise como o de Smith et al. 19, respondem também a questões sobre a relevância e o peso das diferentes dimensões da QV, trazendo mais clareza ao construto. O empreendimento da OMS, de grande contribuição teórico-metodológica para o tema, foi desenvolvido em projeto multicêntrico, cuja construção se deu em quatro etapas: (a) clarificação do conceito de QV por especialistas oriundos de diferentes culturas; (b) estudo qualitativo, em 15 cidades de 14 países, com grupos focais formados por pacientes com agravos diversos, profissionais de saúde e pessoas da população em geral, para explorar as representações e o significado do termo em diferentes culturas; (c) desenvolvimento dos testes de campo para análise fatorial e de confiabilidade, validade de construto e validade discriminante 13,17.
A natureza multidimensional do construto foi validada, de modo empírico, a partir da emergência de quatro grandes dimensões ou fatores: (a) física percepção do indivíduo sobre sua condição física; (b) psicológica percepção do indivíduo sobre sua condição afetiva e cognitiva; (c) do relacionamento social percepção do indivíduo sobre os relacionamentos sociais e os papéis sociais adotados na vida; (d) do ambiente percepção do indivíduo sobre aspectos diversos relacionados ao ambiente onde vive. Além dessas dimensões, obteve-se uma avaliação da QV percebida de modo global, mensurada por quatro itens específicos que foram computados em um único escore. As quatro dimensões subdivididas em 24 facetas mais os itens referentes à QV geral constituem o Instrumento de Avaliação da Qualidade de Vida da OMS 17.
Power et al. 28 realizaram um estudo de meta-análise, utilizando o banco de dados dos estudos de validação do WHOQOL-100 nos 15 centros. Mediante análise de regressão múltipla padrão, referente à amostra total de 4.802 sujeitos, verificaram que os escores das quatro grandes dimensões explicaram, juntos, 64,0% da variância do escore da qualidade de vida geral, considerada como variável critério. Aspectos físicos e psicológicos foram responsáveis pela explicação da maior parte dessa variância, seguidos das dimensões do ambiente e do relacionamento social, sendo que essa tendência também foi observada nas amostras dos 15 locais pesquisados, com algumas especificidades. Os pesquisadores concluíram que o WHOQOL-100 tem boa capacidade psicométrica para mensurar a qualidade de vida e que a estrutura do construto é comparável nas diferentes culturas, reforçando a sua importância como ferramenta transcultural.
Qualidade de vida: aspectos metodológicos
As dificuldades relativas à avaliação da QV talvez limitem a sua inclusão na prática clínica, em grande parte devido à ausência de informação das equipes de saúde sobre as diferentes possibilidades hoje existentes para investigação da QV. De fato, segundo estudos realizados em outros países 6, parece que os profissionais ainda têm resistido a incluir a avaliação da QV dos pacientes em sua rotina de atendimento clínico.
É possível identificar as principais tendências metodológicas sobre a avaliação da QV, tanto nos trabalhos que utilizam métodos quantitativos quanto nos estudos qualitativos. Nos estudos quantitativos, hegemônicos e predominantes na literatura especializada, os esforços são voltados para a construção de instrumentos, visando a estabelecer o caráter multidimensional do construto e sua validade 26,27. São estudos de análise da estrutura fatorial com testes de confiabilidade, bem como testes de validade de critério, discriminante e de construto. No caso da análise da validade, a ausência de uma medida denominada padrão-ouro em qualidade de vida dificulta a investigação. Quanto à validade de construto, o aporte teórico é fundamental, levando à necessidade do estabelecimento de um modelo teórico que permita a análise de determinada estrutura, para a predição do comportamento de variáveis do modelo.
Os estudiosos adeptos de enfoques qualitativos, por sua vez, enfatizam que a utilização de medidas padronizadas pode levar a respostas estereotipadas, que têm pouco ou nenhum significado para a pessoa. Defendem o uso de técnicas como as histórias de vida ou as biografias, e outras análises típicas dos enfoques qualitativos que podem trazer contribuições à área 11,12. Alguns pesquisadores defendem a complementaridade das metodologias, por meio da combinação de medidas padronizadas com análises de cunho qualitativo, de modo a permitir a emergência de temas que fazem sentido para o sujeito, ao mesmo tempo que se garante a validade e confiabilidade das técnicas que viabilizam a comparação de resultados de grupos e de indivíduos 10,29.
A análise da literatura revela que os instrumentos comumente usados são os questionários, sendo as formas de administração mais freqüentes a auto-aplicação e a entrevista. Um estudo investigou se haveria diferenças entre os escores de instrumentos de QV administrados mediante entrevista e auto-aplicados, em amostras de pessoas soropositivas 25, encontrando diferenças não significativas entre as duas modalidades de aplicação. Verificaram, no entanto, que as respostas dadas por outros respondentes (familiares ou pessoas próximas) mostraram diferenças relevantes se comparadas aos escores dos próprios pacientes, sendo que familiares e amigos tenderam a avaliar de modo menos favorável a qualidade de vida dos sujeitos. Ressaltaram, ainda, que a auto-aplicação parece ser vantajosa, pois, além de requerer menos tempo, permite que a pessoa responda no seu ritmo, podendo voltar aos itens e refletir melhor sobre suas respostas. As conclusões dos autores desse estudo são interessantes, porém importa enfatizar que há vantagens e desvantagens nos diferentes procedimentos de coleta de dados, e que a escolha deve ser feita com base no delineamento proposto, considerando as características dos participantes que compõem a amostra e os objetivos do estudo.
Outra tendência evidenciada na literatura, sobretudo em relação à construção de instrumentos específicos, é a adaptação de questionários ou escalas construídos originalmente para determinada enfermidade, ou mesmo de caráter genérico, que são modificados para adequar-se à avaliação da QV em pessoas com outro tipo de agravo. Pode-se citar o exemplo do Medical Outcome Study (MOS), instrumento usado em relação a enfermidades diversas que, testado junto a amostras de pessoas soropositivas, passou a denominar-se MOS-HIV, ficando específico para esta clientela 25. Trata-se de uma tendência que indica a urgência e o pragmatismo para a obtenção de instrumentos de medida em curto espaço de tempo, em especial para a utilização na clínica, ou mesmo em pesquisa.
Nesse contexto, o desenvolvimento de medidas da QV para uso em pesquisa e na prática clínica já permite algumas conclusões, conforme evidenciado por Gill et al. 10 e Gladis et al. 23, que identificaram algumas deficiências nos instrumentos de QV e fizeram recomendações para nortear estudos na área, sintetizadas a seguir: (a) necessidade de apresentação da definição do conceito ou do significado de qualidade de vida que orienta o trabalho, a pesquisa ou a intervenção; (b) explicitação das razões teórico-metodológicas que levaram à escolha dos instrumentos selecionados; (c) importância da utilização de medidas não reducionistas ou simplistas, baseadas em itens únicos ou focalizadas apenas nos sintomas; (d) nos casos de medidas padronizadas, inclusão de itens abertos, adicionados ao final do instrumento para respostas suplementares ou combinação de métodos qualitativos, visando a abarcar outros aspectos eventualmente não considerados nesse tipo de instrumento.
Pesquisa sobre qualidade de vida no Brasil
No Brasil, igualmente, vem crescendo o interesse pelo tema qualidade de vida no campo da saúde. Alguns trabalhos publicados no Brasil foram considerados tendo em vista a sua contribuição para o avanço das pesquisas sobre QV no país e por sua consonância com as tendências históricas observadas no contexto internacional.
Um trabalho pioneiro disponibilizou um instrumento genérico de avaliação da QV, o SF-36; utilizando os procedimentos canônicos de tradução reversa e adaptação transcultural para uma amostra de cinqüenta pacientes com artrite reumatóide, permitiu evidenciar a utilidade de medidas gerais para a investigação de impacto da doença crônica sobre a vida das pessoas acometidas 30. Posteriormente, o desenvolvimento do WHOQOL-100 para a língua portuguesa 4 e o estudo para a validação das versões completa e breve 31,32, permitiram a utilização abrangente desse instrumento por pesquisadores brasileiros no campo da saúde.
Foram encontrados trabalhos sobre QV em diferentes especialidades médicas, por exemplo, nas áreas de psiquiatria 33, neurologia 34,35, oftalmologia 36, oncologia 37 e ginecologia 38. Na psicologia, destaca-se a construção do Inventário de Qualidade de Vida 39 utilizado em pesquisa e em intervenção relacionadas ao manejo do estresse. Um trabalho de revisão importante, pela abrangência da análise de contribuições e desafios do conceito para o setor saúde, em especial para a saúde pública, foi realizado por Minayo et al. 40.
Considerações finais
O presente artigo teve o propósito de apresentar o termo qualidade de vida, com base em enfoque abrangente e panorâmico das principais questões teórico-metodológicas que caracterizam a aplicação do conceito no campo da saúde. O caráter amplo dessa revisão pode ser apontado como uma limitação do trabalho, pois seu objetivo não visou ao aprofundamento de muitas das questões conceituais e metodológicas referidas.
Com base no estado da arte da definição e das medidas do construto qualidade de vida é possível concluir, no entanto, que este parece consolidar-se como uma variável importante na prática clínica e na produção de conhecimento na área de saúde. Não obstante as controvérsias existentes sobre a sua conceituação e as estratégias de mensuração, os esforços teórico-metodológicos têm contribuído para a clarificação do conceito e sua relativa maturidade.
Seu desenvolvimento poderá resultar em mudanças nas práticas assistenciais e na consolidação de novos paradigmas do processo saúde-doença, o que pode ser de grande valia para a superação de modelos de atendimento eminentemente biomédicos, que negligenciam aspectos socioeconômicos, psicológicos e culturais importantes nas ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação em saúde. Assim, sendo qualidade de vida um construto eminentemente interdisciplinar, a contribuição de diferentes áreas do conhecimento pode ser de fato valiosa e mesmo indispensável.
Finalmente, um comentário sobre o desafio que se coloca para os pesquisadores brasileiros. O uso de instrumentos de avaliação da QV no campo da saúde colocaria os trabalhos desenvolvidos no país em consonância com agendas internacionais para o avanço teórico e metodológico na área. Há, no entanto, dois desafios colocados nessas agendas: as conclusões acerca da generalidade-especificidade do construto de qualidade de vida e a confiabilidade de comparações entre os achados em condições diversas relacionadas à saúde e aos diferentes contextos socioculturais. No caso do Brasil, um país marcado por fortes diferenças regionais e culturais, o uso disseminado e sistemático de versões brasileiras de instrumentos genéricos como o SF-36 e o WHOQOL, orientado por agendas planejadas de pesquisa, permitiria acumular evidências sobre a qualidade psicométrica desses instrumentos. Na medida em que muitos estudos brasileiros são orientados por conveniência de pesquisadores que atuam na assistência a pessoas acometidas por enfermidades diversas, há ainda a considerar o desafio de estabelecer uma rotina de avaliação de QV que atenda aos interesses práticos de serviços assistenciais, o que inclui demonstrar a utilidade desses instrumentos para aprimorar processos diagnósticos e para a avaliação sistemática de resultados de tratamento.
Colaboradores
E. M. F. Seidl desenvolveu revisão bibliográfica, análise conceitual, planejamento, organização e redação do texto. C. M. L. C. Zannon participou na análise conceitual da qualidade de vida e contribuiu na redação da versão final do manuscrito.
Referências
1. Bowling A, Brazier J. Quality of life in social science and medicine Introduction. Soc Sci Med 1995; 41:1337-8.
2. Rogerson RJ. Environmental and health-related quality of life: conceptual and methodological similarities. Soc Sci Med 1995; 41:1373-82.
3. Schuttinga JA. Quality of life from a federal regulatory perspective. In: Dimsdale JE, Baum A, editors. Quality of life in behavioral medicine research. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates; 1995. p. 31-42.
4. Fleck MP, Leal OF, Louzada S, Xavier M, Cachamovich E, Vieira G, et al. Desenvolvimento da versão em português do instrumento de avaliação de qualidade de vida da OMS (WHOQOL-100). Rev Bras Psiquiatr 1999; 21:21-8.
5. Kaplan RM. Quality of life, resource allocation, and the U.S. Health-care crisis. In: Dimsdale JE, Baum A, editors. Quality of life in behavioral medicine research. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates; 1995. p. 3-30.
6. Morris J, Perez D, McNoe B. The use of quality of life data in clinical practice. Qual Life Res 1998; 7:85-91.
7. Quality of Life Research. Sixth Annual Conference Abstracts. Amsterdam: Kluwer Academic Publishers; 1999.
8. Awad G, Voruganti LNP. Intervention research in psychosis: issues related to the assessment of quality of life. Schizophr Bull 2000; 26:557-64.
9. Costa Neto SB. Qualidade de vida dos portadores de câncer de cabeça e pescoço [Tese de Doutorado]. Brasília: Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília; 2002.
10. Gill TM, Alvan MD, Feinstein MD. A critical appraisal of the quality of quality-of-life measurements. JAMA 1994; 272:619-26.
11. Farquhar M. Definitions of quality of life: a taxonomy. J Adv Nurs 1995; 22:502-8.
12. Bowling A. What things are important in people's lives? A survey of the public's judgements to inform scales of health related quality of life. Soc Sci Med 1995; 41:1447-62.
13. The WHOQOL Group. The World Health Organization quality of life assessment (WHOQOL): position paper from the World Health Organization. Soc Sci Med 1995; 41:1403-10.
14. Leplège A, Rude N. The importance of patient's own view about their quality of life. AIDS 1995; 9:1108-9.
15. Slevin ML, Plant H, Lynch D, Drinkwater J, Gregory WM. Who should measure quality of life, the doctor or the patient? Br J Cancer 1988; 57:109-12.
16. Smith KW, Avis NE, Assmann SF. Distinguishing between quality of life and health status in quality of life research. Qual Life Res 1999; 8:447-59.
17. The WHOQOL Group. The World Health Organization quality of life assessment (WHOQOL): development and general psychometric properties. Soc Sci Med 1998; 46:1569-85.
18. Ware JE, Kosinski M, Keller ED. The SF-36 Physical and Mental Summary Scales: a user's manual. Boston: The Health Institute; 1993.
19. World Health Organization. Quality of life assessment: an annotated bibliography. Geneva: World Health Organization; 1994.
20. Guiteras AF, Bayés R. Desarrolllo de un instrumento para la medida de da calidad de vida en enfermedades crónicas. In: Forns M, Anguera MT, organizaaadores. Aportaciones recientes a la evaluación psicologica. Barcelona: Universitas; 1993. p. 175-95.
21. Cleary PD, Wilson PD, Fowler FJ. Health-related quality of life in HIV-infected persons: a conceptual model. In: Dimsdale JE, Baum A, editors. Quality of life in behavioral medicine research. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates; 1995. p. 191-204.
22. Ebrahim S. Clinical and public health perspectives and applications of health-related quality of life measurement. Soc Sci Med 1995; 41:1383-94.
23. Gladis MM, Gosch EA, Dishuk NM, Crits-Cristoph P. Quality of life: expanding the scope of clinical significance. J Consult Clin Psychol 1999; 67:320-31.
24. Aaronson NK, Ahmedzai S, Bergman B, Bullinger M, Cull A, Duez NJ. The European Organization for Research and Treatment of Cancer QLQ-30: a quality of life instrument for use in international clinical trials in oncology. J Natl Cancer Inst 1993; 85:365-75.
25. Wu AW, Hays RD, Kelly S, Malitz F, Bozzette SA. Applications of the medical Outcomes study health-related quality of life measures in HIV/AIDS. Qual Life Res 1997; 6:531-54.
26. Garrat A, Schmidt L, Mackintosh A, Fitzpatrick R. Quality of life measurement: bibliographic study of patient assessed health outcome measures. Br Med J 2002; 324:1417-9.
27. Guyatt GH, Feeny DH, Patrick DL. Measuring health-related quality of life. Ann Intern Med 1993; 118:622-9.
28. Power M, Bullinger M, Harper A. The World Health Organization WHO-QOL-100 tests of the universality of quality of life in 15 different cultures groups worldwide. Health Psychol 1999; 18:495-505.
29. Groenvold M, Klee MC, Sprangers MAG, Aaronson NK. Validation of the EORTC QLQ-C30 Quality of Life Questionnaire through combined qualitative and quantitative assessment of patient-observer agreement. J Clin Epidemiol 1997; 50:441-50.
30. Ciconelli RM, Ferraz MB, Santos W, Meinão I, Quaresma MR. Tradução para a língua portuguesa e validação do questionário genérico de avaliação de qualidade de vida SF-36 (Brasil SF-36). Rev Bras Reumatol 1997; 39:143-50.
31. Fleck MP, Louzada S, Xavier M, Cachamovich E, Vieira G, Santos L, et al. Aplicação da versão em português do instrumento de avaliação de qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL-100). Rev Saúde Pública 1999; 33:198-205.
32. Fleck MP, Louzada S, Xavier M, Cachamovich E, Vieira G, Santos L, et al. Aplicação da versão em português do instrumento abreviado de avaliação da qualidade de vida WHOQOL-bref. Rev Saúde Pública 2000; 34:350-6.
33. Pitta AMF. Qualidade de vida de clientes de serviços de saúde mental. Apresentação de um instrumento de avaliação Wisconsin-Quality of Life Index (W-QLI). Rev Psiquiatr Clín 1999; 26 (5 Edição Especial):68-77.
34. Assumpção Jr. FB, Kuczynski E, Sprovieri MH, Aranha EMV. Escala de avaliação de qualidade de vida (AUQEI Autoquestionnaire Qualité de Vie Enfant Imagé). Arq Neuropsiquiatr 2000; 58:20-8.
35. Salgado PCB, Souza EAP. Impacto da epilepsia no trabalho: avaliação da qualidade de vida. Arq Neuropsiquitr 2002; 60:442-5.
36. Ferraz EVAP, Lima C, Assis C. Adaptação de questionário de avaliação da qualidade de vida para aplicação em portadores de catarata. Arq Bras Oftalmol 2002; 65:293-8.
37. Moreno AB, Lopes CS. Avaliação da qualidade de vida em pacientes laringectomizados: uma revisão sistemática. Cad Saúde Pública 2002; 18:81-92.
38. Favarato MCE, Aldrich JM. A mulher coronariopata no climatério após a menopausa: implicações na qualidade de vida. Rev Assoc Med Bras 2001; 47:339-45.
39. Lipp MN, Rocha JC. Estresse, hipertensão e qualidade de vida. Campinas: Papirus; 1994.
40. Minayo MCS, Hartz ZMA, Buss PM. Qualidade de vida e saúde: um debate necessário. Ciênc Saúde Coletiva 2000; 5:7-18.
Endereço para correspondência
Eliane Maria Fleury Seidl
Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília. Campus Universitário Darcy Ribeiro
Brasília, DF 70910-900, Brasil
seidl@unb.br
Recebido em 19/Mar/2003
Versão final reapresentada em 29/Set/2003
Aprovado em 23/Out/2003