RESENHAS REVIEWS

 

 

Volnei Garrafa

Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

 

 

A FORMAÇÃO ÉTICA DOS MÉDICOS ­ SAINDO DA ADOLESCÊNCIA COM A VIDA (DOS OUTROS) NAS MÃOS. Sergio Rego. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. 184 pp.

ISBN: 85-7541-021-0

O título escolhido para o livro de Sergio Rego dá ao leitor, imediatamente, a dimensão da intimidade do autor com o tema. Conciso e claro, vai direto ao assunto: A Formação Ética dos Médicos. O subtítulo, no entanto, cuidadosamente garimpado, exige uma reflexão bem mais profunda, proporcionando à imaginação dos interessados as mais diferentes interpretações: Saindo da Adolescência com a Vida (dos Outros) nas Mãos. Essa rica sentença proporciona duas interpretações imediatas. A primeira, que os estudantes de Medicina estão entrando cada dia mais jovens nas universidades e concluindo seus cursos com menos idade, recém saindo da adolescência. A segunda, que pode até ser conseqüência da primeira e que seguramente é a mais importante para o autor, chama ruidosamente a atenção para a necessidade de que esses jovens tenham uma formação mais rigorosa com relação aos campos da deontologia, da ética profissional e, principalmente, da bioética, já que se tratam de três campos próximos, mas com epistemologias diferentes.

Desde o título, portanto, a obra que a Editora Fiocruz ora apresenta aos seus leitores, é instigante. O tema do ensino profissional ­ no caso, especificamente, o ensino médico ­ na maioria dos textos similares, é apresentado de modo formal, exclusivamente acadêmico, asséptico e muitas vezes distanciado dos problemas da realidade. Não é o caso do livro de Rego que, além de expor fecundas proposições teóricas, é de uma sinceridade arrasadora desde a primeira página da sua Apresentação: "não tenho a menor dúvida em afirmar que a maioria das Faculdades de Medicina, tal como são organizadas e buscam cumprir a função primordial que justifica sua existência ­ preparar jovens para o exercício da profissão médica ­, é incompetente" (p. 13). Em uma mesa redonda promovida sobre o tema durante o I Congresso de Bioética do Rio de Janeiro, levado a efeito em novembro de 2003, ele, que ocupa há anos o cargo de editor da Revista Brasileira de Educação Médica, apresentou as mesmas idéias com extrema clareza, deixando o público convencido (e preocupado) com seus argumentos, constatações e apreensões.

O fato é notório para aqueles docentes verdadeiramente comprometidos com o assunto; o autor não deixa de ter razão. No entanto, faltava uma voz com credibilidade e ao mesmo tempo suficientemente corajosa para colocar o dedo na ferida e as coisas nos seus devidos lugares. O quadro geral, portanto, é pouco animador. Como conseqüência das dezenas de novas Faculdades de Medicina ­ principalmente particulares ­ criadas de forma açodada, mercantilista e interesseira no país nos últimos anos, cresce de modo proporcional o número de estudantes insuficientemente qualificados para tão nobre e difícil carreira. Dentro de todo este contexto, cria-se também a necessidade de novos professores, os quais, pelas circunstâncias e pela pressa, raramente estão bem preparados sob o ponto de vista acadêmico e pedagógico. Para completar, os modelos de ensino-aprendizagem utilizados no Brasil, em sua grande maioria, continuam seguindo os mesmos modelos burocráticos, disciplinares e fragmentados de quase cinqüenta anos atrás, com raras exceções.

É chamativa a resistência da maioria das Faculdades de Medicina do país (e das demais áreas das ciências da saúde, de um modo geral) em trocar os velhos modelos flexnerianos por iniciativas novas, mais dinâmicas e integradas. Nos já distantes anos 60 e 70, o Prof. Luiz Carlos Lobo, secundado por uma afinada equipe da qual faziam parte Henry Jouval (que hoje é representante da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde no Chile) e Dejano Sobral (professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília), entre outros, com o apoio de organismos internacionais, criou o NUTES-CLATES (Núcleo de Tecnologia para o Ensino Superior, direcionado ao campo da saúde para a região da América Latina ­ este era o significado da sigla, se não me falha a memória), que produziu um esforço muito grande para aperfeiçoamento dos currículos brasileiros no campo sanitário. Apesar da nobreza dos objetivos e da alta qualidade do projeto e das pessoas com ele envolvidas, as resistências e o comodismo tornaram os resultados aquém dos méritos e do esperado. A Universidade de Brasília, de cujo curso de Ciências da Saúde/Medicina o Prof. Lobo foi o primeiro diretor, tinha um modelo revolucionário de estudo baseado em "blocos" de conhecimento já nos anos 60, o qual, contudo, foi sendo lentamente desvirtuado e acabou abandonado.

Passados alguns anos, no entanto, voltam a surgir no Brasil, hoje, algumas propostas mais arejadas já em desenvolvimento em Londrina (Paraná), Marília e Botucatu (São Paulo) e Salvador (Bahia), entre outras. Uma das idéias destes projetos é reencaminhar o processo de ensino-aprendizagem em direção à realidade concreta do país, interagindo com o próprio Sistema Único de Saúde e formando profissionais aptos aos enfrentamentos do dia-a-dia dos países ainda pobres, mas em pleno processo de industrialização e desenvolvimento. Ou seja, procurar enfrentar para valer um país onde convivem, conjuntamente, doenças típicas das nações mais avançadas e doenças decorrentes da extrema pobreza.

Fui convidado pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 1995, para escrever um livro sobre A Dimensão da Ética em Saúde Pública, dentro de uma pequena coleção denominada AdSaúde, que fazia parte de um projeto realizado em parceria com a Kellogg Foundation. Tendo decidido incluir no livro um tópico sobre "a ética médica nos currículos universitários", constatei que a bibliografia específica relacionada ao setor era muito escassa no país. O livro de Sergio Rego, assim, vem suprir um significativo vazio existente em tão importante área do conhecimento educacional-acadêmico brasileiro.

Contudo, a obra objeto da presente análise, longe de preocupar-se exclusivamente com a denúncia apontada alguns parágrafos acima, aprofunda a teorização sobre o assunto, apresentando sugestões, rumos e caminhos que possam levar a transformações significativas da situação diagnosticada. Vai, portanto, da teoria à prática, nutrindo harmonicamente uma proposta consolidada mais adiante, especialmente no Capítulo 6, onde procura analisar diferentes situações e/ou problemas da vivência clínica dos médicos e que têm relação com diferentes questões do campo da ética. Após apresentar um histórico sobre o processo de formação médica, suas influências mais gerais e algumas características do momento político de questionamento pelo qual passa, Rego caminha por dois capítulos dedicados a dar sustentação epistemológica ao seu trabalho.

No Capítulo 2, o tema escolhido foi o estudo da formação moral dos estudantes de medicina, onde reforça o papel e a importância do conhecimento para a consolidação de uma profissão como corporação, e para o exercício de sua autoridade moral e técnica: "está claro que sem um conhecimento específico e sem que esse conhecimento seja destinado à resolução de problemas específicos da sociedade (...) uma profissão não se constitui ou não sobrevive" (p. 45). Neste sentido, leva seus argumentos pelos caminhos da socialização do homem, da sociedade na sua relação com a cultura e, enfim, da própria socialização profissional, no caso, da medicina e dos médicos, com base principalmente na teoria da construção social da realidade de Berger e Luckmann. De modo lógico e equilibrado, termina o capítulo dissertando sobre a teoria da aprendizagem social, originada do behaviorismo norte-americano e que, hoje, faz parte do campo da Psicologia do Desenvolvimento.

O Capítulo 3, na mesma linha conceitual do anterior ­ proporcionando uma indispensável base de sustentação epistemológica para que o autor caminhe para proposições efetivas nos capítulos seguintes ­ o livro apresenta a teoria do desenvolvimento moral formulada por Lawrence Kohlberg com base nos pressupostos cognitivos do pensamento e do conhecimento desenvolvidos por Piaget. Kohlberg, contudo, procura desvencilhar-se dos testes psicológicos para análise, preferindo as entrevistas clínicas, fixando-se fundamentalmente no raciocínio moral dos sujeitos: "sua preocupação não estava em discutir a prática moral dos indivíduos, mas sua capacidade cognitiva de avaliar, argumentar e refletir sobre aspectos morais" (p. 85). Baseando-se em estudo dos seis estágios formulados por Kohlberg para o raciocínio moral, passando pela distinção que Elliot Turiel faz entre o que é parte do domínio das convenções sociais do que é do domínio moral, e levando em consideração a notável elaboração teórica feminista formulada por Carol Gilligan, Rego ­ dentro de uma firme linha de coerência com relação ao "todo" da sua obra ­ termina propondo uma distinção entre o campo do raciocínio moral e o campo da prática moral.

Nos capítulos 4 e 5, respectivamente, o autor se debruça especificamente sobre "o ensino da ética" e sobre "os estudantes de medicina e seus valores". No primeiro, faz uma análise de como está se desenvolvendo o processo de ensino-aprendizagem da ética nas Faculdades de Medicina do Brasil, chegando à conclusão da necessidade de inclusão da Bioética nos currículos acadêmicos da área. No segundo, procura traçar um perfil dos estudantes de medicina que estão sendo graduados no país, com relação a valores, com base em inquérito preparado recentemente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira/Ministério da Educação e de observações feitas pelo próprio autor diretamente com estudantes de graduação.

Como já foi dito alguns parágrafos acima, no Capítulo 6, Sérgio Rego se preocupa em dar consistência e coesão à obra, trabalhando questões da prática concreta dos estudantes, por meio de variados tópicos: "relação do professor ou do médico com o aluno em situações de ensino"; "relação com os colegas"; "relação com os pacientes: será que estamos ensinando aos estudantes que os pacientes não importam?"; "aspectos éticos relacionados com o sigilo profissional: confidencialidade no exercício profissional"; "aspectos éticos relacionados ao uso do cadáver humano no aprendizado profissional"; "pequenas grandes maldades na prática profissional"; e "desrespeito à pessoa: coisificação do ser". Pela simples leitura dos títulos dos subtemas, pode-se ver que, em muitos deles, reaparece a crítica certeira, lúcida e aguda do autor.

Enfim, no último capítulo, o estudioso analisa "as possibilidades e os limites da educação moral", onde reforça a idéia que perpassa toda a obra, ou seja, procurando manter sempre clara a relação entre a ética profissional, o ensino da medicina e o respeito aos direitos humanos no seu mais amplo espectro, dentro de um novo contexto das chamadas humanidades médicas. Está de parabéns a Editora Fiocruz pela oportuna publicação deste livro, que vem preencher uma lacuna até agora existente no Brasil, ocupando o vazio existente na relação da ética médica com a educação médica propriamente dita.

 


 

 

José Mendes Ribeiro

Departamento de Ciências Sociais, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

 

 

SAÚDE: PROMESSAS E LIMITES DA CONSTITUIÇÃO. Eleutério Rodriguez Neto (organizado por J. G. Temporão & S. Escorel). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. 264 pp.

ISBN: 85-7541-026-1

Ecos da Constituinte

O livro que acaba de chegar às mãos de pesquisadores, políticos e estudantes diretamente interessados no setor saúde no Brasil chama a atenção, de imediato, por dois aspectos principais. Um deles diz respeito ao processo decisório que culminou com as disposições constitucionais que ordenam as políticas de saúde, de resto o principal objetivo do livro. O outro se refere ao apoio institucional e a homenagem prestada ao autor por pesquisadores e lideranças altamente reconhecidas nesta área de atuação.

A própria estrutura do texto reflete esses dois aspectos. Eleutério Rodriguez Neto colecionou importantes informações sobre o processo decisório constituinte na qualidade de um dos principais negociadores em meio a disputas acerca do arranjo institucional para o setor saúde. A agenda política setorial tratada no livro se articula ao conjunto de decisões marcadas pela redemocratização do país e que encerrou, espera-se que definitivamente, o ciclo ditatorial de 1964. A dimensão de homenagem se observa pelo esforço dos organizadores em compor o material coletado na forma de um livro. Para isso os organizadores do livro, José Gomes Temporão e Sarah Escorel, se associaram aos colaboradores Lenir Santos e Nelson Rodrigues dos Santos, no tratamento analítico do rico material inicialmente composto pelo autor. O prefácio redigido por Paulo Marchiori Buss e a divulgação por Sônia Fleury, fecham um quadro no qual pesquisadores e lideranças de renome se associam para, simultaneamente, trazer à luz fatos e versões sobre a Constituinte e permitir a conclusão de um projeto inicialmente destinado a produzir uma tese de doutoramento.

Exatamente por este caráter de uma tese inconclusa, o leitor verá adiado por algumas páginas o seu acesso ao que o livro possui de mais relevante ­ as narrativas do processo político vivenciadas pelo autor. A introdução ao livro é um tanto prejudicada por uma discussão pouco desenvolvida e desnecessária acerca de militância política, cientificidade e aspectos institucionais do ambiente acadêmico. Para os leitores que desconhecem os conflitos mencionados, fica a impressão de que algo teria prejudicado a trajetória acadêmica do autor, porém sem acesso aos fatos de modo nítido, pouco podem fazer em termos de juízo. Felizmente, esses problemas não se repetem quando são tratados os conflitos internos do movimento sanitário, esses sim, bem evidenciados ao longo do livro. A própria introdução se encerra com a afirmativa de que não se trata de um trabalho "ortodoxo" em termos acadêmicos, mas que apresenta como fontes principais documentos escritos, entrevistas e debates gravados. As vivências pessoais são destacadas em conjunto com as fontes documentais, de modo a orientar os leitores por meio das narrativas do autor e de seus pontos de vista acerca do que considera, ao final, um afastamento do SUS quanto ao que considera (e caracteriza) como uma "doutrina da Reforma Sanitária".

No Capítulo 2 (O Caminho até a Constituinte: a Atuação do Movimento Sanitário), os leitores encontrarão o ponto forte do livro, onde são destacados os pontos de vista de diferentes lideranças do sanitarismo brasileiro, em meio a soluções políticas e desenlaces administrativos observados na máquina pública ao longo do próprio processo de redemocratização do país. Nesta parte é desenvolvida a estrutura de conflitos que irá orientar o capítulo seguinte sobre o processo constituinte em si. O padrão utilizado pelo autor consiste em destacar um dado evento (disputa intraburocrática por soluções organizacionais para a atenção à saúde) e alinhar os interesses em conflito, analisados segundo uma "visão parcial, unilateral, a ser completada em outra ocasião por quem possa ter vivido a situação em outra posição e observado-a de outro ângulo" (p. 33). Por exemplo, no caso do Prevsaúde, apontado como um paradigma da reforma sanitária, o autor opina que as pressões que impediram a sua implementação partiram da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (ABRAMGE), classificada como uma face do "capitalismo moderno"; dos hospitais privados que estariam temerosos quanto ao peso regulatório estatal; e ao "clientelismo político" fruto de uma aliança entre parlamentares e a Associação Médica Brasileira (AMB).

Este tipo de mapeamento dos interesses em conflitos aparece em seguida ao tratar do processo político em torno do CONASP, ao final de 1981, em meio a uma das inúmeras crises da Previdência Social. Os leitores podem, nestas passagens, ter contato com o ponto de vista do autor (participante direto dos debates), acerca das quatro tendências principais sobre a reforma setorial em torno do CONASP. As tendências competidoras foram classificadas como: (i) "conservadora/privatista", defendendo a manutenção do modelo do INAMPS a ser fortalecido por maior aporte de recursos e pelo aprimoramento da fiscalização, e liderada pela Federação Brasileira dos Hospitais (FBH); (ii) "modernizante/privatista", defendendo a orientação do sistema ao modelo das Health Maintenance Organizations (HMO) norte-americanas, representada pelo segmento de Medicina de Grupo e expressa nos pontos de vista do Ministério da Fazenda, do Ministério do Trabalho e do Programa Nacional de Desburocratização; (iii) "estatizante", expressa pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, defendendo a responsabilidade pública direta na prestação de serviços de saúde; e (iv) "liberais", como o segmento majoritário e sustentado pela elite médica e de setores financeiros, industriais e comerciais, descritos como defensores de um fortalecimento do setor público em termos de capacidade regulatória e de eficiência administrativa, expresso no controle sobre fraudes e na preservação da prestação de serviços privados.

As narrativas sobre os conflitos políticos e as resistências de sanitaristas à implementação de um modelo segmentado de atenção à saúde como matriz da reforma setorial, merecem ser conhecidas à luz das interpretações do autor. O resultado do plano Conasp, por exemplo, foi resumido após um esforço de síntese, com base em um emaranhado de resoluções, em três componentes: (i) racionalização e contenção de gastos, principalmente pela substituição do sistema de contas abertas, pelo pagamento aos prestadores privados por meio de procedimentos agregados, na forma de Autorização de Internação Hospitalar (AIH); (ii) implementação de políticas segundo programas específicos; e (iii) melhoria da qualidade dos serviços da rede assistencial, principalmente segundo a lógica dos convênios entre as redes federal, estaduais e municipais.

No capítulo seguinte são discutidos os conflitos e disputas no âmbito da própria Assembléia Nacional Constituinte, na seqüência da VIII Conferência Nacional de Saúde. O autor destaca nas conclusões da Conferência a não inclusão de teses do setor privado, que teria recusado os convites para a participação no evento. No entanto, chama a atenção a menção feita às propostas derrotadas da coalizão que envolveria o PT, o PDT e setores da CUT em favor da "estatização imediata" do setor saúde.

O autor apresenta dados coletados junto aos membros da Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, que representava a "porta de entrada" das propostas para a Assembléia Nacional Constituinte. Classificou o teor das propostas apresentadas em três grupos: (i) representantes do movimento sanitário organizados em favor dos fundamentos da VIII Conferência Nacional de Saúde; (ii) representantes do mercado em defesa da iniciativa privada e da prática liberal da medicina e (iii) representantes da burocracia pública setorial em defesa das funções dos Ministérios da Saúde e da Previdência Social. Chama a atenção para o comportamento político dos representantes do setor filantrópico que "tradicionalmente se beneficia de sua ambigüidade (...) disposto a uma aliança com a proposta que mais lhe viabilize" (p. 61).

O livro descreve os eventos subseqüentes em sucessivas comissões e a votação final do capítulo da saúde no contexto da seguridade social. O texto constitucional e sua modelagem são analisados pelo autor e comentários oportunos e esclarecedores de Lenir Santos conferem substância aos relatos. Ao final, Eleutério Rodriguez Neto e Nelson Rodrigues dos Santos buscam traçar uma ponte entre o debate constituinte e a agenda política do SUS, na qualidade de um balanço de uma década e sobre o resgate dos princípios da reforma sanitária.

A questão central que se coloca ao debate, não tratada no livro, se refere à capacidade da agenda do movimento sanitário responder às necessárias reformas no sentido de conferir ao sistema público de saúde no Brasil, maior qualidade, eficiência e eqüidade. Por outro lado, o autor apresenta com clareza o amadurecimento, a implementação e as repercussões institucionais de um processo longo de formulação política. Esse processo acompanhou a transição política do Brasil na direção de uma democracia orientada por valiosos princípios liberais, porém ainda em busca da realização das expectativas de justiça cotidiana e de proteção social.

 


 

 

Sarah Escorel

Departamento de Administração e Planejamento em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

 

 

DEMOGRAFIA DA EXCLUSÃO SOCIAL. TEMAS E ABORDAGENS. Maria Coleta Oliveira (org.). Campinas: Editora da Unicamp, 2001. 190 pp.

ISBN: 85-268-0546-0

Julien Freund, no prefácio do livro de Martine Xiberras (Les Théories de l'Exclusion: Pour une Construction de l'Ímaginaire de la Deviance. Paris: Méridiens Klincksieck, 1993), afirma que a noção de exclusão está "saturada de sentido, de não-sentidos, e de contra-sentidos (...) significando tudo e qualquer coisa". A polissemia da exclusão, portanto, enfraqueceria sua precisão conceitual questionando a validade da categoria para a análise do fenômeno social contemporâneo ("a nova questão social").

Entre a publicação do livro de René Lenoir, Les Exclus: Un Français sur Dix, em 1974, quando o termo exclusão social serviu apenas de chamariz publicitário e os primeiros anos do século XXI, foi intenso o debate entre críticos e adeptos, em inúmeros artigos e livros que ultrapassaram as fronteiras francesas, buscando maior precisão conceitual. Argumentos sólidos e críticas consistentes são esgrimidos sem conseguir alterar o contexto intelectual em que alguns defendem e outros rejeitam que exclusão social constitua uma "unidade de significação" teórica.

No entanto, as diversas acepções e a fluidez conceitual da exclusão social possibilitam congregar diferentes abordagens cujo ponto de chegada é um cotidiano construído de múltiplas e simultâneas exclusões, do qual é um bom exemplo a coletânea organizada por Serge Paugam (L'Exclusion: l'État des Savoirs. Paris: La Découverte, 1996).

Demografia da Exclusão Social: Temas e Abordagens, livro organizado por Maria Coleta Oliveira, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (NEPO) e docente do Departamento de Antropologia (Universidade Estadual de Campinas), é produto do Seminário Internacional sobre Demografia e Exclusão Social, realizado em dezembro de 1997, evento comemorativo dos 15 anos de criação do NEPO. O livro que oferece ao público brasileiro a oportunidade de entrar em contato com estudos e pensamentos de pesquisadores do México, Estados Unidos, França e Chile, assemelha-se à coletânea organizada por Paugam e, por isso mesmo, 'sofre' as conseqüências da heterogeneidade conceitual que cada autor adota de exclusão social.

No primeiro capítulo (Exclusão Social e Democracia: Elementos para uma Agenda ­ M. C. Rodrigues & L. Guedes), considerado como o termo de referência para as demais contribuições, as autoras propõem "clarear a natureza dos processos de exclusão e as situações deles decorrentes" (....) "ultrapassando o marco da pobreza no qual as agendas de pesquisas sobre esses temas têm se colocado", e embora apontem as características sociais e econômicas do fenômeno eximem-se do embate conceitual. Advogam pela potencialidade da demografia como disciplina para "desvendar" a natureza do processo, e pelo marco teórico e metodológico dos cursos de vida.

Susan Greenhalgh, antropóloga da Universidade da Califórnia, aborda criticamente o desenvolvimento histórico da demografia caracterizado pela submissão aos interesses dominantes, em particular, ao controle da natalidade, propondo sua substituição por um campo de estudos populacionais de caráter interdisciplinar. A agenda de pesquisa colaborativa que a autora apresenta está integrada por quatro grandes eixos: medindo as dimensões (extensão) da exclusão; as raízes políticas e econômicas da exclusão (economia política da exclusão); a política dos números (de como os números podem e/ou devem informar a ação política); e a incorporação dos testemunhos do sofrimento social.

No capítulo três, Ana Maria Goldani tece uma crítica da crítica de Susan Greenhalgh à demografia, classificando de etnocêntrica a postura da pesquisadora norte-americana e avaliando que suas propostas tendem a "descobrir a América Latina". Isso posto, faz um mapeamento da noção de exclusão social, aderindo à definição de Robert Castel, estruturada com base no mundo do trabalho e de suas transformações, sem a necessária contextualização do conceito para o Brasil e a América Latina em que os vínculos ocupacionais, extremamente frágeis para a grande maioria dos habitantes, não podem, ao contrário da sociedade francesa, ser considerados como elementos predominantes de coesão social.

Em Busca de uma Sociedade Civil em Escala Global é o ensaio de Frank Bonilla que apresenta características e heterogeneidades da situação dos migrantes latinos nos Estados Unidos, e sugere propostas de ação por meio da configuração de uma rede internacional de associações, sem dedicar-se aos elementos conceituais e metodológicos que permitiriam analisar a situação desses grupos como uma nítida explicitação do fenômeno da exclusão social nos Estados Unidos.

Os capítulos 5 e 6 abordam o mesmo tema ­ trabalho e relações sociais de sexo/gênero. Em Gênero, Trabalho e Exclusão, Orlandina de Oliveira & Mariza Ariza abordam novas facetas de uma exclusão tradicional originária da divisão social e sexual do trabalho, discutindo de forma mais sistemática o conceito de exclusão social, diferenciando-o de segregação social ("reduzir um espaço social para assegurar a manutenção de uma distância, para institucionalizar uma diferença que, por sua vez, ratifica uma certa ordem social") e de precariedade ("processo global que atinge a força de trabalho com maior impacto relativo nas mulheres", aplicado seja às atividades por conta própria seja às assalariadas), e apresentam índices como o de "dissimilaridade" na distribuição dos trabalhos doméstico e extradoméstico e de discriminação salarial contra as mulheres.

Helena Hirata analisa o mesmo tema nos países europeus, evidenciando que o fenômeno não se limita aos países em desenvolvimento ou periféricos. Apoiando-se na argumentação de Castel (1998), a autora questiona a adequação da noção de exclusão para compreender as mudanças atuais no mercado de trabalho (por denotar uma ruptura completa com a sociedade, por recobrir situações heterogêneas, por autonomizar e naturalizar situações-limite, e por não desvendar as dinâmicas sociais que estão na origem do fenômeno), preferindo caracterizar como desigualdades de gênero na esfera ocupacional. Estas são de estatuto e de salário, ou seja, envolvem a representação (o valor simbólico) do trabalho masculino como superior ao feminino, e manifestam-se também, seja diante do desemprego (as mulheres são mais atingidas que os homens) seja do emprego em tempo parcial (no qual as mulheres são também sobre-representadas), configurando uma "nova figura salarial feminina".

No capítulo 7, Teresa Bracho apresenta uma interessante abordagem conceitual e metodológica sobre a exclusão educacional como dispositivo de exclusão social. Assinalando brevemente as diversas concepções de exclusão, tem como ponto de partida duas premissas: a "exclusão social não é um fenômeno individual, mas sim social" e (...) "a exclusão educacional marca o indivíduo socialmente excluído em outras formas de exclusão social". A grande contribuição da autora está quando analisa uma "característica muito particular da exclusão educacional ­ é que essa condição é definida muito cedo no ciclo de vida de um indivíduo, a partir do momento de sua incorporação ou não-incorporação na escola na idade legal correspondente e, portanto, tal decisão não é tomada pelo indivíduo". Portanto, a unidade de análise não pode ser o indivíduo excluído, e sim o grupo familiar. Nessa perspectiva, Teresa Bracho analisa os processos de decisão de escolarização dentro da família e suas possíveis racionalidades, a relação entre a oferta e a demanda educacional e as alternativas de atenção ao problema da política educacional. Considerando como "variável exclusão aqueles grupos familiares que não enviam nenhuma de suas crianças para a escola ou que escolhem uma delas para freqüentá-la, deixando de fora pelo menos um outro menor", os dados revelam as diferenças quando agrupados por indivíduos e por grupos familiares ­ do nível primário estavam excluídos 6,9% dos indivíduos, porém, 18,9% dos grupos familiares. Por fim, a autora aborda a exclusão do trabalho devido a condições educacionais.

As relações entre exclusão social e saúde estão presentes em Epidemiologia da Violência, capítulo elaborado por João Yunes, no qual apresenta uma abordagem epidemiológica tradicional de um fenômeno (a violência) contemporâneo. O autor não se propõe a incursionar no terreno conceitual e não configura um arcabouço teórico sobre violência e exclusão social, embora ofereça muitos elementos para analisar Saúde como importante variável (e mediação necessária) de diversas dimensões do processo de exclusão, em particular da dimensão humana (o mundo da vida) que permite caracterizar a qualidade de vida e na qual a exclusão pode atingir seu limite, o limiar da existência humana.

Associado ao perfil epidemiológico das mortes violentas na região das Américas, Yunes aponta aspectos que integram todas as dimensões do processo. Na dimensão política (mundo da cidadania), que envolve o acesso e o usufruto dos direitos, aponta a ineficácia e impunidade da justiça e da força policial, e o autoritarismo como fonte importante de violência social. Na dimensão cultural (simbólica), indica a "cultura da violência" ("é uma cultura vertical que não negocia, nem cede, que carece de capacidade de solução pacífica dos conflitos"), a adoção de condutas de risco valorizadas culturalmente como expressões de masculinidade, a perda da influência regulatória da Igreja Católica, o baixo acesso à educação, o incentivo do comportamento violento e a dessensibilização diante da violência promovidos nos meios de comunicação ("chegando ao extremo de conceber a violência como algo normal"). Na dimensão econômica aborda a desigualdade social como fator condicionante de comportamentos violentos, o impacto social e econômico da violência e o setor privado da indústria de violência. Concluindo, o autor propõe a implantação de sistema de vigilância epidemiológica que permita identificar os fatores de risco associados e contribuintes da violência, e a implantação de planos intersetoriais de prevenção e controle da violência.

O último capítulo, Transformação Urbana e Dialética entre Integração e Exclusão Social: Reflexões sobre as Cidades Latino-americanas e o Caso de Santiago do Chile, de Francisco Sabatini, aborda a exclusão social como dimensão da segregação urbana e sua manifestação espacial e territorial nas cidades, apresentando uma inversão da relação tradicional entre esses conceitos. Ou seja, Sabatini considera que a segregação é inerente ao desenvolvimento das sociedades (e das cidades) capitalistas, mas que esta nem sempre vem acompanhada da conseqüência perversa que é a exclusão. Um modelo ideal de segregação é a situação em que há diferenciação social sem exclusão ­ "pequenos bairros ou áreas socialmente homogêneas com um núcleo de identidade claro e com bordas difusas". Em nossas sociedades, afirma o autor, há dois sentidos de segregação: o positivo que possibilita constituir comunidades entre pessoas que têm interesses e estilos de vida comuns, e o negativo que é uma forma de excluir outros, considerados indesejáveis, seja por serem diferentes ou pelo fato de sua presença poder afetar o valor das propriedades. E adverte que fala de uma integração social possível nas economias capitalistas, "uma integração que não exclui a subordinação nem a exploração.

Com essas premissas e tendo por base a cidade de Santiago do Chile para analisar as mudanças em curso nas cidades em geral, com particularidades na América Latina, Sabatini elabora um conjunto de hipóteses/propostas relacionadas com a escala espacial da segregação: o significado negativo da segregação é predominante, favorecendo sentimentos de exclusão ou marginalidade social em que há desapego territorial, aumento das patologias sociais, e a perspectiva de futuro é sair desse lugar ("efeito gueto"); a monotonia dos desenhos arquitetônico e urbanístico e a escassez de espaço para progredir e gerar diversidade (moradias multifamiliares minúsculas empilhadas em edifícios e ruas, monotonamente repetidos) podem ser responsáveis por sentimentos de falta de esperança e patologias sociais; o excessivo zelo zoneador do planejamento urbano é segregador; quanto maior a escala espacial ou geográfica da segregação (grande aglomeração de pobres) maior o desapego em relação ao lugar de residência; dado um mesmo tamanho de área homogênea, quanto menor a freqüência das interações com outras áreas da cidade ou maior a distância até lugares centrais (isolamento social), maior o efeito da borda que a isola do resto da cidade, favorecendo a exclusão social; a existência de lugares de encontro é fator de integração social; nas cidades latino-americanas as diferenças por níveis de renda se combinam com outros fatores (étnicos, raciais, relativos à idade, religiosas) para definir a segregação social urbana; e a segregação urbana é parte da essência do capitalismo urbano, do desenvolvimento dos empreendimentos imobiliários (exclusividade social).

A partir do ocorrido em Santiago do Chile, o autor elabora uma hipótese para a cidade latino-americana em que o desenvolvimento do setor de empreendimentos imobiliários pode favorecer simultaneamente a produção de exclusividade social (para a venda) e uma redução na escala da segregação social do espaço urbano. Mas, os mesmos processos e forças econômicas que, em cidades como Santiago, podem abrir possibilidades de integração social, em cidades européias (e na cidade do Rio de Janeiro) contribuem para aumentar a exclusão social.

Se ao final da leitura, mais uma vez, fica nítida a heterogeneidade teórica e metodológica e a ausência de uniformidade conceitual dos diferentes capítulos, é também evidente que o livro apresenta um substrato farto e substantivo para compreender e estudar a exclusão social em sua polissemia, nas suas diversas dimensões, facetas e interfaces.

 


 

 

Jorgina Teixeira Lobo

Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

 

 

DEPRESSÃO: CLÍNICA, CRÍTICA E ÉTICA. Orlando Coser. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. 172 pp.

ISBN: 85-7541-030-X

O que vem a ser depressão? O que a caracteriza? É a depressão um afeto, um sentimento, um humor? Por que não uma paixão triste, como queria Esquirol? É com questões simples assim que Orlando Coser nos convida a um profundo mergulho no campo deste fascinante, e por vezes assustador, problema, a depressão, que já se tornou o grande mal-estar da atualidade.

Estudos científicos das mais variadas ordens tentam localizar um fator biológico determinante para a depressão. A indústria dos psicofármacos nunca investiu tanto em pesquisas de drogas que possam fazer frente aos mais diversificados sintomas emblematicamente designados como depressão. Assim, diversos caminhos são explorados com um único objetivo ­ achar uma droga milagrosa que contemple o bem-estar geral. Observa-se, porém, que sob a designação "depressão", queixas e sintomas os mais variados são homogeneizados, demissionando a subjetividade da "queixa/sintoma" em questão.

A clínica psiquiátrica, responsável direta pelo tratamento dos transtornos depressivos em suas referências conceituais e nosológicas, busca em suas classificações esquadrinhar parâmetros para um diagnóstico diferencial, o que, entretanto, tem pouco efeito sobre a prática, freqüentemente resumida à administração de um medicamento antidepressivo na busca de extirpar o sofrimento ocasionado pela depressão.

Ultrapassando os limites dos laboratórios de pesquisa e os consultórios médicos, temos que, na atualidade, a depressão acha-se também amplamente veiculada pela mídia: listas de sintomas, medicações mais indicadas, novas pesquisas e produtos das indústrias farmacêuticas são informações que se encontram à disposição em revistas populares, fornecendo ao público leigo os indicativos para o diagnóstico, bem como os medicamentos de última geração, suas especificidades e possíveis utilizações em outros males, como dores crônicas, TPM, tabagismo, distúrbios do sono, obesidade, estresse etc.

De posse desse conhecimento, o leitor rapidamente identifica não só a razão de seu "mal" como também a saída para o mesmo. Apropriando-se dessas informações, é freqüente sua chegada ao consultório médico já com um diagnóstico e até a medicação mais adequada, restando a este sua prescrição. Este quadro contempla plenamente aos anseios de ambos ­ paciente e médico; o primeiro por achar que encontrou uma solução para seus sofrimentos e dificuldades, e o segundo, também, na medida em que "neutralizando" a dor do outro, se isenta de nela tocar. Aí, o sofrimento, em sua condição eminentemente subjetiva, é nomeado e devidamente encapsulado em um comprimido de fluoxetina, duloxetina, ou um de seus similares, que deverá ser ingerido regularmente, abafando o sofrimento, sabe-se lá por quanto tempo.

Fazendo um anverso a este quadro, Coser, por meio de seu livro, Depressão: Clínica, Crítica e Ética, tomando como base os princípios da psicanálise e da psiquiatria, produz um apurado e rigoroso estudo crítico-reflexivo do ponto de vista metodológico, clínico, teórico e ético, empreendendo um caminho absolutamente ímpar no esclarecimento das distintas formas existentes desse sofrimento, bem como dos diversos modos de sua produção, chegando à máxima desta produção no que diz respeito ao enfrentamento clínico do fenômeno depressivo.

Contemplando um rico, vasto e diversificado material bibliográfico, o autor fazendo uma incursão na psiquiatria por intermédio das contribuições de Pinel, Esquirol e Kraepelin, dentre outros, e na psicanálise com Freud, Karl Abraham, Melanie Klein e Lacan, reconstrói os meandros da clínica da depressão de forma quase artesanal, recortando e alinhavando cuidadosamente contribuições relevantes, desfazendo imprecisões, desmistificando as "ilusões" medicamentosas, questionando a vulgarização e abrangência diagnóstica, pontuando e esclarecendo diferenças e contradições. Com base nesse enfoque, a depressão vai ganhando o contorno de sua especificidade, riqueza e complexidade, quadro muito distinto da homogeneidade com que mais habitualmente é considerada.

Delineia-se assim o perfil do lugar e do estatuto clínico desta categoria diagnóstica na clínica psiquiátrica, articulando com base na psicopatologia clássica os conceitos de melancolia e depressão. Nesse contexto, a classificação nosológica do sofrimento depressivo é investigada e problematizada, na medida em que, apresentando variados enfoques, acha-se, por vezes, inespecífico e disseminado em suas determinações.

O livro é organizado em seis capítulos, precedido de uma breve apresentação onde Coser, numa visão panorâmica sobre o assunto que estará sendo afinado ao longo do livro, já dá mostras de uma trajetória literária que revela a tessitura complexa do assunto e o cuidado com que o mesmo deve ser tratado. Um excelente prefácio, assinado pelo psicanalista Romildo do Rego Barros, introduz a temática do livro de forma instigante à sua leitura.

Apresentando os variados enfoques utilizados para justificar suas causas, Coser transita desde a depressão de origem endógena como propunha Kraepelin, às doenças do sistema nervoso que se fazem acompanhar de sintomatologias depressivas, estando estas remetidas a uma causa de ordem somática, o que neutraliza as relações precipitantes psicossociais. Em contraponto a essas, e justificando outras inúmeras formas de manifestações, destaca o caráter exógeno, reativo e/ou psicógeno que comporta em seu desencadeamento fatores de ordem psicossocial, e nesses casos a depressão seria um sintoma reacional. Realça, não obstante, que as fronteiras entre estas distintas etiologias revelam-se imprecisas e questionáveis em suas delimitações, destacando que a categoria "depressão reativa", criada pela psiquiatria, nada mais é do que um artifício de enquadre na nosografia para os casos depressivos que representariam o efeito das contingências da vida sobre a subjetividade.

Faz assim, uma sustentável visão crítica destes paradigmas, que vêem na química a causa do sujeito e buscam remediar seus sofrimentos também quimicamente, ressaltando que, nos últimos trinta anos, o que se produziu nestes campos "aponta mais na direção de ampliar a escravidão e a miséria existencial dos sujeitos que na de sua liberdade". (p. 36). Ressalta que as atuais pesquisas neste campo ao produzirem novos instrumentos para definições operacionais e seus procedimentos, promovem "a exclusão do sujeito de sua fala" (p. 34).

O desenho disciplinar que deste prisma emerge é o abandono da dinâmica da clínica psiquiátrica enquanto arte, e sua apreensão pelo modelo tradicional da medicina geral e sua eficácia medicamentosa. Prioriza-se assim a doença e não o sujeito da doença.

Não deixa passar sem uma avaliação evolutiva e crítica as classificações "oficiais" mapeadas pela CID (Classificação Internacional de Doenças e Causas de Morte) da Organização Mundial da Saúde, em sua décima revisão e o DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder), elaborado pela Associação Psiquiátrica Norte-Americana, e destaca os diversos fatores de confundimento (teórico, clínicos,conceituais) e examinando-os, no decorrer do livro, à luz da contribuição psicanalítica.

Conclui-se assim, que tais abordagens revelam uma compreensão reducionista sobre a depressão, e na qual a terapêutica farmacológica produz uma ilusão de eficácia que tende a desconsiderar suas diferenciações clínicas, bem como suas distinções etiológicas, dificultando também qualquer outro tipo de abordagem terapêutica.

Porém, a eficácia de tal ilusão se desvanece, é o que comprova Coser em sua experiência clínica, ao receber pacientes que após vários tratamentos, sem sucesso, chegam a seu consultório em busca de ajuda. No dispositivo analítico, o sujeito, implicado com seu sofrimento deve dele se apropriar, o que não é feito sem que o seu próprio padecimento entre em cena. Tal situação, nem sempre suportável e compatível com a demanda imediatista de não sofrer, pode responder ao fato deste tipo de tratamento muitas vezes não ser sustentado, explicando porque alguns pacientes "chegam ao analista, mas não a uma análise" (p. 17).

É na abordagem psicanalítica sobre a depressão que Coser revela um manejo próprio e especial dos conceitos e fundamentos clínicos com que vai alinhavando seus questionamentos e produzindo novas possibilidades de se pensar sobre a depressão.

Destaca que é em seus estudos sobre a melancolia que Freud esclarece o processo de luto e investiga os padecimentos depressivos ali presentes, não fazendo, porém, da depressão uma categoria nosológica ou uma estrutura clínica. Ao contrário, refere-se à depressão compreendendo duas acepções; uma mecânica, no sentido de uma queda, um decréscimo em uma função psíquica qualquer (insuficiência de investimento libidinal) e outra relacionada a um estado de sofrimento psíquico, semelhante ao seu uso atual.

A partir daí, o autor faz uma criteriosa incursão na teoria e na clínica psicanalíticas, articulando pontualmente nos escritos freudianos sobre o luto, a melancolia, caracterizando estes dois estados psíquicos e os padecimentos depressivos que apresentam. Ambos marcados por uma perda, real ou virtual, de um objeto amado, que atinge a estrutura egóica causando um sofrimento de ordem narcísica, o qual exige todo um trabalho psíquico de reparação. A efetivação do luto, que opera um processo de desconstrução e reconstrução dos laços libidinais, possibilita a conexão do sujeito a novas possibilidades de investimento no mundo externo. Na melancolia, a perda é introjetada ao ego, deixando este de ser objeto de amor e estima. Incorporando o objeto perdido o ego torna-se, ele próprio, objeto de amor e ao mesmo tempo de desprezo e culpa. Aqui, o trabalho de luto não evolui e o sujeito é apreendido em um modo de funcionamento psíquico ambíguo e contraditório, no qual a autodepreciação e a auto-recriminação fundamentam uma existência crítica/punitiva, perpetuando um estado de luto patológico.

Valendo-se dessas conceituações básicas, Coser aprofundando-se na obra freudiana e apropriando-se das contribuições de Abraham, Melanie Klein e Lacan, apreende subsídios teóricos conceituais que lhe permitem a construção de um contorno consistente acerca da depressão no que diz respeito à compreensão das suas inúmeras características sintomatológicas sem, no entanto, cristalizá-la em uma estrutura clínica. É isso que possibilita uma terapêutica que inclua o resgate da subjetividade pulverizada pelo padecimento depressivo que obscurece o brilho das ilusões que alimentam a objetividade do viver.

A complexidade e a riqueza da contribuição contida no livro de Orlando Coser só poderá ser plenamente contemplada com sua leitura. Uma obra de valor inestimável, imprescindível para profissionais, pesquisadores, docentes e estudantes da área de saúde, comprometidos com o saber e a prática clínica, e interessados em um olhar e em uma escuta diferenciada acerca daquilo que faz o sujeito sofrer.

Concluindo, podemos afirmar, que o estudo sobre a depressão tem um novo marco diferenciador, o livro Depressão: Clínica, Crítica e Ética.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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