RESENHAS BOOK REVIEWS
Vera Lucia Navarro
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil. vnavarro@usp.br
SAÚDE DO TRABALHADOR NO SUS: APRENDER COMO O PASSADO, TRABALHAR O PRESENTE, CONSTRUIR O FUTURO. Maeno M, Carmo JC. São Paulo: Editora Hucitec; 2005. 372 pp.
ISBN: 85-271-0687-6
Saúde do trabalhador no SUS: relevância e atualidade do tema
O livro Saúde do Trabalhador no SUS: Aprender com o Passado, Trabalhar o Presente, Construir o Futuro, de autoria dos médicos Maria Maeno e José Carlos do Carmo, publicado pela Editora Hucitec, traz importante contribuição para se compreender a difícil luta dos trabalhadores brasileiros por melhores condições de trabalho e pela garantia de sua saúde ao revelar os dilemas e desafios enfrentados pelos diferentes atores sociais envolvidos com a construção de políticas públicas para a área de saúde do trabalhador no país.
Sob um olhar mais crítico podem-se encontrar problemas referentes à forma de apresentação, a imprecisão de alguns dados (como erros nas datas do início e final da Segunda Guerra Mundial) e o excessivo número de ilustrações distribuídas ao longo de suas mais de trezentas páginas, dentre outros pequenos pecados (quem não os tem?). Tais pequenos senões, entretanto, não fazem sombra a esta obra que traz ao leitor o registro de importantes informações para aqueles que trabalham ou têm interesse nos aspectos que se referem à saúde do trabalhador no Brasil. Sua publicação se dá em um momento em que as condições de trabalho e saúde dos trabalhadores no Brasil têm se agravado, em um quadro marcado pela precarização e intensificação do trabalho. Compõem este quadro as mudanças tecnológicas e organizacionais e as alterações nos processos e relações de trabalho que resultam em intensificação do trabalho, em contratos precários, temporários, aumento da jornada, exploração do trabalho a domicílio e do trabalho infantil, aviltamento salarial e crise do movimento sindical. Agregue-se a isso a adoção de políticas de cunho neoliberal que mercantilizam serviços essenciais como a saúde e a educação e contribuem para o enfraquecimento das instituições públicas encarregadas da vigilância dos ambientes de trabalho. Este conjunto de mudanças, que se intensificam no país a partir dos anos de 1990, contribuiu para o aumento de doenças relacionadas ao trabalho e criou condições que conduzem ao incremento da probabilidade de acidentes causadores de incapacidade temporária ou permanente ou mesmo mortes de trabalhadores: a título de exemplo, foram 15 as mortes de cortadores de cana-de-açúcar do Estado de São Paulo nos anos de 2004 e 2005. Estes trabalhadores, em sua maioria migrantes e submetidos a condições desumanas de trabalho, morreram em condições semelhantes durante ou depois da jornada de trabalho. Existe a suspeita que suas mortes estejam relacionadas à exaustão, dado que a remuneração pelo trabalho é ditada pela produção e deles é exigido o corte de 11 toneladas de cana-de-açúcar ao dia, em média.
É bastante oportuna a publicação deste livro, que traz a público o registro de parte da história da Saúde do Trabalhador, particularmente do Sistema Único de Saúde, do ponto de vista dos autores que compartilharam, ao longo de décadas, a militância na área da Saúde Pública no Estado de São Paulo. Oportuna também é sua publicação neste momento em que esforços vêm sendo empreendidos na tentativa de se construir uma política nacional e integrada dos campos da Saúde, Trabalho e Previdência Social. Quiçá possa suscitar nos leitores o engajamento efetivo e compromissado na luta em prol da saúde dos trabalhadores, que não deve se limitar apenas à atuação técnica, restrita à fria abordagem clínica.
Segundo os autores, este é um "livro de estórias permeadas de fatos históricos que vivemos e analisamos agora, de forma muito particular, com o objetivo de provocar discussões que possam ajudar a abrir horizontes e a construir caminhos". Ele é dedicado aos velhos parceiros da área de Saúde do trabalhador que eram "muito parecidos na forma de ser e de pensar e aos novos parceiros não tão parecidos, nem no jeito de ser e nem no de pensar" (p. 21).
A leitura do livro permite identificar diferenças entre Medicina do Trabalho, Saúde Ocupacional e Saúde do Trabalhador, termos muitas vezes usados como sinônimos mesmo por profissionais da área. Os autores revelam que, a princípio, as relações entre saúde e trabalho eram tratadas apenas por um campo de conhecimento, o da medicina. Com a expansão industrial ocorrida com a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que resultou em mudanças no mundo do trabalho e ampliação das doenças relacionadas à atividade laboral, houve uma mudança no viés eminentemente clínico de atuação na área. A atuação médica, em vez de enfocar apenas a disfunção biológica que ameaçava a capacidade de produção do trabalhador, passou também a considerar outros aspectos do ambiente de trabalho, que também se tornaram campo de intervenção. Com base neste novo paradigma, o ferramental de outras disciplinas, em especial da Ergonomia, da Higiene do Trabalho e da Toxicologia, veio somar-se à abordagem clínica individual da Medicina. Segundo os autores, a Saúde Ocupacional, apesar de ampliar o leque de instrumentos e conhecimentos para a abordagem da relação entre saúde e trabalho, mantém o trabalhador como objeto de sua intervenção. Ao longo do tempo, alguns de seus preceitos se transformaram em verdades incontestáveis, como o de que o ser humano pode ser exposto a condições insalubres desde que respeitados limites considerados aceitáveis, e que existem níveis seguros de exposição a substâncias nocivas. No entanto, alertam que os limites de tolerância variam de país para país, refletindo a influência de fatores sociais, econômicos e políticos, como é o caso do amianto, substância cancerígena, banida por vários países e ainda utilizada em empresas brasileiras, desde que respeitados determinados limites.
Para os autores, foi nos anos de 1970 que a área ganhou um novo enfoque. A saúde do trabalhador emergiu em um contexto marcado pelo crescimento dos movimentos pela redemocratização do país (final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980). "O olhar conferido pela Medicina Social atento à estrutura social e do trabalho e mais próximo das instituições públicas de saúde ganha nova dimensão: o ser humano, sua inserção no processo produtivo como um todo, na organização e na divisão do trabalho e as características específicas de cada extrato social. (...) De caráter interdisciplinar e intersetorial, a Saúde do Trabalhador, sem deixar de se valer do acúmulo do conhecimento da Medicina do Trabalho e da Saúde ocupacional, considera que o trabalhador e por extensão todo o conjunto da população , além de objeto de seus benefícios, deve ser também sujeito das ações de transformação dos fatores determinantes do seu processo de adoecimento" (p. 44).
Em 1979 foi realizada a Semana de Saúde do trabalhador (Semsat), cujas discussões colaboraram para a criação do Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (DIESAT), em 1980.
O livro destaca ainda a importância de pesquisadores da área médica e de sindicalistas ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) na construção da área de saúde do trabalhador. Se destacam os convênios firmados com institutos italianos dedicados à Saúde do Trabalhador, que foram responsáveis pela formação de especialistas, principalmente de médicos, para esta área. O grande diferencial do modelo italiano é que ele preconizava a participação dos trabalhadores na geração do conhecimento e no controle dos riscos aos quais estavam expostos. "...Foi a influência italiana que contribuiu para a criação dos serviços de atenção à saúde do trabalhador dentro da estrutura da rede básica de saúde, alguns dos quais persistem até hoje" (p. 64).
O livro também traz o registro da construção do Programa de Saúde do Trabalhador da Zona Norte de São Paulo na década de 1980, pioneiro da área no país, cuja experiência foi compartilhada pelos autores.
Os anos de 1980 foram marcados também pela instalação do Congresso Constituinte, cujos trabalhos culminaram com a entrada em vigor da Carta Constitucional de 1988. No decorrer dos trabalhos daquela Casa a Universidade de Brasília (UnB) montou grupos de trabalho destinados a assessorar os parlamentares constituintes: um destes grupos era voltado para a área de saúde pública, área que possibilitou a criação de blocos suprapartidários.
"O Sistema Único de Saúde (SUS) foi a mais ousada reengenharia na Saúde Pública que veio deste processo de construção de uma Constituição que buscava reorganizar o País em todas os seus campos. Antes da Constituição de 1988, o direito à Saúde não era um princípio Universal". No que diz respeito à saúde dos trabalhadores, os autores lembram que não foi uma luta fácil e que foi decisiva a participação dos constituintes de esquerda nas votações específicas sobre a Saúde: "...havia diferenças entre dois grandes blocos. O primeiro, dos setores mais progressistas, defendia que as ações em Saúde do Trabalhador fossem, sem restrições, objeto da ação do SUS. O segundo bloco, de grupos corporativistas, formados por técnicos da área e setores do empresariado, alegava que a exclusividade da fiscalização dos ambientes de trabalho deveria permanecer com o Ministério do Trabalho" (p. 101).
O livro retrata também a mudança no perfil das doenças relacionadas ao trabalho, principalmente a partir dos anos de 1990 a LER é exemplo emblemático. "As LER/Dort eram e são a expressão da organização do trabalho a serviço do mercado e da saúde da economia, em detrimento da saúde e vida dos trabalhadores" (p. 132).
No penúltimo capítulo do livro é discutida a criação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador, gestada desde a década de 1970 quando teve início o Projeto de Cooperação Técnica Brasil-Itália (PCTBI). São também destacados a consolidação da Comissão Intersetorial de Saúde do Trabalhador (CIST), vinculada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) e o revigoramento do Grupo Executivo Interministerial de Saúde do Trabalhador (Geisat).
Os autores destacam também que a Portaria n. 1679/GM de 19 de setembro de 2002, que dispõe sobre a estruturação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador no SUS RENAST, "carrega um pecado de origem: trata somente da assistência, sem dispor sobre a vigilância nos ambientes de trabalho, pilar fundamental para a prevenção de danos relacionados ao trabalho" (p. 249).
Ao final da obra, os autores fazem considerações, das quais destaco duas, sobre a atual situação da saúde do trabalhador: "O atual governo federal tem reafirmado sua posição contrária à privatização do SAT (Seguro de Acidentes de Trabalho), ambicionada pelas grandes seguradoras, mas é importante que não baixemos a guarda e estejamos permanentemente atentos a qualquer tentativa neste sentido. Vale lembrar que, em decorrência de proposta de emenda constitucional apresentada pelo governo anterior (PEC 20), alterou-se a Constituição Federal abrindo brecha para a privatização" e "O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), contrariando diversas expectativas de quem esperava que o atual governo federal trataria com a importância necessária a área de Saúde do Trabalhador, tem se pautado por uma política dúbia e com sinais evidentes de pouca valorização das suas atribuições neste campo".
Os autores analisam como, ao longo de mais de duas décadas, os diferentes atores sociais (trabalhadores, pesquisadores, profissionais de saúde, sindicatos, universidades, organismos governamentais e outros) tentaram se articular em um esforço conjunto tendo em vista a construção de uma política de Estado para a área de saúde do trabalhador. "Essa análise é feita baseada em depoimentos e em fatos ocorridos particularmente no Estado de São Paulo e vividos pelos autores desde a década de 1980".
Um dos méritos deste trabalho é trazer a público o registro da atuação de profissionais envolvidos com a área da saúde do trabalhador comprometidos com a classe trabalhadora. Que sirva de exemplo para os novos profissionais da área, em especial aqueles que estão à frente dos Centros de Referência de Saúde do Trabalhador, em expansão no país. Cabe também reafirmar a necessidade de os estudos e pesquisas desta área se pautarem por uma perspectiva crítica e serem embasados por abordagens multi(trans)disciplinares, de caráter integrador para se obter uma melhor apreensão da saúde do trabalhador que é consumida pelo capital em processo. Minayo-Gómez & Lacaz 1 (p. 802) alertam para esta questão ao comentarem levantamento sobre a produção científica da área realizado por René Mendes: "...é evidente o predomínio da construção de conhecimento fragmentado, disperso, unidisciplinar, quando não repetitivo e tecnicista, resultante de pesquisas e análises pontuais desenvolvidas com abordagens próprias de cada disciplina: ou só da epidemiologia, ou só das ciências sociais e humanas, ou só da toxicologia, ou só da engenharia, dentre outras. (...) O que mais existe na produção de nossa área é um forte investimento na aplicação correta dos métodos, o que ocorre, por exemplo, em estudos com base na abordagem epidemiológica de dados primários ou secundários, sem a preocupação de se discutir a pertinência e significância do objeto estudado e sua contribuição para o avanço do conhecimento ou para o desencadeamento de ações práticas".
Para finalizar fica o registro da homenagem prestada pelos autores a Bernardo Bedrikow e David Capistrano da Costa Filho, médicos sanitaristas que tiveram atuação importante na área da Medicina do Trabalho e Saúde do Trabalhador: uma entrevista com o primeiro, realizada em 2005 e uma palestra proferida pelo segundo durante o VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, em Salvador, Bahia, no ano 2000, estão registradas em um DVD que acompanha o livro.
1. Minayo-Gómez C, Lacaz FAC. Saúde do trabalhador: novas-velhas questões. Cienc Saúde Coletiva 2005; 10:797-807.