RESENHAS BOOK REVIEWS
Paulo Cesar Basta
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. pcbasta@ensp.fiocruz.br
AS PESTES DO SÉCULO XX: TUBERCULOSE E AIDS NO BRASIL, UMA HISTÓRIA COMPARADA. Nascimento DR. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. 196 pp.
ISBN: 85-7541-052-0
Qualquer moléstia transmissível e incurável reveste-se de grande poder simbólico e passa a ser interpretada como "calamidade", "flagelo", "doença contagiosa grave" e "epidemia com grande poder de mortandade", assumindo características de peste. A abordagem utilizada pela autora sobre as representações sociais das duas terríveis pestes do século XX: tuberculose e AIDS, ganha originalidade ao promover o entendimento do fenômeno patológico para além de sua conceituação médica, descrevendo-o como objeto histórico socialmente construído. Dilene Raimundo do Nascimento é formada em medicina, e esta publicação é resultado de sua pesquisa de doutorado, no campo da história das doenças pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
O medo do aniquilamento físico e moral dos indivíduos e da sociedade como um todo, associado ao caráter de transmissibilidade e incurabilidade da tuberculose e da AIDS, assume papel central, ao longo de toda a obra, e perpassa os limites impostos pelas desigualdades sociais, atingindo de forma transversal todos os segmentos da sociedade. Tomando esta perspectiva, Nascimento conduz sua narrativa de forma a refletir sobre como os diferentes agentes sociais, cada um a seu tempo, relacionam-se com o mal que os ameaça, e especialmente com o outro, que num determinado momento torna-se a encarnação do próprio mal. Neste sentido, a autora discute a temática da estigmatização social do doente, dialogando com os valores morais vigentes e com a organização social estabelecida, ambas inseridas na estrutura do Estado, que irremediavelmente será obrigado a elaborar políticas públicas para tentar, ao menos, controlar o mal que assola a sociedade.
Dessa forma, a tuberculose e a AIDS passam a ser exploradas como eventos sociais integrados aos contextos histórico e cultural ao qual pertencem, e não apenas como eventos de (des)ordem biológica. Para tal abordagem, Nascimento utilizou-se de fontes históricas tradicionais, tais como: documentos oficiais, diretrizes médico-científicas, matérias publicadas em jornais e revistas; que foram complementadas por uma vasta iconografia e depoimentos orais de doentes, familiares, profissionais de saúde e representantes da sociedade civil, o que conferiu legitimidade à percepção social do fenômeno patológico.
A obra está dividida em cinco capítulos de forma didaticamente organizada, complementada por um número expressivo de notas, ao final de cada capítulo, que orientam um aprofundamento do tema para os leitores mais interessados.
No capítulo 1, a autora faz uma revisão da literatura contemporânea, destacando o arcabouço metodológico utilizado pelos historiadores para problematizar as questões atuais relativas às doenças. Antigamente, a categoria doença era vinculada ao campo da história da medicina e da epidemiologia histórica. No primeiro caso, os relatos ocorriam por meio da elaboração de teorias, teses e doutrinas que se restringiam a descrever as enfermidades analisadas. Já a epidemiologia histórica tratava as doenças como entidades naturais, que podiam se espalhar entre as pessoas e trazer assim conseqüências nefastas à população. Por intermédio desse olhar, o corpo era tratado meramente como objeto de estudo, e apenas era contabilizado epidemiológica e demograficamente. Assim, havia uma desvinculação com a história particular de vida da pessoa e perdia-se a oportunidade de tentar entender a complexidade das ligações deste indivíduo com a sociedade, a cultura e o ambiente no qual ele estava inserido.
Foi quando surgiu o conceito de Nova História, que se passou a questionar a noção de fato histórico como algo acabado. A partir daí, ampliou-se o corpo documental da investigação histórica e passou-se a incorporar, nos estudos mais recentes, depoimentos orais, fotografias, ferramentas, entre outros documentos não convencionais. Tal fato recolocou sob nova perspectiva o corpo, a mente, a sexualidade, e, portanto, a doença. A doença tomada como objeto de estudo da história, sob essa nova perspectiva, possibilitou uma aproximação mais apropriada com a sociedade, como um sistema vivo.
O capítulo 2 trata da história da tuberculose no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, nas duas primeiras décadas do século XX. Nesta seção, a autora aborda a mudança na concepção da tuberculose de "mal romântico" a "mal social", descreve os avanços do conhecimento científico para o controle da doença na época, trata da mobilização das elites médicas e intelectuais na criação da Liga Brasileira contra a Tuberculose, e discorre sobre a organização do Estado no combate à enfermidade.
Atualmente, o conhecimento sobre a etiologia, o modo de transmissão, as manifestações clínicas, o tratamento e as medidas de controle para tuberculose estão muito bem estabelecidas. No entanto, nem sempre o conhecimento sobre a doença foi esse. Até o descobrimento do agente etiológico, no final do século XIX, atribuía-se à tuberculose uma presumível origem hereditária e havia uma atmosfera romântica em torno da doença. Com a descoberta do bacilo por Robert Koch, em 1882, ocorreu um grande avanço no conhecimento e gradativamente a tuberculose passou a ser vista como moléstia transmissível.
Com a nova organização social, resultante do processo de industrialização, criou-se um ambiente favorável à transmissão da doença entre a classe operária. Isso se deu em decorrência das precárias condições de vida impostas a esse segmento da população, e dessa forma, a tuberculose assumiu definitivamente o papel de patologia transmissível e de caráter social. No final do século XIX e início do século XX, a tuberculose era considerada a maior causa de morte no Rio de Janeiro. As principais vítimas advinham da massa de trabalhadores que, em geral, recebiam salários insuficientes para a moradia e alimentação adequada, constituindo um grupo que a autora classifica como miseráveis e esquecidos. Nesse período, a tuberculose ainda não fazia parte da agenda de prioridades do governo, que tinha como preocupação central o saneamento da então capital federal, com vistas tão somente ao comércio internacional.
Foi unicamente quando as epidemias de febre amarela, varíola e peste regrediram que a tuberculose passou a ocupar espaço no discurso oficial. Finalmente, o governo reconhecia o caráter social da doença e admitia a necessidade de um programa sanitário para combatê-la. Foi nesse contexto que em 1902 a Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP) determinou que a tuberculose deveria tornar-se uma doença de notificação compulsória e que os doentes deveriam ser submetidos ao isolamento em sanatórios para o tratamento com medidas higiênico-dietéticas adequadas. Entretanto, até aquele momento, o Estado não estava aparelhado para dar conta do número crescente de tuberculosos, sobretudo porque a grande maioria deles era proveniente das camadas mais desfavorecidas da população.
O discurso médico-científico foi o único interlocutor, naquele momento, capaz de apresentar propostas de controle à doença. Em decorrência desta mobilização surgiu a Liga Brasileira Contra a Tuberculose. O objetivo da Liga era combater a alta mortalidade imposta pela moléstia e conscientizar a população quanto às medidas de prevenção. Lentamente, o movimento acabou transferindo a responsabilidade pelo controle da tuberculose ao Estado e, no início da década de 1920, criou-se o primeiro serviço oficial para o controle da enfermidade, a Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose.
Resumindo, as duas primeiras décadas do século XX foram marcadas pelo convívio sombrio com a morte e pelo grande número de pessoas acometidas pela doença. A tuberculose assumiu um caráter de pandemia de repercussão nacional. Porém, as projeções sociais da doença caíram desproporcionalmente sobre a população desfavorecida que não encontrou interlocutores nas esferas de governo e na sociedade. Em larga medida, a maioria dos doentes acabou excluída do acesso às ações em saúde e carregando o estigma social de portadores do mal.
No capítulo 3, de forma análoga ao anterior, trata-se da história da AIDS no Brasil, no período delimitado entre o surgimento dos primeiros casos, no início da década de 1980, até o momento em que foi instituída a terapia anti-retroviral em 1996. Nesta seção, a autora ressalta a perplexidade da ciência com o surgimento de uma doença contagiosa, incurável e altamente letal. Nascimento chama atenção para a estigmatização, observada desde os primeiros casos notificados, quando profissionais de saúde nos Estados Unidos classificaram a ainda desconhecida enfermidade de síndrome da ira de Deus, em alusão ao fato de os doentes serem homossexuais. Por fim, destacam-se as estratégias elaboradas pela sociedade civil organizada para minimizar o estigma e contribuir com a melhoria da qualidade de vida dos doentes, então condenados à morte e à exclusão social.
Em meados de 1981, ocorreram os primeiros relatos da AIDS nos Estados Unidos, descritos em jovens do sexo masculino, homossexuais, sem história anterior de imunodeficiência, e que apresentavam pneumonia devida ao Pneumocystis carinii. Ao longo desse ano, casos semelhantes foram surgindo também na Europa e passou-se a associar a doença com aspectos de vida das pessoas acometidas, particularmente à orientação sexual. A doença ficou conhecida, então, com "síndrome gay", "pneumonia gay" ou ainda imunodeficiência ligada ao homossexualismo, apontando para o pesado estigma social que ganharia força nos anos seguintes. Em 1982 cunhou-se pela primeira vez o termo síndrome da imunodeficiência adquirida AIDS. A partir daí intensificaram-se os estudos sobre a doença. Já em 1983, pesquisadores franceses e americanos conseguiram isolar o agente etiológico da AIDS, um retrovírus, e esclareceram assim os mecanismos de transmissão da doença, que se dava por via sexual e sangüínea.
Tratava-se realmente de uma nova doença, até então desconhecida, e várias hipóteses surgiram para tentar explicá-la, desde punição divina pela transgressão da ordem sexual até a criação do vírus em laboratórios. No século que se caracterizava pelo desenvolvimento tecnológico, pelas grandes descobertas e invenções, a ciência foi desafiada por uma moléstia desconhecida, contagiosa, incurável e com grande poder de mortandade, reavivando o temor das antigas pestes. Todavia, houve uma resposta rápida na elaboração de ações para tentar entender os mecanismos de transmissão e prevenção da nova doença, sem precedentes na história.
O grande impacto da AIDS na ciência, na mídia e no imaginário popular fez com que se criasse uma atmosfera negativa em torno dos doentes. Foi neste cenário que se elaborou o conceito de grupos de risco para restringir o "mal" exclusivamente àquelas pessoas que apresentassem algum desvio de conduta: homossexuais e toxicômanos. O fato, além de estigmatizar os doentes, criou uma falsa noção de que as pessoas que não se incluíssem nestes grupos estariam livres da doença. Não tardou e começaram a aparecer os primeiros casos de AIDS em hemofílicos, e também entre heterossexuais de ambos os gêneros. Dessa forma, a AIDS foi se difundindo pelo mundo e tornou-se a grande pandemia da atualidade.
Diferentemente da tuberculose, desde os primeiros casos notificados, a AIDS acometeu indivíduos de classes sociais mais elevadas. Isso favoreceu a interlocução dos doentes com as esferas públicas da sociedade e do governo e deu impulso à organização de entidades civis sem fins lucrativos, posteriormente denominadas ONG/AIDS. As entidades ganharam força e se espalharam por todo o país, e sua militância política organizou-se de tal forma, que passou não apenas a denunciar toda forma de discriminação contra os doentes de AIDS, mas também passou a trabalhar pela democratização das informações à sociedade, e, mormente, garantir o direito de acesso às ações integrais de saúde para os indivíduos acometidos pelo HIV. O movimento teve forte impacto no Estado e contribuiu positivamente com a elaboração de políticas públicas para o controle da doença.
No capítulo 4, Nascimento realiza uma análise comparativa entre a tuberculose e a AIDS, destacando elementos de aproximação e distanciamento, nas dimensões do conhecimento científico, bem como nas estratégias institucionais elaboradas pelo Estado e pelas entidades civis para o controle de ambas as doenças. Por fim, no capitulo 5, a autora brinda os leitores com uma vasta expressão da iconografia nacional composta por fotografias, cartazes, campanhas publicitárias, charges, entre outros registros históricos que se complementam por depoimentos orais e escritos para descrever em detalhes as representações coletivas das duas doenças.
As Pestes do Século XX: Tuberculose e AIDS no Brasil, Uma História Comparada oferece uma abordagem instigante sobre as três esferas envolvidas na construção histórica do fenômeno patológico: o imaginário social, o conhecimento científico e as estratégias institucionais; fazendo da obra referência necessária a quem deseja conhecer de forma mais aprofundada a história e as representações sociais dessas duas emblemáticas doenças.