ARTIGO ARTICLE

 

LER: trabalho, exclusão, dor, sofrimento e relação de gênero. Um estudo com trabalhadoras atendidas num serviço público de saúde

 

Work, exclusion, pain, suffering, and gender relations: a survey of female workers treated for repetitive strain injury at a public health clinic

 

 

Ilidio Roda Neves

Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, apresentamos os resultados da pesquisa qualitativa que desenvolvemos a partir do material de arquivo de um serviço de saúde referente a quatro grupos terapêuticos ocorridos entre 1995 e 1997. Nosso objetivo foi reconstruir a trajetória de vida e trabalho de portadoras das LER, considerando as suas relações com os familiares, parentes, amigos, empresa, colegas de trabalho, com os serviços de saúde e os impactos sobre a vida cotidiana. As informações descritas corroboram com os dados encontrados na literatura científica referentes à maior freqüência das LER entre as mulheres e permite-nos elencar um rol de necessidades relacionadas à questão dos sofrimentos biopsicossociais decorrentes, sugerindo a necessidade de novas pesquisas de investigação e intervenção, com intuito de produzir tecnologias assistivas e preventivas que coloquem fim nesta trilha de adoecimento. 

Transtornos Traumáticos Cumulativos; Saúde Ocupacional; Relações Interprofissionais


ABSTRACT

This article presents the results of a qualitative study based on patient records from a public health clinic and focusing on four therapeutic groups from 1995 to 1997. The study aimed to reconstruct the life and work history of women with repetitive strain injury (RSI) in relation to family, friends, company, workmates, health services, and impacts on daily life. The results corroborate the data in the scientific literature pointing to greater frequency of RSI among women, and allow us to list the needs related to the resulting biopsychosocial distress, suggesting the need for new research and intervention aimed at producing preventive and therapeutic technologies for such injuries.

Cumulative Trauma Disorders; Occupational Health; Interprofessional Relations


 

 

Introdução 

As lesões por esforços repetitivos (LER), também conhecidas, no Brasil, como distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT) 1, designam um conjunto de síndromes que afetam, predominantemente, os membros superiores. Apresentam como característica comum a sua relação com o trabalho, podendo atingir tanto trabalhadores em início de carreira 2 quanto aqueles com muitos anos de trabalho no mesmo posto ou mesma função, em todos os ramos da economia: indústria, comércio e serviços, com diferentes níveis de escolaridade e cargos profissionais 3, tais como enfermeiras, açougueiros e operários 4.

Aparecem significativamente relacionadas a aspectos da organização laboral como o trabalho repetitivo, longas jornadas sem pausas e/ou insuficientes tanto em tempo quanto em quantidade 5, a alta velocidade, a pressão constante, a intensificação e uniformização da forma de produção bem como ao uso de ferramentas vibratórias, tensão mecânica, extremos de temperatura, equipamentos e mobiliários que não respeitam as diferenças antropométricas dos trabalhadores e que os levam a posturas inadequadas 6,7. Esses fatores não ocorrem isoladamente, mas integram-se mutuamente e intensificam a possibilidade de ocorrerem lesões, podendo levar à incapacidade permanente para o trabalho e a um profundo comprometimento para as atividades cotidianas, até mesmo para os atos mais simples do dia-a-dia 8.

Como Sato 9, optamos por usar, neste artigo, a denominação LER por ser uma nomenclatura que representa a luta dos trabalhadores, profissionais de saúde e sociedade organizada pelo reconhecimento dessa síndrome.

 

As LER entre trabalhadoras 

Estudos demonstram 4,10,11,12,13,14 que as LER apresentam uma diferença de prevalência significativa entre os gêneros, estando as mulheres entre a maioria dos casos. O trabalho apresenta um impacto diferente entre homens e mulheres, tanto na forma como se dá a inserção no mercado de trabalho, como na maneira que vivenciam o ambiente laboral, ocasionando modos e tipos de ocorrências distintas de adoecimentos relacionados ao trabalho.

As pesquisas que descrevem as mulheres como mais suscetíveis às LER partem do pressuposto que homens e mulheres estão expostos à mesma carga de trabalho, o que não condiz com a realidade. Mesmo no mesmo cargo e função, realizam atividades diferentes 3. O número elevado de casos decorre de sua maior concentração nos postos de maior freqüência para essas lesões 15,16. Onde há uma maior eqüidade em relação aos gêneros, não há uma diferença estatisticamente relevante 10.

Para Hirata 17, as LER, ou "doenças da hipersolicitação", são fruto do trabalho intenso e repetitivo, atingindo majoritariamente as mulheres. Essas lesões ocorrem maciçamente entre as trabalhadoras não por "sua morfologia (30,0% de massa muscular a menos) ou de fatores hormonais incidindo sobre sua construção biológica e psicológica (puberdade, gravidez, menopausa)" 17 (p. 20), mas por causa da organização do trabalho que as tratam como coisas, como máquinas.

As mulheres são preferidas nas tarefas consideradas secundárias e de baixa qualificação, sendo alocadas em atividades que exigem mais atenção, concentração, detalhamento, agilidade, destreza, precisão, fineza, velocidade e repetitividade de movimentos, obediência, paciência, disciplina, responsabilidade, dedicação, delicadeza e sensibilidade do que aquelas exercidas pelos homens 18. Em postos onde há baixo controle sobre as tarefas, pequena margem de decisão e autonomia, alta pressão por produtividade 13, longas jornadas de trabalho e períodos no mesmo posto 3 e concentrando-se em categorias produtivas consideradas femininas como: alimentação, confecção, tecelagem e calçados 11.

Entre 1981 e 1990, 70% da força de trabalho feminina, no Brasil, encontrava-se concentrada em funções como: empregadas domésticas, operárias, secretárias, balconistas, professoras e enfermeiras 19. Em 1998, representavam 87% dos secretários, 85% dos telefonistas, 83% dos recepcionistas, 67% dos auxiliares de escritórios e caixas, 65% dos arquivistas e 60% dos agentes administrativos. Postos em que se concentram alguns dos empregos de menor prestígio e remuneração, nos quais há maior rotatividade de trabalhadores e poucas perspectivas profissionais, sendo o setor de serviços o que agrega a maior parcela das trabalhadoras, seguido do industrial e comercial 20. Essa concentração faz aumentar a competição entre elas, com conseqüente redução de salários, aumento do desemprego e precarização das condições de trabalho.

 

Material e metodologia

Material

Neste artigo, desenvolvido a partir de material de arquivo do Programa de Tratamento e Reabilitação das LER (PTR-LER), Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de São Paulo (CEREST/SP), que gentilmente nos autorizou a utilizá-lo, apresentamos os resultados da pesquisa que originou nossa dissertação de mestrado. Os documentos referem-se a um conjunto de relatos (gravados e transcritos) de quatro grupos terapêuticos ocorridos entre os anos de 1995 e 1997.

Esses grupos objetivaram, partindo da expressão da história individual dos trabalhadores, focada nas LER, a reflexão e o aprendizado sobre a doença e o levantamento de hipóteses dos motivos que levaram ao adoecimento. O espaço grupal estimula a expressão de sentimentos e idéias, possibilitando ressignificar sua doença e o processo de adoecimento, bem como oferece suporte ao indivíduo para instrumentalizar-se para ações coletivas de enfrentamento 21.

Os grupos são constituídos de um coordenador e dois observadores, geralmente psicólogos ou outros profissionais do PTR-LER, com experiência terapêutica com grupos. Estes são formados por até 15 participantes, tendo duração de seis a oito encontros, com duas horas cada. A temática e o seu desenvolvimento no grupo surgem das necessidades internas dos seus componentes, não sendo estruturada previamente 22.

Participaram dos grupos 48 pessoas (seis homens), sendo 36 oriundas do setor de serviços, oito da indústria e quatro do comércio. Entre os ramos de atividade, temos: o bancário (12), indústria montadora (seis), saúde (quatro), informática (quatro), transporte público (quatro), confecção e alimentação (dois). As funções de maior concentração são: caixas (dez), operárias (seis), digitadoras (cinco) e telefonistas, recepcionistas e profissionais de telemarketing (cinco).

Metodologia

A metodologia utilizada nesta pesquisa qualitativa foi a análise de conteúdo, como preconizado por Minayo 23. A partir das falas das trabalhadoras nos grupos, buscamos construir categorias significativas baseadas no discurso grupal e discutidas à luz da bibliografia de referência.

O grupo como espaço de coleta de informações de pesquisa possibilita a construção de conceitos coletivos. As falas apresentadas foram ordenadas em núcleos de sentido, de acordo com eixos de discussão surgidos na própria dinâmica grupal.

O objetivo desta pesquisa foi reconstruir a trajetória de adoecimento dessas portadoras de LER, através dos relatos ocorridos nos grupos, considerando as relações com familiares, parentes e amigos, a empresa e colegas de trabalho, a assistência à saúde e impactos das lesões sobre a vida cotidiana.

 

Resultados e discussão

A relação com a empresa e colegas de trabalho

Nos relatos dos grupos, observamos as diferenças de tratamento e exploração da mão-de-obra feminina relatadas nos discursos em pequenas colocações ao longo das sessões, como nos comentários sobre o controle do uso dos sanitários, que Cohn & Marsiglia 24 observam com maior freqüência entre as mulheres, e Hirata 17 coloca como ligado a um controle do tempo diferenciado entre os gêneros.

"A mulher que fosse no banheiro sem ser no horário marcado, eles trancavam ela lá dentro, fechava lá dentro. Tinha mulher que menstruava, que se sujava porque eles não deixavam ir no banheiro" (M, 36 anos, operária).

Os postos ocupados pelas participantes dos grupos são aqueles considerados tipicamente femininos, concentrados no setor de serviços, em funções que, em geral, não exigem a manipulação de grande volume de peso, sendo comumente considerados "leves". No entanto, na repetitividade, na soma dos movimentos, demonstram uma força total exercida superior àquela nos trabalhos pesados, tipicamente masculinos como nos coloca Messing et al. 25.

Muitas relatam, além da repetitividade, a pressão por aumento na produção e a competitividade. Acumulam funções que antes eram exercidas por duas, três trabalhadoras, estando submetidas a exigências por quantidade e qualidade, além de outras características específicas à natureza do trabalho, como no caso do setor de serviços: a atenção ao cliente, "sorriso na voz", empatia etc. A competição provocada pelas empresas eleva, cada vez mais, os níveis de exigências e as metas de produção. Os erros são menos tolerados, e o ritmo mais acelerado, com poucas pausas e maior intervalo entre elas.

"(...) Quando começou a crescer a demanda, quando entrei lá, era de 2 minutos o atendimento, depois foi caindo, a média é de 1 1/2 minutos. Três funcionários conseguem fazer em um minuto, agora a média é 1 minuto. Para eles, os três estão certos, e o resto são os que estão errados (...)" (X, 27 anos, operadora de telemarketing).

Díaz & Medel 26 observam que as metas de produção e rendimento exigido trazem ansiedade às trabalhadoras, incidindo no seu progressivo esgotamento e desgaste físico e mental.

A concentração de funções e a competitividade aumentam a pressão e o controle do trabalho que é exercido não só pelos chefes e clientes, como também pelos próprios colegas. Os trabalhadores são estimulados a se concentrarem, cada vez mais, nas suas funções, sobrando pouco tempo para o contato mútuo, a troca de experiências e a solidariedade. Onde o contato direto com outras pessoas não é exigido, o isolamento é ainda maior.

"Hoje em dia nós temos uma linha de montagem quer seja num banco, numa empresa, no ônibus, numa costura. Na oficina de costura, se você tiver que fazer 20 punhos em tantos minutos, se você estiver com dor, a sua colega ao lado jamais irá pegar um punho seu para que você cumpra o seu horário, a sua produção, só para te ajudar. Não, ela vai fazer o possível e achar ótimo e fará tudo para que você perca o seu emprego e ela suba" (Y, 43 anos, costureira).

O que as trabalhadoras descrevem é um trabalhador polivalente; que deve ser qualificado o suficiente para poder exercer inúmeras funções. Sua atividade deve ser flexível o suficiente para que possa ser substituída com facilidade quando a organização achar necessário 27, o que, num momento de crise do emprego formal, torna as pessoas mais apreensivas e propensas a ceder aos mandos das empresas.

O trabalho ocupa não apenas o espaço da empresa, mas toda a vida da pessoa. O risco do desemprego faz com que sejam mais zelosas com seu emprego e busquem adaptar-se às necessidades da organização. O tempo vago é ocupado com atividades de descanso e/ou lazer, visando dar condições de retorno ao trabalho. Essa situação é contrária àquela ideal, na qual o trabalho seria fonte de satisfação de necessidades primárias e secundárias, e o tempo vago utilizado para enriquecer a experiência humana, conforme sugere Antunes 27.

A constatação de que as empresas estão demitindo, de que não há substituição daqueles que saem e sim o acúmulo de tarefas, do contexto de desemprego estrutural e das concessões que os sindicatos dos trabalhadores fazem de conquistas históricas, tais como horas extras e adicionais noturnos, permitem que situações, antes consideradas intoleráveis, sejam aceitas e, em certo ponto, até estimuladas 28, deixando as trabalhadoras com poucas opções frente às condições oferecidas pelos empregadores, esses fatores geram forte carga de tensão, refletindo-se num significativo desgaste físico e mental 24.

"(...) há pessoas que fazem o serviço de outras três ou quatro pessoas no trabalho, e o trabalho não produz de jeito nenhum, pois é muito grande. O trabalho do antigo funcionário vai direto para sua cabeça, ou você faz ou você vai para a rua" (Y, 43 anos, costureira).

Medo

Quando procuram ajuda médica dentro da empresa, com freqüência, suas queixas são minimizadas, descaracterizadas ou ignoradas, relacionando-as ao trabalho doméstico, a características psicológicas, genéticas ou hormonais, sendo encaminhadas para tratamento, mas não afastadas. Os grupos relatam algumas situações em que as LER eram prontamente diagnosticadas e ficava, por exemplo, indicado a substituição de função ou afastamento do trabalho. No entanto, na maior parte dos casos, as dores são subestimadas, recebem tratamentos paliativos.

Os motivos que as levam a não informarem, ou informarem tardiamente, sobre suas dores decorrem, sobretudo, do medo de se descobrirem também portadoras das LER, do receio de que isso possa interferir negativamente na carreira, de serem demitidas, das responsabilidades familiares, financeiras, com a empresa e os colegas de trabalho.

"(...) muitas vezes, eu ficava com medo de ir pra enfermaria, com dor, porque você começa a ir pra enfermaria, você começa a sujar a ficha, aí eles te avisam, ó, está sujando sua ficha (...), eu voltava pra linha, e o trabalho era dobrado porque quando não tava no meu lugar atrasava o dobro. Então, muitas vezes, eu falava assim, pô, eu vou pra enfermaria melhorar um pouco e volto é pior, então eu não ia, então eu fui deixando, deixando. E outra, com medo de ser mandada embora, muitas vezes, eu não ia ao médico (...)" (A, 40 anos, operária).

A forma como são atendidas pelos médicos do trabalho pode estar relacionada ao descrédito, quase generalizado, quanto aos primeiros sintomas, colocado por Oliveira & Barreto 29 e também observado por Feuerstein et al. 30.

"O médico deu remédio e disse que ia passar e nunca passava e aí eu senti que eu piorava mais (...) e fiquei com aquele negócio na cabeça: o que é que eu faço agora?" (A, 40 anos, operária).

A autoridade médica se impõe aos sintomas das trabalhadoras, que, não tendo argumentos que se sobreponham ao discurso médico-científico, são obrigadas a permanecer no trabalho, mesmo doentes, não sendo informadas das suas lesões e dos riscos de permanecer no mesmo posto, executando o mesmo trabalho, na mesma intensidade e ritmo que faziam.

Os diagnósticos médicos chancelam as críticas e comentários de chefes e colegas e tiram a credibilidade das queixas de dor no trabalho. Em alguns casos, as trabalhadoras colocam que descobriram a doença após a demissão ou que foram afastadas em estágios avançados das lesões.

As trabalhadoras sentem-se "abandonadas" pelas empresas, nas quais sacrificaram sua saúde, "traídas" em sua confiança e "injustiçadas" no tratamento recebido.

"Você está numa empresa boa e, de repente, você fica doente. Eles te jogam na rua. Não estão nem aí com você. Você perde convênio, tudo. É humilhada por aquelas pessoas (...)" (N, 28 anos, bancária).

Algumas só descobrem que estão doentes, em decorrência do trabalho, depois de terem sido demitidas pela queda na sua produção.

"Quando chego ao médico, ele diz que eu não tenho nada. Volto para o serviço e vou trabalhar. Eu tenho que trabalhar" (O, 33 anos, operária).

Apesar disso, muitas demonstram desejo de retornar ao trabalho, porque ele é um espaço importante de integração social, constituição da individualidade, satisfação pessoal, além de ser fonte de sobrevivência 26. A impossibilidade de voltar ao trabalho faz com que percam o direito ao reconhecimento social, de fundamental importância para sua identidade e auto-estima 28, a autonomia financeira e o status de trabalhadoras.

"(...) muitas vezes, no começo, quando eu chegava no banco, eu saía mais arrasada, vinha com vontade de rever meus amigos, meu cantinho, minha gaveta continuou lá um tempo, então saía de lá chorando porque eu não podia voltar, nem continuar, nem fazer mais nada (...)" (P, 44 anos, bancária).

Para aquelas que se encontram afastadas, as possibilidades de retorno são incertas e se sentem receosas quanto à forma como serão recebidas; se encontrarão um posto de trabalho adequado a sua nova condição, se haverá represálias, punições ou se permanecerão apenas até o término do prazo legal de estabilidade, quando, então, serão demitidas.

"Eu não vou voltar a trabalhar porque eles não me querem (...) já tive alta, e eles não me aceitaram, a médica ligou para o gerente-geral, e ele não tem como aceitar a situação, não tem outro lugar para mim" (B, 30 anos, bancária).

A incerteza traz ansiedade e falta de perspectivas futuras. Elas sabem que têm poucas chances no mercado de trabalho sendo portadoras das LER, uma vez que os postos disponíveis são, quase sempre, da mesma natureza que aqueles que causaram o seu adoecimento.

A maneira como serão tratadas é outra preocupação ao retornarem ao trabalho. A forma como relatam que os colegas as vêem: como aquelas que produzem em velocidade e quantidade consideradas inadequadas, como "frescas", "moles", "folgadas", por exemplo, é semelhante à maneira como elas próprias se referiam, antes do adoecimento: como àquelas que provocavam acúmulo de trabalho aos demais.

Sentimento de culpa

Apesar das discussões grupais e do conhecimento que têm sobre as LER, as trabalhadoras se sentem culpadas por terem adoecido. Uma vez que, na empresa, no Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) e em alguns serviços de saúde, são tratadas como se estivessem simulando sua doença. Esse discurso de culpa se baseia na observação que fazem de colegas com mais tempo na empresa, que não adoeceram, fazendo-as pensar que as lesões são decorrentes de características pessoais, como "ser rápida", "ser ambiciosa", "ter má postura", "ser frágil" ou "um problema genético". Hipóteses culpabilizantes que geram sofrimento, na medida em que se trata de algo sobre o qual elas não têm controle, que é a organização sobre o próprio trabalho, o qual não respeita os limites e as diferenças tanto psíquicas como físicas dessas trabalhadoras.

"É minha culpa eu ser assim rapidinha e me desdobrar em várias pessoas, sabe? Agarro o mundo pelas pernas, então é um exemplo meu assim, tanto no serviço de casa, eu me concentro só em mim, eu acho que eu vou fazer melhor que os outros (...)" (C, 24 anos, digitadora).

Essa culpa, como nos aponta Sato 9, também decorre de uma concepção das LER como expressão de uma "fraqueza" e "fragilidade" moral. Podendo, essa concepção ser tanto formulada pelas trabalhadoras como estimulada e reforçada pelos colegas de trabalho, parentes, empregadores, profissionais de saúde e/ou previdenciários.

O trabalho doméstico

Em relação ao espaço doméstico, as mulheres, mesmo com LER, são responsáveis pelos afazeres da casa, relatam a preocupação de não poderem fazer os serviços domésticos e cuidar dos filhos, sendo essa condição não só imposta, mas percebida como uma atividade que devem exercer. Para elas, estar em casa é assumir o papel de "dona-de-casa", as atividades do lar de forma integral. Não conseguir realizá-las traz sofrimento, sentimento de impotência e lhes tiram uma importante referência de identidade.

"Pra fazer um pouquinho, você já está cansada que parece que você está um lixo, aí aquele outro ponto que você não fez, não deu pra fazer, não deu tempo (...), coragem você teve, mas não teve força, aquilo vai te angustiando e aí você fica dentro de casa parece uma retardada (...) quando não dá pra fazer nada, eu não fico ali vendo aquele serviço pra fazer parada assim parada, aquilo pra mim é uma morte, é um inferno" (D, 37 anos, auxiliar de escritório).

O apoio familiar varia muito de acordo com sua estrutura e com o impacto econômico decorrente dos seus afastamentos e tratamentos, tendo como agravantes a cronicidade das lesões e a incapacidade das mulheres de realizarem os serviços domésticos, levando à necessidade de mudanças na divisão das tarefas da casa, onde ocorre grande parte das tensões familiares.

"(...) as pessoas não entendem que eu não consigo fazer as coisas [de casa], e eu me sinto como se eu estivesse com preguiça, porque as pessoas não entendem que eu não faço não é porque eu não quero fazer, dói, verdade" (F, 26 anos, bancária).

Acompanhamento dos serviços de saúde

Dos serviços de saúde, as trabalhadoras destacam as queixas ao atendimento de profissionais de saúde e, em especial, dos médicos. Considerando-os inadequados para com o momento delicado que atravessam, sentindo com a falta de informação ou informações divergentes, fragmentadas e em uma linguagem nem sempre acessível.

"O médico que me deu alta pegou no meu punho, aqui, e virou para lá e para cá e disse: 'isto aqui não tem nada não'. Só que 'isto aqui' estava inchado, e eu saí chorando de tanto que ele mexeu aqui. Saí chorando de dor e fui para casa".

"(...) os médicos do XYZ realmente não dão informação. É aquela consulta assim: vapt-vupt, de dois minutos, e eles não dão orientação pro paciente (...) eles simplesmente anotam na receita e pronto!" (G, 43 anos, bancária).

O encaminhamento a outros especialistas e exames, sem uma explicação dos motivos desses procedimentos, dificulta às trabalhadoras a compreensão e a inteligibilidade dos fatores que envolvem os sintomas das LER, a adesão aos tratamentos, o seu envolvimento e enfrentamento.

"(...) se ela tivesse falado, eu já ia perguntar: mas por que a senhora está me mandando pro psiquiatra? Está me achando com cara de louca? Sei lá, só porque eu estava ansiosa, porque fui lá e você sabe que o tempo que ela dispõe pra você é pequeno" (G, 43 anos, bancária).

A falta de diálogo do profissional de saúde, de uma relação de confiança, de vínculo com o paciente 31, rende problemas na condução do tratamento como a recusa de uma terapêutica, que, todavia, possa beneficiá-lo.

O fato de ser uma síndrome que raramente apresenta sinais e tem como principal característica a dor e a diminuição ou perda de movimentos dos membros superiores pode ser um dos maiores obstáculos que o portador enfrenta, uma vez que é uma "doença invisível", sendo, como vimos, o seu diagnóstico eminentemente clínico, necessitando que seja dado crédito às suas queixas. As LER podem ser, então, tidas como um "transtorno psíquico".

As explicações de caráter psicológico culpabilizam a trabalhadora na medida em que sugerem que a dor não existe de fato, e sim que se trata de algo imaginário, psicossomático, simulação ou manifestações hipocondríacas, por "sugestão, de tanto ouvir falar em doença", conforme colocam Garbin et al. 32 (p. 50).

Serviço público de saúde

As falas sobre o serviço público de saúde são referentes a sua heterogeneidade. Com raras exceções, a assistência foi considerada precária.

"E o SM é assim: para conseguir uma vaga, você tem que chegar lá 4h da manhã ou às 4h30 para receber a senha. Se conseguir, a gente fica lá na fila. Quem paga convênio e chega entra por esse lado, depois que os do convênio são atendidos é que vão nos atender (...). Uma vez, eu fui duas vezes ao médico (...) a gente faz fila, não fecha a porta, entram dois pacientes, um fica desse lado, e o outro, do lado de cá, o médico nem olha para sua cara (...) o tratamento é esse" (Y, 43 anos, costureira).

As portadoras das LER demonstram um desejo de possuir condições financeiras que permitam pagar por um serviço particular, evitando a espera do serviço público, e de se sentirem em condições de poder exigir um atendimento mais imediato, personalizado, não significando, com isso, que seja o tratamento mais eficiente ou adequado às LER.

"Porque a gente paga imposto, paga tudo e vai ser atendido por um médico, a gente quer ter um tratamento. Você chega lá, banca uma consulta, o tratamento modifica (...)" (I, 38 anos, bancária).

As trabalhadoras procuram, nos serviços de assistência à saúde, um espaço não só para um tratamento físico, mas para a compreensão do seu problema como um fenômeno verdadeiro e complexo, num contexto biopsicossocial. Querem encontrar, no profissional de saúde, alguém que esteja disponível para escutar o que têm a dizer sobre a sua dor, explicar o seu problema de saúde, as dificuldades de fazer este ou aquele tratamento e quais as perspectivas de melhora e os caminhos para chegar até lá.

A perícia

A perícia da Previdência Social é grande mobilizadora de sentimentos, dificuldades e obstáculos para as trabalhadoras. Se, por um lado, é desejável ter reconhecida a sua doença e poder contar com o auxílio-doença do trabalho, por outro o "carimbo do INSS na carteira" é visto como um obstáculo instransponível, caso tenham que buscar um novo emprego.

"Você vai procurar trabalho, não encontra por causa do carimbo de CAT. Você vai nas empresas, o segurança pega sua carteira, olha, vê o tanto de experiência que você tem na FNM e volta dizendo que a vaga já foi preenchida, mas a placa de procura-se continua lá (...)" (J, 44 anos, operária).

A relação com os peritos é um outro ponto de tensão. Os relatos apontam situações em que são tratadas com desconfiança, de forma rude, autoritária, ofensiva, agressiva, não sendo examinadas ou tendo seus exames e laudos ignorados, como se tivessem a intenção de forjar sua dor. A forma como descrevem o tratamento recebido da maioria dos peritos converge com o descrito por Quintner 33 e com o que Garbin et al. 32 chamam de "tensão pré-perícia".

"Tem um médico lá que não posso ouvir a voz dele. Eu vou relaxada pra lá, faço o possível pra ir, faço relaxamento na noite anterior, levanto cedo, me preparo, rezo, mas eu chego (...) é uma energia superestranha, aquele homem me fez chorar muitas vezes, me tratou como animal (...)" (K, 30 anos, bancária).

A dor e o sofrimento emocional

A dor, num limite considerado insuportável, foi o motivo relatado nos grupos para que procurassem tratamento e passassem a viver parte das dificuldades sociais e sofrimentos psíquicos descritos. Santos Filho & Barreto 34 observam que a experiência dolorosa está relacionada a complexos mecanismos neuromusculares e psicológicos individuais e psicossociais como o suporte da empresa, diagnóstico, tratamento e situações de estresse.

A necessidade de tratamento de saúde constante, a grande quantidade de remédios que são obrigadas a ingerir, as dores e a incapacidade para o trabalho, tanto profissional como doméstico, fazem com que se sintam desgastadas, inúteis, inválidas e com poucas perspectivas em relação a sua vida no futuro. A angústia e a depressão estão intrinsecamente ligadas a esses sentimentos.

São diversas as falas das trabalhadoras que fazem menção ao sofrimento emocional, conseqüente do processo de adoecimento pelas LER. Ele perpassa toda a trajetória de trabalho-doença, sendo observado nas situações em que são obrigadas a provar a existência de suas dores e de sua doença, seja no ambiente de trabalho, de serviços de saúde, Previdência Social ou na própria família.

"(...) hoje, com dez anos de doença, eu posso dizer, sinceramente, meu problema. Além da parte física afetada, acho que o pior mesmo é a parte psicológica (...) agora eu posso falar sinceramente e que a coisa funciona como um trauma (...)" (M, 40 anos, auxiliar de atendimento).

A dor é vista como limitadora, incapacitadora, causadora de insônia e mudanças de comportamento, algumas mulheres relatam maior agressividade, outras maior retração, baixa auto-estima e depressão.

"(...) eu era uma pessoa mais alegre, mais extrovertida, sabe? Mais amiga, não sei, por que, o porquê da LER e depois começou a doer, então eu era uma pessoa diferente, iih (...) depois, quando apareceu a LER, eu comecei a sentir alguma coisa ruim (...) e então eu fiquei meio retraída e tal, sem saber o que fazer em casa e tal" (N, 32 anos, bancária).

Há, também, o desespero de não saberem o que fazer, impotentes diante de uma situação que sentem que não têm controle, somado ao medo do desemprego, da perda das condições econômicas, do status de trabalhadora, da capacidade de trabalhar, o que Dejours 28 coloca como medo da exclusão social.

"(...) a gente não pode perder o encanto da vida. Eu tenho medo também. Medo de perder a condição econômica, com toda a bagagem que eu tenho, todos os cursos que fiz etc. (...) Só quem está passando pela situação da gente sabe (...)" (I, 38 anos, bancária).

 

Conclusão

Consideramos relevante o desenvolvimento desta pesquisa por relatar, do ponto de vista das trabalhadoras, a trajetória de adoecimento pelas LER. As informações descritas nos grupos corroboram com os dados encontrados na literatura científica e permite-nos elencar um rol de necessidades, em especial, aspectos relacionados ao sofrimento psicossocial.

Nos grupos, as LER são apontadas como decorrentes das condições de trabalho, podendo atingir tanto homens quanto mulheres, submetidos às mesmas condições de trabalho. As lesões ocorrem em maior número entre as mulheres, porque as empresas, explorando a divisão sexual do trabalho já existente nas relações sociais e na educação, contratam-nas, prioritariamente, para cargos de risco às lesões. Não por serem mulheres, mas sim por apresentarem menor resistência à forma como é organizado o trabalho, por se adaptarem e se submeterem às regras de produção. O discurso psicologizante e de fragilidade feminina busca, na medida em que culpabiliza as trabalhadoras, desresponsabilizar as empresas pelo adoecimento.

Apesar das diferenças sócio-econômicas, de setor produtivo, dos tipos de empresas, dos cargos e funções entre os membros dos grupos, há alguns pontos equânimes em relação às condições de trabalho que podem contribuir para o agravamento da qualidade de vida das trabalhadoras: a forma de exploração da sua mão-de-obra, o medo do desemprego, as dificuldades enfrentadas para ter sua doença reconhecida e encontrar tratamentos de saúde adequados.

Os fatores que provocam as LER também estão presentes em outras doenças relacionadas ao trabalho, concordando com Ribeiro 7 de que são uma síndrome emblemática, que denuncia um sistema de trabalho produtor de doenças, expressão dos conflitos históricos entre capital e trabalho, ocorrendo em países com diferentes graus de desenvolvimento como Brasil, Canadá, Chile, Suécia, Japão, Estados Unidos e Austrália.

O sofrimento psíquico atravessa toda a história de trabalho e doença dessas trabalhadoras. Elas sofrem a angústia e o desespero de terem que trabalhar com dor, com as negativas dos médicos em relação a sua doença, com a procura por tratamento que diminua a dor e lhes ajude a entendê-la. Sofrem com a forma como são tratadas no serviço de saúde público e privado, com a cronificação das lesões, com a falta de perspectivas de cura e a ineficácia dos tratamentos. Sofrem, ainda, com a incapacidade para realizar as tarefas cotidianas, as quais gostam e as quais sentem como de sua responsabilidade. E, também, com o constrangimento vivido em situações públicas ou privadas, como no transporte coletivo e no cuidado pessoal, no lidar com a desconfiança e descrédito dos colegas de trabalho, dos chefes, dos médicos, dos amigos e parentes, na busca do "nexo causal", que permita o recebimento de um auxílio previdenciário menos injusto, que prove socialmente seu adoecimento.

As repercussões da dor, como a dificuldade para dormir, alteração de humor e a necessidade do auxílio de outras pessoas para realizar tarefas do cotidiano, a falta de perspectivas de trabalho após o processo de adoecimento (seja por causa da dor e perda dos movimentos, seja pelo estigma de ser portador das LER), a falta de um atendimento digno junto aos órgãos públicos de saúde e previdência social, os problemas para conseguir receber o auxílio-doença (seja ele comum ou do trabalho) e a perda do status de trabalhador sugerem a necessidade de novas pesquisas de investigação e intervenção, com intuito de produzir novas tecnologias assistivas nas áreas, como o PTR-LER, desenvolvido pelo CEREST, que rompem com o desconhecimento inicial das lesões, com uma concepção individual do processo de adoecimento, permitindo, com uma maior compreensão da sua situação, um maior controle do seu tratamento e ações preventivas que coloquem fim nesta trilha de adoecimento biopsicossocial.

 

Agradecimentos

À professora Aparecida Mari Iguti, pela orientação da dissertação de mestrado que originou este artigo, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo financiamento, às professoras Marilia Gonçalves e Rosemeire Aparecida Scopinho, pela leitura atenta e sugestões pertinentes dos originais deste artigo, e à professora Susi Lippi Marques pelas preciosas observações. A meu pai in memorium.

 

Referências

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Correspondência
I. R. Neves
Rua Torquato Tasso 111
São Paulo, SP 03136-030, Brasil
ilidiorneves@yahoo.com.br

Recebido em 10/Fev/2005
Versão final reapresentada em 20/Out/2005
Aprovado em 14/Nov/2005

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br