FÓRUM FORUM
Quando a morte é um ato de cuidado: obstinação terapêutica em crianças
When death is an act of care: refusing life support for children
Debora Diniz
Programa de Pós-graduação em Política Social, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil
RESUMO
Este artigo discute um caso específico de recusa de obstinação terapêutica para um bebê de oito meses, portador de Amiotrofia Espinhal Progressiva Tipo I, uma doença genética incurável, degenerativa e com curto prognóstico médico de sobrevida. Os pais buscaram suporte judicial para garantir que o bebê não fosse compulsoriamente submetido a mecanismos de respiração artificial, caso apresentasse paradas cardiorrespiratórias durante atendimento hospitalar. O bebê foi a óbito por parada cardíaca uma semana após a decisão favorável da Justiça. A solicitação dos pais à Justiça foi pela garantia do direito de recusar procedimentos médicos que não modificariam o quadro clínico do bebê, em especial a ventilação artificial. O caso chegou à Justiça recentemente, ocasião em que participei do processo fornecendo assessoria bioética. Este artigo é uma versão modificada do relatório ético apresentado à Justiça.
Direito a Morrer; Eutanásia Passiva; Bioética
ABSTRACT
This paper analyzes a court case involving parents' refusal of life support measures for an 8-month-old infant with spinal muscular atrophy type I, a fatal degenerative genetic disease. The parents filed for a court injunction to ensure that the infant would not be submitted to mechanical ventilation in case of respiratory distress. The Brazilian courts recognized the parents' right to refuse life support measures, and the infant died a week after the ruling. The parents' request was to guarantee their right to avoid medical procedures that would not alter the infant's clinical prognosis. The author of this paper was called on to provide expert ethical counsel in this case, and the article is a modified and condensed version of the author's report to the presiding judge.
Right to Die; Passive Euthanasia; Bioethics
Introdução
O avanço tecnológico tornou possível manter uma pessoa muito doente ou em estágio terminal indefinidamente viva, porém ligada a aparelhos de sustentação artificial da vida, como a ventilação mecânica. A obstinação terapêutica, também conhecida como distanásia, ou seja, uma morte lenta e com intenso sofrimento, caracteriza-se por um excesso de medidas terapêuticas que impõem sofrimento e dor à pessoa doente, cujas ações médicas não são capazes de modificar o quadro mórbido. Fazer uso dessas medidas não é o mesmo que dispor dos recursos médicos para salvar a vida de uma pessoa em risco: os mesmos recursos terapêuticos podem ser considerados necessários e ordinários em um caso e extraordinários e heróicos em outro 1.
Não se define obstinação terapêutica em termos absolutos. Um conjunto de medidas terapêuticas pode ser considerado necessário e desejável para uma determinada pessoa e excessivo e agressivo para outra. Essa fronteira entre o necessário e o excesso nem sempre é consensual, pois o que há por trás dessa ambigüidade são também diferentes concepções sobre o sentido da existência humana. Há casos de pessoas que, mesmo diante de situações irreversíveis e letais, desejam fazer uso de todos os recursos terapêuticos disponíveis para se manterem vivas. Outras pessoas definiram limites claros à medicalização de seu corpo, estabelecendo parâmetros que nem sempre podem estar de acordo com o que os profissionais de saúde considerariam como a conduta médica adequada ou recomendada. O desafio ético para os profissionais de saúde, tradicionalmente treinados para sobrepor seu conhecimento técnico às escolhas éticas de seus pacientes, é o de reconhecer que as pessoas doentes possuem diferentes concepções sobre o significado da morte e sobre como desejam conduzir sua vida.
A obstinação terapêutica é resultado de um ethos irrefletido das carreiras biomédicas. Os profissionais de saúde são socializados em um ethos que, erroneamente, associa a morte ao fracasso. O paradoxo dessa associação moral é que se, por um lado, são os profissionais de saúde os que mais intensamente lidam com o tema da morte, por outro lado, são eles também os que mais resistem a reconhecer a morte como um fato inexorável da existência. Uma possível explicação para esse fenômeno de enfrentamento técnico e ocultamento moral da morte é a confusão entre sacralidade da vida e santidade da vida 2,3. O direito a se manter vivo é um direito fundamental expresso em nosso ordenamento jurídico e compartilhado por diferentes concepções filosóficas e religiosas. O pressuposto desse direito é que a existência é um bem individual garantido publicamente e, em termos éticos, pode ser traduzido pelo princípio da sacralidade da vida.
O princípio da sacralidade da vida assegura o valor moral da existência humana e fundamenta diferentes mecanismos sociais que garantem o direito de estar vivo 2. Esse é um princípio laico, também presente em diferentes códigos religiosos, mas não é o mesmo que o princípio da santidade da vida. Reconhecer o valor moral da existência humana não é o mesmo que supor sua intocabilidade. O princípio da santidade da vida é de fundamento dogmático e religioso, pois pressupõe o caráter heterônomo da vida humana 4. Em um Estado laico como é o Brasil, o que está expresso em nosso ordenamento jurídico público é o princípio da sacralidade da vida humana e não o princípio da santidade da vida humana. O valor moral compartilhado é o que reconhece a vida humana como um bem, mas não como um bem intocável por razões religiosas. Todavia, a socialização dos profissionais de saúde confunde ambos os conceitos, o que acaba por sobrepor valores privados e metafísicos a respeito do sentido da existência e da morte a princípios coletivos, como o da sacralidade da vida e o da autonomia.
O crescente envelhecimento populacional associado ao rápido avanço das tecnologias biomédicas favorece a ampliação do horizonte de debates sobre o direito de morrer, a eutanásia e a obstinação terapêutica 5,6,7. Certamente, este será um fenômeno que exigirá uma rápida revisão dos currículos das carreiras de saúde, e a bioética pode ser um instrumento analítico importante para essa redefinição dos papéis na relação entre os profissionais de saúde e os pacientes. O tema do direito de deliberar sobre a própria morte extrapolou as fronteiras acadêmicas do Direito, da Medicina e da Bioética, ganhando o espaço da ficção, do cinema e do debate cotidiano 7. Ao contrário de outros temas bioéticos, a ressignificação da eutanásia como uma expressão da cultura dos direitos humanos, ou seja, como um tema relativo a princípios éticos como a autonomia ou a dignidade, é um movimento crescente no Brasil.
Neste artigo, discutirei um caso específico de recusa de obstinação terapêutica para um bebê de oito meses, portador de Amiotrofia Espinhal Progressiva Tipo I, uma doença genética incurável, degenerativa e com curto prognóstico médico de sobrevida. O diagnóstico médico foi realizado por volta dos cinco meses de idade do bebê, e as primeiras paradas cardíacas ocorreram aos oito meses. Não foi realizada nenhuma intervenção invasiva para manter a respiração artificial do bebê, por solicitação dos pais, os quais buscaram suporte judicial para garantir que a criança não fosse compulsoriamente submetida a mecanismos de respiração artificial, caso apresentasse novas paradas cardiorrespiratórias durante atendimento hospitalar. O bebê foi a óbito por parada cardíaca uma semana após a decisão favorável da Justiça. O argumento dos pais foi de que os recursos para garantir a respiração artificial deveriam ser entendidos como obstinação terapêutica, dado o quadro clínico e irreversível do bebê. A solicitação de ambos à Justiça justificou-se pela garantia do direito de recusar procedimentos médicos que não modificariam o quadro clínico da criança, em especial a ventilação artificial.
O caso chegou à Justiça recentemente, ocasião em que participei do processo fornecendo assessoria. Os dados aqui apresentados são resultados de duas entrevistas formais com a família imediata e extensa do bebê, de visitas esporádicas ao hospital e ao domicílio da família, de acompanhamento do processo judicial e de análise dos laudos médicos. Este artigo é uma versão modificada do relatório ético apresentado à Justiça. Todos os dados são verídicos e, para fins de sigilo e garantia da privacidade, foi omitido o Tribunal de Justiça em que o caso foi julgado, bem como qualquer outro dado que permitisse a identificação das pessoas envolvidas. Os pais do bebê autorizaram a publicação da história e foram os primeiros leitores deste artigo.
Diferentes conceitos: eutanásia, suicídio assistido e obstinação terapêutica
Alguns conceitos bioéticos se prestam a várias interpretações, e o de eutanásia é um deles. Há autores que definem eutanásia pela etimologia do conceito: uma prática eutanásica seria aquela que garantiria a "boa morte" 1,8. E boa morte seria aquela resultante de uma combinação de princípios morais, religiosos e terapêuticos. Não basta uma boa Medicina para garantir a boa morte, é preciso cuidado respeitoso com as crenças e valores que definem o sentido da vida e da existência para que se garanta a experiência de uma boa morte para a pessoa doente 4. De acordo com essa interpretação, eutanásia converte-se em um ato de cuidado e de respeito a direitos fundamentais, em especial à autonomia, à dignidade e ao direito a estar livre de tortura.
Para muitos autores, em especial os que entendem a prática da eutanásia como o resultado de um direito individual de deliberar sobre a própria existência, é preciso diferenciar as práticas eutanásicas.
Há a eutanásia ativa (aquela em que se induz a morte pela administração de medicamentos, por exemplo) e a eutanásia passiva (aquela em que se retiram mecanismos de sustentação artificial da vida ou se retiram medicamentos), podendo cada uma delas ser classificada como voluntária ou involuntária 5. A eutanásia é voluntária quando fruto da deliberação individual, informada e esclarecida de cada pessoa, e involuntária quando a pessoa não se pronunciou e não há como conhecer sua opinião, ou mesmo quando ela não desejava a prática da eutanásia.
A segunda forma de entender a eutanásia é considerá-la como sinônimo de homicídio ou de suicídio. Essa interpretação pouco comum à bioética, mesmo à bioética de inspiração cristã no Brasil, sobrepõe o debate contemporâneo a respeito de eutanásia às práticas de extermínio nazista, em que pessoas vulneráveis e minorias étnicas e raciais eram assassinadas por valores genocidas e racistas de um Estado totalitário 1. O fantasma deixado pela II Guerra Mundial e os relatos atrozes dos crimes cometidos pelos médicos nazistas é, ainda hoje, uma sombra ao debate bioético sobre o direito de morrer. Para muitas pessoas, em geral aquelas pautadas em premissas religiosas, eutanásia seria sinônimo de extermínio de pessoas vulneráveis, e a simples enunciação do conceito é um tabu moral.
Há ainda um terceiro tipo de procedimento, o suicídio assistido, que também se aproxima do debate sobre eutanásia. A diferença entre a eutanásia ativa e o suicídio assistido é que, neste último, a pessoa doente é apenas assistida para a morte, mas todos os atos que acelerarão esse desfecho são por ela realizados. Como há casos de pessoas que solicitam o suicídio assistido, mas que não possuem independência locomotora suficiente sequer para levar um copo à boca, foram desenvolvidos mecanismos para garantir que apertando um botão de uma máquina, por exemplo, seja acionado um dispositivo para injetar o medicamento. Aqueles que defendem o suicídio assistido argumentam que esta é uma maneira de não envolver os profissionais de saúde no ato da eutanásia, uma vez que é a própria pessoa quem toma a decisão e realiza as medidas necessárias para garantir sua morte. O auxílio que porventura necessite pode ser garantido por qualquer pessoa de seu círculo de relações afetivas ou sociais.
Uma característica deste debate é que não se considera a possibilidade da eutanásia ativa, passiva ou do suicídio assistido para pessoas saudáveis. Trata-se de tema circunscrito às pessoas doentes e, em particular, àquelas em estágio terminal, com intenso sofrimento físico, para quem a Medicina oferece restritas possibilidades de mudança do quadro clínico. Na bioética, não se fala de direito à eutanásia de pessoas saudáveis que desejam cometer o suicídio 1. Se, por um lado, não se confunde eutanásia com práticas de extermínio de pessoas vulneráveis, por outro, não se confunde eutanásia com suicídio. Grande parte dos protocolos internacionais para garantir o acesso à eutanásia passiva, isto é, retirada de medicamentos ou tratamentos médicos, pressupõe que a pessoa doente seja atendida por psiquiatras e psicólogos 9.
Em países democráticos e plurais, o desafio é entender eutanásia como um ato de expressão do livre arbítrio individual. Nesse contexto, o que necessitaria ser regulamentado não seria o direito a deliberar sobre como queremos morrer, mas sim sobre como garantir que o exercício desse direito seja livre, informado e consciente. O desafio bioético é o de retirar o tema da boa morte do campo do tabu para garantir seu enfrentamento como uma questão de direitos humanos. O direito a deliberar sobre a própria morte deve ser uma garantia não apenas médica, mas também ética e jurídica. Nesse processo de afastamento da boa morte do tabu e de aproximação dos direitos humanos, o tema da eutanásia passiva e do direito a estar livre da obstinação terapêutica são os mais intensamente discutidos no cenário internacional da bioética.
Obstinação terapêutica e tortura médica
O caso que chegou à Justiça brasileira envolvia um bebê de oito meses, com um quadro clínico degenerativo, incurável, e que exigia sessões diárias de intervenção no corpo para mantê-lo vivo. Seus pais descreveram essas intervenções como atos de tortura: "Isso que a gente chama de tortura é a fisioterapia, puncionar a veia, aspirar o pulmão duas ou três vezes por dia, isso tudo o incomoda, machuca (...) e não há qualquer possibilidade de modificar o quadro dele...". Por não haver mudança no quadro clínico do bebê ou qualquer possibilidade de conter o avanço da doença, práticas invasivas, como a sonda nasogástrica, eram medidas consideradas exageradas, porém toleráveis para os pais do bebê. A tortura da medicalização definia-se pela impossibilidade de as medidas invasivas reverterem ou modificarem o quadro clínico "...o que eu acredito é que, se houvesse prognóstico de cura para ele, isso não poderia ser nomeado tortura, isso seria uma terapia dolorida. Mas ele não vai ser curado, nós não estamos indo em direção a uma cura...". Essas eram medidas que serviriam apenas para manter o bebê em sobrevida, jamais atuariam para curá-lo ou para aliviar os sintomas da doença. As mesmas medidas invasivas, quando aliviavam o sofrimento do bebê, não eram definidas pelos pais como torturantes, apenas como dolorosas. Para estes, a fronteira entre tortura e dor deveria ser traçada pelo resultado de cada ação médica: algumas melhoravam a sobrevida do bebê, outras serviam apenas como medidas de obstinação terapêutica.
E foi sobre uma das ações médicas a ventilação mecânica que os pais do bebê solicitaram o direito de escolha à Justiça. Uma das características da síndrome genética do bebê era a crescente e incontrolável perda da capacidade muscular. Ainda hoje, a Medicina não sabe como interromper o processo de degeneração muscular do corpo provocado pela síndrome 10,11. Os principais hospitais e centros de reabilitação locomotora do País se recusam a internar pacientes com Amiotrofia Espinhal Progressiva Tipo I. Essa recusa não se dá por uma discriminação genética, mas simplesmente por um reconhecimento da incapacidade técnica da Medicina em oferecer qualquer recurso terapêutico ou medidas paliativas para aliviar o quadro clínico. E sobre isso os pais do bebê estavam conscientes e conformados: não havia absolutamente nada o que fazer para conter o avanço da síndrome, ou nas palavras do pai "....este é um jogo em que já começamos perdendo...".
Quadros clínicos como o desse bebê são casos-limite para os quais a Medicina tem pouco a oferecer. Há promessas de futuras terapias gênicas, remotas possibilidades de descobertas no campo da farmacogenética, mas o fato é que não há qualquer recurso médico disponível; tampouco se considera que qualquer avanço neste campo estaria acessível às pessoas já em estágio tão avançado de perda muscular, como era o caso do bebê. A síndrome genética do bebê lhe impunha uma curta existência corporal: a estimativa de sobrevida seria de poucos anos 11. E foi exatamente a certeza da existência reduzida pela síndrome uma batalha em que a Medicina não está habilitada ainda a enfrentar que fez os pais do bebê solicitarem limites para cada procedimento médico.
Mas se os recursos médicos são limitados, e não há responsáveis para essa limitação do conhecimento humano, os pais do bebê reconheciam outros cuidados como prioritários para garantir a integridade e a dignidade do filho: eram dedicados e amorosos com a criança. Desde o nascimento, a mãe não trabalhava para dedicar-se integralmente aos cuidados do bebê prematuro, que, precocemente, foi diagnosticado como portador da síndrome genética; o pai abandonou o trabalho desde a primeira internação hospitalar do filho. Os dois alternavam-se ininterruptamente nos cuidados e na vigilância do bebê e passaram a ser mantidos pela ajuda da família extensa que, em sua maioria, estava de acordo com a decisão do casal. Essa dedicação irrestrita ao bebê não deve ser entendida apenas como um ato compulsório da maternidade ou da paternidade, mas como um profundo ato de amor de um jovem casal que, antecipadamente, sentia saudades do filho.
Os cuidados intensivos da criança exigiam diferentes atitudes dos pais. Por um lado, cuidar de um bebê com as limitações impostas pela síndrome pressupunha uma dedicação física e temporal irrestrita. Os pais converteram-se na extensão do corpo debilitado e fraco do filho. A sobrevida do bebê às paradas cardiorrespiratórias foi resultado do cuidado incondicional de seus pais. Por outro lado, estes tiveram que aprender a suspender o tempo: eles eram pais de um filho cuja existência tinha data marcada para terminar. A morte é uma condição humana, mas a existência pré-determinada é desconcertante. O bebê morreria em breve, com ou sem ventilação mecânica, e os pais tinham pressa de viver os últimos momentos com a tranqüilidade de quem ignora a proximidade da morte. A morte do bebê não era apenas uma certeza da condição humana, mas uma sentença. A passagem de condição para sentença fez com que os pais aprendessem que amor e apego são sentimentos diferentes, "...o amor é fundamental com desapego...e o nosso amor por ele é desapegado, não poderia ser diferente...". Por fim, eles precisavam de proteção: somente a Justiça impediria que eles fossem transformados de pais amorosos em assassinos.
A solicitação dos pais à Justiça foi para garantir que o bebê, em caso de parada cardiorrespiratória, não seria submetido à ventilação mecânica e não seria internado em uma UTI. Em outras palavras, a solicitação do casal visava a garantir que a capacidade de respirar independentemente de uma máquina fosse o limite da medicalização do corpo do filho. Nos termos do casal, o pedido judicial seria a garantia de que a independência respiratória fosse o limite da tortura. Não mais ser capaz de respirar era o sinal definitivo de que o curso da vida do bebê deveria ser seguido sem a intervenção técnica. Impor a ventilação artificial seria um ato de obstinação terapêutica que apenas impediria por algum tempo que o ciclo natural da curta existência do bebê seguisse seu rumo. O pedido dos pais de recusa de procedimento médico baseava-se na compreensão de que a ventilação mecânica não era um ato médico necessário para o tratamento do bebê, mas sim uma intervenção cruel que impediria a falência definitiva do corpo.
Ser capaz de respirar foi o limite físico estabelecido pelos pais, mas que deve ser redescrito em termos éticos. Os pais defendiam que enquanto o bebê fosse capaz de respirar sem o auxílio de medidas invasivas, ele seria capaz de lutar pela vida: "...a partir do momento em que ele precisar daquela máquina para poder respirar é porque ele não vai mais conseguir respirar (...) É porque ele não deveria estar vivo. É porque não é para ele estar mais vivo...". Os pais estavam conscientes, informados e esclarecidos que recusar a ventilação mecânica significaria não mais prolongar a existência do bebê, ou em termos médicos estritos, levaria ao óbito do bebê. É possível, equivocadamente, descrever a solicitação dos pais como um ato de eutanásia, já que o recurso da ventilação mecânica manteria o bebê em sobrevida por mais tempo. Muito provavelmente, o bebê não morreria por problemas decorrentes de colapsos respiratórios, pois a máquina o manteria respirando, mas sua morte se daria por infecções secundárias, pneumonias, ou falências de órgãos. Certamente, a curta existência do bebê seria expandida de alguns meses (em geral 24 meses) para alguns anos, mas a pergunta dos pais era exatamente sobre o sentido de submeter o bebê a medidas heróicas e invasivas.
A ventilação mecânica garantiria a sobrevida do bebê, mas não interromperia o avanço da síndrome. Ele se manteria vivo, porém permanentemente ligado à máquina para respirar, piorando continuamente e sem qualquer experiência de vida independente. Uma vez ligado à máquina, não haveria retorno: o bebê e a máquina de respiração seriam uma única existência. Na máquina, os movimentos físicos dele se reduziriam ao piscar de olhos; por ocasião do pedido judicial, o choro do bebê já era sem som, pois os músculos das cordas vocais já haviam se enfraquecido; ele ainda ria, mas seus pais sabiam que rapidamente a síndrome impediria a expressão do sorriso. O casal se esforçava para acompanhar esses últimos sinais da interação do bebê com o mundo "...a gente o está perdendo, mas perdendo de um jeito bonito. De um jeito justo. Com integridade...". No hospital, o bebê passou a se alimentar por sonda nasogástrica. Na verdade, ele só conhecera duas formas de se alimentar: o leite materno e o alimento da sonda. Ele ainda era um bebê que se alimentava no seio da mãe quando, na primeira parada respiratória, perdeu a capacidade de deglutir.
Foi nesse mesmo período que os pais passaram mais seriamente a pensar nos limites da medicalização do corpo e da existência do bebê. Até então, os relatos médicos sobre o prognóstico da síndrome eram bastante evasivos, uma característica do discurso médico quando se defronta com situações clínicas que lhe exigem o reconhecimento da impotência técnica. Segundo os pais, os relatos médicos eram genéricos: ora afirmavam que não havia padrão único de evolução da doença, ora confundiam os três tipos de Amiotrofia, sugerindo ser possível que o bebê viesse a sentar numa cadeira de rodas, mas "...ninguém nos disse que ele vai chegar num ponto que não vai respirar mais...". Essa ambigüidade discursiva permitiu que os pais nutrissem expectativas de que, não havendo padrão único de evolução da síndrome, talvez, o bebê não desenvolvesse a doença, ou mesmo de que fosse possível que a síndrome estagnasse e ele sobrevivesse em uma cadeira de rodas. Os pais o queriam vivo e em condições de viver a vida, não importando com que restrições de funcionalidade. Jamais a possibilidade da vida com deficiência foi um problema para os pais do bebê. Mas a expectativa foi destroçada pela primeira parada cardíaca e pela tentativa de colocá-lo num CPAP (Continuous Pressure Airway Positive), recurso de respiração artificial 12. Nessa ocasião, os pais entenderam que, além de ter que aprender a lidar com a breve existência do filho, era preciso enfrentar o tema de como queriam que o bebê experimentasse os meses de vida que lhe restavam.
Ao contrário do debate tradicional sobre o direito de morrer, em que se apela para a autonomia e o livre arbítrio individual para justificar o exercício do direito de deliberar sobre a vida, neste caso não havia como conhecer a opinião do bebê. E jamais seria possível conhecê-la. Mesmo que, desrespeitando a vontade de seus pais, o bebê fosse mantido sob ventilação mecânica permanente, ele não sobreviveria o suficiente para atingir a maioridade e poder se pronunciar. Na melhor das hipóteses, a respiração artificial lhe daria alguns anos de sobrevida, confinado a um leito de hospital ou aos cuidados domésticos intensivos e sem qualquer independência física ou locomotora, pois todos os músculos estariam permanentemente debilitados. Diante da total impossibilidade de se conhecer a opinião do bebê, seus pais eram os representantes legítimos de sua vontade 2. E o foram, não por uma concessão do Estado que reconhece o pátrio poder, mas por uma demonstração irrefutável do incondicional cuidado dos pais ao bebê.
"...Meu filho é uma extensão de mim, sendo uma extensão de mim não posso deixar que ele passe o que eu não passaria. Não posso permitir: uma extensão de mim não vai sofrer uma coisa que eu não concordo. Eu estou salvando meu filho...". Com essas palavras, os pais descreveram o fundamento ético do pedido por aliviar o bebê da obstinação terapêutica. Confiná-lo a uma máquina seria escravizá-lo a uma existência limitante e degradante, seria retirar dele a dignidade da morte. Impedi-lo de morrer naturalmente seria uma agressão à existência já repleta de limites do bebê. A Medicina não necessitaria impor outra sentença àquela irrefutável da loteria da natureza. Os pais descreveram a ventilação mecânica como uma ameaça ao livre arbítrio do bebê: o arbítrio de uma existência livre da tecnologia médica. A dignidade do bebê passava pelo direito de morrer livre da tortura médica diária e isenta de sentido terapêutico. A tortura não está na sentença da morte precoce, na degeneração muscular ou no sofrimento físico do bebê, mas nos procedimentos médicos invasivos e incapazes de oferecer qualquer alternativa real de reversão do quadro clínico já instaurado. A ventilação mecânica significaria apenas uma extensão da sobrevida do bebê e, muito provavelmente, a substituição da causa de sua morte: de parada respiratória seguida de parada cardíaca para infecção generalizada ou pneumonia.
Os pais defenderam o direito de morrer livre da tortura da medicalização, um argumento desafiante para o ordenamento moral cristão e para o ethos biomédico, que associam a morte ao fracasso. "...No respirador, nem um minuto. Do nosso ponto de vista, aquilo não é mais vida. Aquilo é condenar uma pessoa a não poder morrer (...) Uma criança no respiradouro não tem a possibilidade de morrer...". Seria possível traduzir o apelo dos pais como a recusa pela obstinação terapêutica. Mas a questão é ainda mais sofisticada que meramente a recusa de procedimento. A condenação à morte não foi decretada pelos pais, mas pelo caráter implacável da síndrome. A ventilação mecânica manteria o bebê indefinidamente vivo, mas seria um procedimento técnico irreversível: uma vez no respirador, o bebê só seria desconectado da máquina com a morte. Diante disso, não aceitar a ventilação mecânica não deve sequer ser entendido como uma recusa de tratamento médico, pois sua eleição é uma falsa opção. Os pais, na verdade, não tinham opção: a morte precoce do bebê era uma sentença e, como tal, não havia negociação. O que a UTI do hospital tinha a oferecer seria um prolongamento da existência do bebê e a substituição da causa de sua morte.
O dilema ético que se instaurou era exatamente pela ausência de opção. Não havia nada o que oferecer ao bebê e sua família. Nesse contexto dilacerante de absoluta impotência da Medicina, comparam-se variáveis que não se prestam à equiparação: de um lado, concepções privadas sobre o sentido da vida para os pais e, de outro, recursos terapêuticos inúteis para o quadro clínico do bebê. A ventilação mecânica se justificaria como uma medida temporária com vistas a garantir o retorno à respiração independente de uma pessoa doente. Não era esse o caso do bebê e sobre isso não há qualquer dúvida na literatura médica 10,11. Portanto, apelar para o direito de morrer como fundamento ético para a decisão dos pais em recusar a obstinação terapêutica é pressupor que a ventilação mecânica seria uma opção viável para o bebê. O mais correto seria apelar para o direito a estar livre da tortura da medicalização. Neste caso específico, a ventilação mecânica não se justificaria em termos clínicos, tampouco éticos.
A resistência em reconhecer a respiração artificial como uma opção foi, acima de tudo, um posicionamento ético dos pais, expresso pelo seguinte argumento em termos de um juramento dos pais ao bebê: "...Nós amamos muito nosso filho. E é por causa disso que nós fizemos este juramento para com ele. É um juramento nosso: nós não vamos permitir daquela parte em diante. É um compromisso, uma obrigação. Nós sabemos que a partir daqui não será bom para ele. Ele pode ficar descansado sobre isso...". Há quem possa contestar afirmando que este seria um caso de conflito de juramentos: de um lado, o juramento dos pais e, de outro, o juramento hipocrático em que os médicos prometem não provocar nenhum dano em seus pacientes. Mas novamente este é um falso conflito. Não há dano a ser infringido ao bebê pela recusa da ventilação mecânica. Ao contrário, o dano está no confinamento do bebê à máquina. Com ou sem respiração artificial, não haveria mudança no curso implacável da síndrome. Neste caso, o juramento hipocrático dos médicos era o mesmo que o juramento de amor dos pais: ambos comprometeram-se a cuidar do bebê. O equívoco está em entender o cuidado como a exigência do agir técnico permanente: há situações e esse caso demonstra isso em que a única forma de cuidado é o respeito às convicções pessoais das pessoas doentes e de seus cuidadores.
Considerações finais
Em resumo, o pedido dos pais foi considerado eticamente legítimo, pois: (i) os pais eram as pessoas jurídica e eticamente legítimas para tomar decisões relativas ao cuidado do bebê; (ii) o caráter heterônomo do bebê não poderia jamais ser suplantado, ou seja, seria preciso sempre que alguém representasse seus interesses e seus pais deram provas substantivas de que representam seus melhores interesses; (iii) não havia opção terapêutica, possibilidades de reversão do quadro clínico ou mesmo medidas disponíveis de contenção da síndrome que justificassem a obstinação terapêutica; o prognóstico de sobrevida do bebê era curto (em torno de 24 meses), no máximo de alguns anos se submetido à respiração artificial; (iv) a ventilação mecânica não representava uma opção terapêutica para o bebê, era apenas uma possibilidade técnica não indicada para quadros clínicos como o dele; (v) a ventilação mecânica seria antes uma escolha ética e pessoal que uma indicação médica, e o posicionamento dos pais foi de total recusa da ventilação mecânica; (vi) os pais estavam conscientes, informados e esclarecidos de que a recusa à ventilação mecânica não estenderia a sobrevida do bebê; (vii) os pais apelaram para o direito humano de estar livre de tortura, no caso do bebê entendido como o direito de estar livre da tortura da medicalização.
Esse caso e a procura inédita dos pais à Justiça devem ser entendidos não apenas como uma submissão à legalidade do Estado, mas também como uma expressão pública do ato de cuidado por um bebê no fim de sua vida. A garantia de que o apelo ético dos pais desse bebê o direito a estar livre da tortura da medicalização não será um clamor privado, mas um princípio ético coletivo em face da crescente medicalização da morte, será um dos desafios que esse caso deixará para a bioética brasileira.
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Correspondência
D. Diniz
Programa de Pós-graduação em Política Social
Universidade de Brasília
C. P. 8011
Brasília, DF 70683-970, Brasil
anis@anis.org.br
Recebido em 24/Abr/2006
Aprovado em 24/Abr/2006