RESENHAS BOOK REVIEWS
Maurício Soares Leite
Departamento de Nutrição, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. mauriciosleite@ccs.ufsc.br
ANTROPOLOGIA E NUTRIÇÃO: UM DIÁLOGO POSSÍVEL. Canesqui AM, Garcia RWD, organizadoras. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. 306 pp. (Coleção Antropologia e Saúde).
ISBN: 85-7541-055-5
A começar por seu título, a presente coletânea propõe uma tarefa que, embora instigante, tem lá suas agruras isto é, a superação das fronteiras disciplinares na abordagem das relações entre o homem e sua comida. A proposta, portanto, é a de um caminho bastante distinto daquele que caracteriza a chamada ciência nutricional, de orientação essencialmente biomédica. E superar diferenças epistemológicas não é, reconheçamos, objetivo fácil de ser alcançado. Mas as organizadoras contam com uma longa trajetória de atuação na interface entre as ciências sociais e humanas e as biológicas e, além disso, o livro ainda conta, em sua maior parte, com a participação de antropólogos. Aqueles habituados a compreender a alimentação humana a partir de nutrientes e necessidades fisiológicas serão apresentados, assim, a novas e surpreendentes perspectivas, que despertarão sua atenção para aspectos que usualmente passam despercebidos mesmo em seu cotidiano.
O volume apresenta algumas características que lhe conferem maior relevância. Trata-se da primeira coletânea sobre o tema publicada no país, ocupando portanto uma importante lacuna da literatura em língua portuguesa. Deste modo, tornará as discussões mais acessíveis a boa parte dos interessados, especialmente aqueles que ainda cursam a graduação. Além disso, não bastasse o grande rendimento do tema da alimentação, o leitor irá se deparar com diversos estudos de caso brasileiros, que oferecem uma oportunidade singular para o rico exercício de ver como estranha uma realidade que lhe é familiar, e assim ser capaz de percebê-la em toda a sua complexidade e em todas as suas nuances.
O livro possui um capítulo introdutório, de autoria das organizadoras, que já de início argumentam a favor da relevância do tema. Elas se propõem a proporcionar aos "profissionais da saúde, aos cientistas sociais, aos estudiosos, professores e interessados na alimentação humana uma compreensão do quanto ela é tributária da cultura" (p. 12). O que, veremos, de fato se concretiza. A obra, assim, não se destina somente a especialistas; se por um lado estes irão encontrar discussões sofisticadas, os iniciantes terão em mãos textos mais genéricos e discussões mais acessíveis.
A obra divide-se, a partir da introdução, em quatro partes, totalizando 15 capítulos. A primeira, intitulada Olhares Antropológicos sobre a Alimentação, dá ao leitor uma idéia da diversidade que o campo apresenta. Iniciando-se por uma revisão dos estudos realizados no Brasil, de Ana Maria Canesqui, a seção possui um caráter quase didático, e discute temas tão fundamentais como o escopo das análises antropológicase o etnocentrismo que usualmente caracteriza a prática biomédica. Além disso, chama a atenção para aspectos da alimentação que são sistematicamente ignorados quando o olhar das análises é o biomédico, como a relação entre a alimentação e identidade cultural, comensalidade e simbolismo. A seção inclui ainda aspectos tão diversos como uma discussão dos primeiros relatos de época sobre a alimentação no Brasil-colônia, a culinária ritual em uma religião afro-brasileira no Rio Grande do Sul e, por fim, uma discussão de cunho metodológico.
Cabe aqui, contudo, uma ressalva: se por um lado a seção dá uma amostra das possibilidades que o diálogo com as ciências humanas e sociais traz consigo, por outro apresenta discussões com níveis distintos de profundidade, e que serão mais ou menos acessíveis ao leitor, a depender de sua familiaridade com as mesmas. Um exemplo é o primeiro capítulo, que revê trabalhos publicados no país até os primeiros anos após a última virada de século. Embora Canesqui assinale, já de início, que não irá aprofundar-se "nas especificidades teórico-metodológicas de cada paradigma", ainda assim a leitura talvez pareça pouco amena para aqueles que não dominam as discussões da área. Considerando-se a proposta de um diálogo com este tipo de público, penso que no texto a descrição de algumas pesquisas apresenta-se menos clara e mais complexa do que deveria, como no trecho que descreve as distintas interpretações da categoria "reima" na alimentação brasileira. O último capítulo da seção, de Sílvia Carrasco i Pons, apresenta perfil semelhante e, creio, será melhor compreendido por aqueles que contam com uma formação mais sólida em humanidades.
A segunda parte, Mudanças Socioculturais e o Sistema Alimentar, apresenta uma discussão da dinâmica das transformações alimentares no processo de globalização. A seção é composta por dois capítulos que complexificam os debates sobre o alcance e as implicações do processo. Os autores demonstram a ocorrência simultânea de importantes mudanças e, por outro lado, de permanência, numa contradição quase paradoxal mas que reflete, em última instância, o caráter dinâmico da cultura.
A terceira parte, A Alimentação nos Espaços Público e Privado, é constituída por quatro estudos de caso realizados no Brasil e na França, e que têm em comum o contexto urbano. Canesqui apresenta os resultados de pesquisa de sua autoria, onde analisou as práticas alimentares de famílias trabalhadoras urbanas do Município de Paulínia, no Estado de São Paulo, em dois momentos: na década de 70, quando acabavam de chegar de áreas rurais, e em 2002, trinta anos depois. No capítulo seguinte, Garcia discute as representações da alimentação e da saúde entre trabalhadores urbanos da cidade de São Paulo. Ao darem voz àqueles que usualmente aparecem nas pesquisas sob a forma de seus atributos sócio-econômicos e biológicos, os trabalhos apontam para uma notável riqueza, que usualmente não é apreendida nos estudos epidemiológicos de orientação mais clássica.
Os estudos franceses talvez apresentem, por sua vez, um interesse particular para os nutricionistas, na medida em que trazem reflexões sobre o ambiente mais evidentemente orientado pela lógica biomédica, isto é, o hospitalar. São apresentados aspectos de ordem subjetiva e simbólica da alimentação em um momento tão singular como o do adoecimento, e no trabalho seguinte, algumas das mudanças observadas na dinâmica de administração hospitalar, em sua dimensão alimentar-nutricional. Ambos os estudos, em que pesem as particularidades do contexto francês, revelam dimensões por vezes surpreendentes, justamente onde mais caracteristicamente entende-se a alimentação a partir de critérios biológicos ou, no máximo, econômicos.
A última seção, intitulada Diálogos das Ciências Humanas com a Nutrição, inicia-se por um diagnóstico das disciplinas ligadas às ciências sociais e humanas nos cursos de graduação em nutrição no país, comparando-o à situação observada em instituições norte-americanas e inglesas. O capítulo representa uma oportuna e necessária reflexão sobre a formação dos profissionais nutricionistas e os limites impostos pelo paradigma biomédico. Os capítulos seguintes, escritos respectivamente por Rosa Wanda Diez Garcia, nutricionista, e Mabel Gracia Arnaiz, antropóloga, finalizam o volume e, com títulos muito semelhantes A Antropologia Aplicada às Diferentes Áreas da Nutrição e Aplicações da Antropologia à Nutrição: Algumas Propostas discutem de pontos de vista distintos as possibilidades de aplicação da perspectiva antropológica no campo da nutrição, ao mesmo tempo em que apontam para as dificuldades inerentes ao trabalho interdisciplinar.
A coletânea demonstra, de modo inequívoco, tratar-se a alimentação humana um objeto complexo e que, se pode ser analisado por diversas disciplinas, não se reduz às fronteiras de nenhuma delas. Por outro lado, o diálogo com a nutrição é talvez menos presente do que o título parece sugerir, e já no capítulo introdutório as organizadoras advertem o leitor de que o diálogo interdisciplinar não é consenso mesmo entre os autores que compõem a coletânea. Mas se isto pode parecer estranho a alguns, já que o próprio título do livro propõe a interdisciplinaridade, a dissonância que o mesmo comporta deve ser antes bem-vista. Afinal, ela reflete as vivas discussões de um campo caracterizado pelo dinamismo e pelas tensões, ambos resultantes da interação entre as diversas tradições epistemológicas, e demonstra o quanto ainda há por ser feito.
Concluindo, a despeito das dificuldades e desafios que o trabalho interdisciplinar apresenta, a obra cumpre o objetivo de seduzir o leitor, mostrando-lhe que os esforços nesta direção são compensados por uma significativa ampliação das possibilidades analíticas, e pela revelação de uma surpreendente riqueza de nuances desse fascinante objeto que é a alimentação humana. Trata-se, portanto, de uma leitura obrigatória para os interessados no tema.