RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Richard Miskolci

Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, Brasil. richardmiskolci@uol.com.br

 

 

DAR A VIDA E CUIDAR DA VIDA: FEMINISMO E CIÊNCIAS SOCIAIS. Scavone L. São Paulo: Editora Unesp; 2004. 205 pp.
ISBN: 85-7139-548-9

Em tempos nos quais a mídia apregoa um período pós-feminista em que supostamente as mulheres teriam conquistado tudo o que queriam e agora decidem, por livre e espontânea vontade, voltarem ao lar, é uma grata surpresa encontrar esta coletânea de textos de Lucila Scavone. A Professora Livre Docente em Sociologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP) expõe, de forma científica e em linguagem clara, como a questão da escolha ou recusa da maternidade continua a ser crucial na luta pela emancipação das mulheres. Luta que apenas se inicia em todo o mundo, mas que, na sociedade brasileira, ainda enfrenta valores tradicionais que reduzem e obrigam as mulheres à maternidade.

Dar a Vida e Cuidar da Vida: Feminismo e Ciências Sociais apresenta a perspectiva feminista da sociologia frente aos saberes médicos nas questões da saúde reprodutiva e contracepção. O livro traz a questão da maternidade para a esfera do social por meio de análise de pesquisas bem documentadas que virão a interessar tanto acadêmicos quanto profissionais da saúde que lidam com políticas públicas.

Até poucas décadas atrás, poucos questionavam a idéia de que as mulheres eram destinadas a serem mães. A fórmula dominante de tota mulier in utero se assentava em um determinismo biológico para justificar uma posição subalterna das mulheres no conjunto das relações sociais (segundo Thomas Laqueur 1, é clara a associação entre saberes médicos com as visões dominantes sobre a mulher). Scavone mostra que, enquanto alguns defendem os supostos prazeres da maternidade ­ o que sempre foi um privilégio de classe ­, a maioria das mulheres a vive também como uma forma de controle por parte dos companheiros e da sociedade. Ser mãe para elas ainda lhes lega mais responsabilidades do que aos homens e coíbe sua maior participação na vida pública. Assim, o ideal da mulher-mãe-dona-de-casa busca tornar natural e inelutável uma condição social mais complexa e difícil do que parece à primeira vista.

Nos últimos cinqüenta anos, transformações sociais profundas tornaram o que parecia um fado inelutável em uma questão de escolha. A entrada no mercado de trabalho, as políticas de controle de natalidade e a conseqüente redução das famílias contribuíram para que se ensaiasse uma separação entre vida sexual e reprodução (sobre essas transformações, consulte Aran 2). A maternidade deixou de ser vista como algo puramente biológico e passou a ser encarada como algo determinado pelo contexto social e histórico em que as mulheres vivem. Assim, o direito de escolher ser mãe ou não se tornou uma das mais importantes lutas do feminismo.

Apesar disso, até hoje, a maioria das políticas de controle ou incentivo da reprodução são implementadas como assunto estatal de forma que a saúde das mulheres é afetada por decisões alheias a seus interesses. Isso é mais evidente em países pobres ou em desenvolvimento como o Brasil, onde a difusão de métodos contraceptivos se deu com o objetivo de controle demográfico. O Estado, ao invés de informar e fornecer opções contraceptivas seguras para as cidadãs, as desqualificou como capazes de escolha e decidiu por elas o que deveria ser feito.

Sem informação ou acesso aos melhores meios contraceptivos nem ao direito legal de interromper uma gravidez indesejada, as políticas públicas terminaram por incentivar a esterilização. O índice de esterilização feminina, em nosso país, está entre os mais altos do mundo, o que evidencia o paradoxo de uma sociedade que não trata suas mulheres como cidadãs conscientes e capazes de escolhas racionais, antes como subcidadãs tuteladas por um Estado que considera interromper a gravidez um crime.

O quadro é complexo, e, para torná-lo compreensível, Scavone inicia, com um panorama da história do feminismo e da forma como ele contribuiu para uma renovação temática, uma mudança de perspectiva e até mesmo um aprimoramento conceitual das ciências sociais contemporâneas, em particular na sociologia. Depois dessa introdução cuidadosa e didática, fornece uma história esclarecedora do conceito de saúde reprodutiva antes de adentrar nas questões dos direitos reprodutivos associados às políticas públicas de saúde.

Um dos feitos da obra é sempre conectar as reflexões sociológicas com o movimento social na análise de estudos empíricos, o que torna mais fácil o contato com as correntes do feminismo. Nos estudos de caso, encontram-se textos que abordam as questões da saúde reprodutiva no rico interior de São Paulo e também no mais pobre dos estados brasileiros, o Maranhão. A leitura comparativa desses textos que sintetizam pesquisas empreendidas durante mais de vinte anos revela a diversidade de condições socioeconômicas em que a questão da maternidade é vivida no Brasil. Salta aos olhos o interesse comum dessas mulheres de separar a reprodução da sexualidade, ter acesso à informação correta e completa, assim como também obter os melhores meios contraceptivos.

Um dos textos retraça a emergência dos termos saúde reprodutiva e direitos reprodutivos, o que permite entender como se deu o rompimento com o biodeterminismo que marcava a abordagem da maternidade antes das lutas feministas. A centralidade dessa discussão, para a corrente mais conhecida do feminismo, repousava no fato de que ela era vista como a principal responsável pela opressão feminina, e a escolha por ser ou não mãe, crucial para conquistar a emancipação (p. 48). Infelizmente, o conceito de saúde reprodutiva foi institucionalizado de forma a apagar sua origem política e torná-lo útil para as políticas de controle populacional.

No capítulo sobre direitos reprodutivos, a socióloga mostra a imbricação entre políticas públicas de saúde e questões de gênero e raça/etnia ao abordar o alto índice de esterilização de mulheres no Brasil (p. 60-1). Diante da falta de informação ou acesso a meios contraceptivos eficientes e sem efeitos colaterais, muitas mulheres pobres (e, em nosso país, isso quase equivale a dizer negras) são submetidas ou até procuram a esterilização como último meio de contracepção. Paralelamente, entre mulheres de classe média e alta, a busca por novas técnicas contraceptivas (NTCs) busca atender as expectativas de maternidade em um contexto diverso. Apesar da diferença de classe social, algo unifica os extremos e cria um único quadro: "da negação da maternidade (pela esterilização e pelo aborto) a sua afirmação (pelas NTCs), estamos diante de novos modelos de organização e estrutura familiar que, regulados pelas tecnologias médicas, pelas políticas de controle de natalidade (ou incentivo, nos países do norte), deixam pouco espaço para a expressão do desejo de cada mulher" (p. 66).

Ao discutir as novas escolhas e os antigos conflitos diante das novas tecnologias reprodutivas, Scavone sublinha a importância das condições sociais e subjetivas em que são experimentadas essas técnicas. É necessário lembrar que tais tecnologias interferem nas vidas das mulheres por meio do que há de mais íntimo e sensível: seus corpos e a forma como vivem sua sexualidade. Enquanto, em países como a França, a contracepção se tornou um direito conquistado graças às lutas feministas pelo direito de decidir, no Brasil, o acesso a meios contraceptivos se deu quase como imposição estatal para alcançar objetivos de controle demográfico (p. 72). Se as francesas demandaram meios contraceptivos e os escolheram, às nossas mulheres coube apenas a indução a utilizar os meios disponibilizados pelo Estado e sobre os quais detêm pouco ou nenhum conhecimento.

Em nosso contexto nacional, as técnicas contraceptivas foram uma ferramenta estatal para diminuir a taxa de natalidade, em particular, entre os mais pobres. É impossível não recordar a semelhança com os objetivos eugênicos e racistas que marcam o imaginário brasileiro do branqueamento (sobre a questão, consulte Stepan 3; sobre o caráter racial das políticas de contracepção norte-americanas, veja Ordover 4). Também é importante sublinhar o paradoxo de que as tecnologias contraceptivas são majoritariamente voltadas para as mulheres e seus corpos enquanto o controle permanece nas mãos de homens. Uma das razões para a manutenção desse poder masculino repousa nas resistências sociais às mudanças que vivemos na estrutura familiar. Por isso, Scavone também explora os laços que se estreitam entre poder médico e família.

A questão mais controversa ­ a interrupção da gestação ­ é discutida sob a ótica da sociologia, portanto como experiência estigmatizada socialmente e problema de saúde pública devido às condições socioeconômicas nas quais se inserem as mulheres que decidem não serem mães interrompendo a gravidez. A pesquisa, desenvolvida entre 1994 e 1998 na cidade de Araraquara, interior de São Paulo, evidencia o caráter fundamentado da decisão de abortar. As entrevistas mostram como as dificuldades econômicas se associam a uma ordem social em que a gravidez não é vista como responsabilidade do casal, antes como problema da mulher e, freqüentemente, um meio de dominação e controle masculino sobre as companheiras (p. 123).

Dessa forma, o aborto pode ser visto como recusa e resistência às condições sociais desfavoráveis em que se encontram as mulheres. Por causa de sua ilegalidade, elas são relegadas a serviços clandestinos que ameaçam suas vidas. Desprotegidas pelo Estado e enredadas em uma ordem social androcêntrica, suas escolhas são limitadas à subalternidade ou à afirmação de que seu corpo lhes pertence, algo que, em diversos países, é fato, mas que ainda só é possível, no Brasil, sob o risco de morrer.

 

 

1. Laquer T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 2001.

2. Aran M. Os destinos da diferença sexual na cultura contemporânea. Revista Estudos Feministas 2003; 11:399-422.

3. Stepan NL. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005.

4. Ordover N. American eugenics: race, queer anatomy, and the science of nationalism. Minneapolis: Minnesota University Press; 2003.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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