RESENHAS BOOK REVIEWS
Maria Grasiela Teixeira Barroso
Faculdade de Farmácia, Odontologia e Enfermagem, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil. grasiela@ufc.br
SAÚDE COLETIVA E PROMOÇÃO DA SAÚDE: SUJEITO E MUDANÇA. Carvalho SR. São Paulo: Editora Hucitec; 2005. 183 pp.
ISBN: 85-2710681-7
O livro Saúde Coletiva e Promoção da Saúde: Sujeito e Mudanças é o resultado da investigação de doutorado de Sérgio Rezende Carvalho, realizada na Universidade Estadual de Campinas e parcialmente no Canadá. Vale a pena estudá-lo, já que ele joga luz sobre o contexto cultural sanitário brasileiro e internacional, além de analisar teorias contemporâneas sobre a Saúde Coletiva e Promoção da Saúde. Toma como objeto de estudo as correntes de Promoção da Saúde canadense e da Saúde Coletiva brasileira.
Aspectos metodológicos de investigação
O autor reflete sobre o esgotamento do paradigma biomédico, a mudança do perfil epidemiológico e os novos desafios sócio-políticos e culturais das últimas décadas que ensejam o aparecimento de novas formulações sobre o pensar e o fazer sanitários. Nesse estudo, considera paradigma e modelo teórico conceitual como sinônimos. Na escolha do objeto, assumiu, como pressuposto, a idéia de que a atualização dos paradigmas sanitários no Brasil de hoje demanda um esforço transdisciplinar, que elucida as relações naturais e sociais embutidas no objeto saúde. Pensar a saúde hoje passa por pensar o indivíduo em sua organização da vida cotidiana, tal como esta se expressa, através não só do trabalho, como também do lazer ou da sua ausência. O investigador procurou, ao longo do trabalho, apontar limites e avanços para se pensar a mudança e a produção dos sujeitos na saúde. Sugere elementos e questões que julga pertinentes para se pensar uma proposta que consolide e radicalize os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), sobre o qual aporta rápidas considerações. A seguir, comenta elementos do ideário neoliberal que põem à prova a capacidade do SUS de vir a se consolidar como um projeto radicalmente comprometido com a mudança social e com a produção da saúde, sabendo que ele forma um amplo conjunto de políticas públicas no âmbito democrático e popular. Há na presente literatura uma contextualização do seu atual seguimento dentro do ideário neoliberal. De forma direta e sucinta, demonstra como a saúde é vista hoje, deixando de ser um direito adquirido para ser tratada como mercadoria. Como sabemos, no projeto neoliberal, o Estado passa a ser mínimo, destituindo-se, segundo Carvalho, das políticas sociais universalistas e redistributivas, acreditando serem estas um empecilho para seu desenvolvimento. Assim, o setor privado, nesse contexto, passa a encobrir toda a aresta deixada pela, então, privatização dos serviços. O Estado ficaria disposto a apenas prestar serviços àquele contingente populacional comprovadamente carente e incapaz de sustentar-se, ou seja, uma visão segmentada do todo populacional. Enfim, o escritor traz à baila um aparato que contextualiza o modo como a saúde e seus usuários passam a ser encarados, respectivamente, como mercadoria e consumidores. Refere, entretanto, que o SUS é um espaço de luta do Movimento Sanitário Brasileiro, que, desde a década de 1970, busca contribuir para a ampliação da democracia e para a conquista dos direitos sociais. O ideário que sustenta o SUS preconiza um Estado ativo, provedor de serviços sanitários de qualidade e que regula, a partir da lógica do bem comum, as ações do setor privado.
Na seção 2, capítulo 2, é trazido à colação o movimento da promoção da saúde no Canadá. O investigador considera nesse movimento, como marco inaugural, o Relatório Lalonde, publicado no Canadá em 1974. Esse documento recomenda a mudança de foco das ações sanitárias com o argumento de que "há poucas dúvidas que melhoramentos futuros no padrão da saúde dos canadenses residem, principalmente, na melhoria do meio ambiente, na moderação de riscos auto-impostos e aperfeiçoando o nosso conhecimento de biologia humana". Refere ainda que mudar o foco das ações de promoção, romper com a percepção de que a saúde é resultante de cuidados médicos e conscientizar o público do desequilíbrio nos gastos setoriais são algumas das metas propostas pela corrente behaviorista de Promoção da Saúde no Canadá. Sobre essa corrente, ele estrutura o pensamento em três partes. Na primeira e segunda, traz aspectos do Relatório Lalonde e sua contribuição para a mudança de foco na área da saúde coletiva. Na terceira, introduz cuidadosa e argumentativa crítica sobre a corrente behaviorista na Promoção da Saúde Coletiva. Essa tendência, embora proponha metas de mudança de foco das ações sanitárias para as de promoção da saúde, enquanto enfatize a idéia de que saúde não é sinônimo de cuidados médicos e que é preciso haver equilíbrio de gastos setoriais, não inclui, no discurso, temas como "poder, sujeitos sociais, estruturas sociais, capitalismo e lutas de classes".
O autor comenta sobre mais duas correntes do Canadá: a da Nova Promoção da Saúde e a da Promoção da Saúde da População. A primeira, uma perspectiva sócio-ambiental, surge nos anos 1980 estimulada pelos limites teóricos e práticos da perspectiva behaviorista; partilha com a anterior a crítica ao paradigma biomédico e a necessidade de ampliar o entendimento do processo saúde/doença, discordando, porém, da ênfase posta na intervenção, que visa a transformar hábitos de vida e de inculpação dos indivíduos por comportamentos cujas causas encontram explicação no entorno social. Para Carvalho, essa corrente recomenda que os serviços procurem atender às necessidades dos indivíduos na sua totalidade e que sejam capazes de dar resposta às diferenças culturais porventura existentes. Para o sucesso do reordenamento, preconiza que usuários, profissionais, instituições prestadoras de serviços e comunidade compartilhem responsabilidades e desenvolvam parcerias. A evolução histórica da Nova Promoção da Saúde, no Canadá, é marcada pela evolução histórica das instituições estatais e acadêmicas e por maior influência de seus intelectuais e dirigentes, congregados em torno da Associação Canadense de Saúde Pública e de entidades vinculadas à Organização Mundial da Saúde. O autor, refletindo a Nova Promoção da Saúde, realizou uma síntese inovadora de conceitos originários de campos disciplinares como a Sociologia, a Psicologia, a Ciência Política, a Economia, a Epidemiologia e a Ecologia. Logrou introduzir novas idéias, linguagens e conceitos sobre a saúde e acerca dos caminhos para que ela fosse alcançada.
Para a Promoção da Saúde da População, os ambientes físico e social determinam e condicionam a resposta biológica do indivíduo. Este, por sua vez, desenvolve mecanismos adaptativos que influenciam na produção da doença e na saúde/função. De acordo com Carvalho, faz-se necessária uma revisão do poder médico, facilitada, compelida, melhorada e modelada não somente pelas características internas da Medicina ou pela força e fraqueza de grupos de oposição próximos ou imediatos, mas pelo relacionamento entre estes e forças sociais mais amplas, incluindo as do Estado e das classes dominantes. O investigador entende que a Promoção da Saúde da População se aproxima da Nova Promoção da Saúde e reafirma a importância dos fatores macrossociais na determinação da saúde. A corrente de Promoção da Saúde da População tem óptica limitada do sujeito, o que pode explicar, em parte, o fato de que o documento fundador deste pendor não faça nenhuma referência à Nova Promoção da Saúde e, particularmente, aos conceitos sobre empowerment e participação comunitária.
No capítulo 5, trata-se do movimento da saúde coletiva no Brasil, surgida na década de 1970. Ao final desta, o arcabouço da Saúde Coletiva passa a informar as atividades de distintos departamentos de Medicina Preventiva e Social, assumindo função relevante na sustentação político-ideológica do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Descreve e analisa, em seguida, momentos-chave desse modelo, tomando como referência: (1) a década de 1970, caracterizada inicialmente pela influência do Projeto Preventivista e da Saúde Comunitária e, posteriormente, pelo Projeto da Medicina Social Latino-Americana;(2) o período de 1978 a 1988, no qual a Saúde Coletiva se firma como teoria, ideologia e prática política que embasa o movimento sanitário; (3) de 1988 até a conclusão da tese, momento marcado pela procura de novos referenciais teórico-práticos que atualizem o ideário da Saúde Coletiva no contexto sócio-político cultural do final de século.
A Saúde Coletiva, na década de 1980, "priorizou três tipos de práticas sociais: a) a teórica, com a finalidade de construir um saber; b) a ideológica, em que procurou criar uma consciência sanitária como parte da consciência social; e c) a prática política, que teve como propósito a transformação das relações sociais". O movimento sanitário brasileiro, inspirado na Saúde Coletiva, logra efetivamente pôr em questão o status quo sócio-sanitário. O autor considera que os conflitos sociais fundamentais têm como origem a concentração do poder econômico e que as instituições de saúde são, em última instância, resultado de determinações estruturais. A Saúde Coletiva do período põe na agenda setorial o tema da transformação do modo de produção capitalista, preconizando, em essência, libertar o ser humano das estruturas que o oprimem.
No capítulo 6, em Correntes Contemporâneas da Saúde Coletiva, na parte A, descreve-se a Corrente da Vigilância da Saúde no Brasil, a partir do fim da década de 1980, logrando pautar os debates sobre as políticas e práticas sanitárias na década de 1990. Na parte B, em A Corrente Em Defesa da Vida, descreve-se o surgimento dessa corrente ao final da década de 1980, a partir das atividades acadêmicas de um grupo de sanitaristas vinculados ao Departamento de Medicina Preventiva e Social, Universidade Estadual de Campinas e de trabalhadores da Secretaria de Saúde da cidade de Campinas. A vinculação estreita entre teoria e prática é uma característica marcante da corrente Em Defesa da Vida, uma produção coletiva devedora da interlocução com investigadores, profissionais e dirigentes da saúde no Brasil e no exterior. Para essa corrente, um dos principais empecilhos ao desenvolvimento da reforma sanitária brasileira é o insuficiente enfrentamento da temática da mudança do processo de trabalho e da participação dos trabalhadores de saúde na mudança setorial. Perante esse quadro, a corrente procura: (1) criar mecanismos para a incorporação de novos sujeitos na luta pelas mudanças setoriais; (2) qualificar a gestão do setor da saúde e (3) promover mudanças, visando a intervir no processo de trabalho em saúde. A corrente Em Defesa da Vida conceitua modelo de atenção como uma categoria de mediação entre a determinação histórico-estrutural de políticas sociais e as práticas de saúde, compreendendo que ele é um fator-chave para a viabilização e a garantia plena dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde. Ao final da década de 1990, essa corrente consolida uma proposta organizativa e gerencial para hospitais e rede básica, que recebe a denominação de Equipe de Referência, e entende que as mudanças contemporâneas dos setores produtivos vêm trazendo para a sociedade a importância de se aprimorar a capacidade da gestão estratégias das instituições. Compreende que o setor da saúde apresenta peculiaridades dadas pela autonomia dos profissionais, pela natureza do objeto saúde e pela importância das tecnologias de relações que reclamam novas formulações sobre gestão e planejamento. A mesma corrente busca operar arranjos e tecnologias que contribuam para a intervenção sobre as ações coletivas de saúde. As propostas de gestão da corrente Em Defesa da Vida ampliam e inovam o pensamento do setor ao valorizarem a importância dos trabalhadores e do encontro usuário/profissional, mas, surpreendentemente, excluem usuários organizados de suas proposições.
No capítulo 7, Considerações Finais, Carvalho comenta que a Promoção da Saúde, no Canadá, e a Saúde Coletiva, no Brasil, são abordagens que contribuem para a renovação do pensamento sanitário contemporâneo. Conclui afirmando a necessidade de que os modelos teóricos que procuram orientar a instituição do SUS com destaque para o ideário da Saúde Coletiva guiem-se pela busca de superação das raízes estruturais da iniqüidade na saúde no Brasil. Esses projetos devem, necessariamente, responder aos desafios de: a) garantir o acesso a bens e serviços de saúde de qualidade; b) produção de sujeitos autônomos e socialmente responsáveis e c) contribuir para a democratização do poder político.